Debaixodosceus.pt e Amazon.com: Uma parceria de sucesso
2017 Publicação "Daquele Além Marão"
2020 Foi criada a nova imagem
2017 Apresentação na Casa dos Transmontanos do Porto
2022, Pela primeira vez, publicação em capa dura além de capa mole
2017 Apresentação na Confeitaria Luso-brasileira
2020 Publicação "Entre o Preto e o Branco"
2017 Apresentação no CITICA de Daqueles Além Marão
2016 Apresentação no CITICA de "Lágrimas no Rio"
2016 Publicação de Lágrimas no Rio
2016 Apresentação no ISLA de "Lágrimas no Rio"
2015 "Terras de Xisto" - A primeira publicação
2022 Publicação de "A Caixa do Mal"
2022 Devido ao seu sucesso, "Lágrimas no Rio" tem 2ª edição
2022 Publicação "Na Sombra da Mentira"
2022 Publicação "Depois das Velas se Apagarem"

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Tudo por Amor

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




** Conto publicado na coletânea "A Bíblia dos Pecadores"


“E o cadáver de Jezabel será como esterco sobre o campo, na herdade de Jizreel; de modo que não se possa dizer: Esta é Jezabel.” 2 Reis 9:37

Ângela era uma mulher bem sucedida. Casada com um dos mais importantes industriais das conservas portuguesas, era ela própria filha de outro industrial do mesmo ramo, arruinado durante a expansão de Henrique Mello, seu sogro.
Sentiu-se humilhada quando foi encaminhada para casar com Eduardo Mello, filho do responsável pela desgraça do seu pai, como se se tratasse de despojos de guerra. No entanto, com o passar dos anos, adaptou-se e verificou que Eduardo era muito fácil de lidar e a vida não era assim tão má. Gradualmente, conquistou as boas graças do sogro, o amor do marido... e a inveja do cunhado, Filipe e da mulher, Luciana. Não foi portanto de admirar que, quando faleceu Henrique Mello, o testamento deixasse a maior parte dos bens a Eduardo, nomeadamente a presidência das Conservas Lusas.
Ambos os filhos de Henrique estavam bem um para o outro. Se Filipe, o mais novo, não estava habituado a fazer esforços para nada e detinha um curso de Direito, do qual não tirava grande partido, Eduardo, por seu lado, achava que o dinheiro crescia nas árvores apesar do seu curso de gestão. O testamento do pai, inexplicável, na opinião de Filipe, causou a discórdia e várias altercações entre os dois irmãos. Se por um lado Filipe achava que deveria ter uma quota igual ao irmão na conserveira, Eduardo não se conformava que, o quadro a óleo da sua mãe e de quem o irmão quase nem se recordava, não tivesse ficado para ele. Mas o que estava escrito eram as ultimas e soberanas vontades do pai e eles não chegavam a acordo em eventuais trocas. Eduardo geria a empresa sem consultar Filipe e este último conservava o quadro para afrontar o irmão.
No meio destas águas turvas estavam Luciana, paraplégica na sequência de uma queda nas escadas onde perdeu o seu único filho e Ângela, ruiva escultural, de voz suave, olhos brilhantes e hipnóticos e... uma vontade de ferro. Da cama que era o seu trono, Luciana espicaçava o marido, contra o irmão e a cunhada, incentivando-o a tomar medidas legais para contestar o estranho testamento que terá sido mudado pouco tempo antes da morte do sogro. Ângela, por seu turno, parecia passar ao lado de tudo isto e, sobre os mares tempestuosos destas relações, apoiava o marido na administração da empresa enquanto revelava capacidades de gestão muito superiores.
Eduardo estava feliz. A esposa era de uma beleza estonteante, uma mãe extremosa e uma mulher dedicada... além de uma gestora capaz de administrar a empresa sozinha deixando-o livre para outros assuntos. Cada vez presidia a menos reuniões e dava carta branca a Ângela. Os rendimentos da Conservas Lusas estavam em crescimento. Após a aquisição da maior parte da concorrência durante a gestão do pai, estava-se numa fase de otimização de recursos e processos no “reinado” de ficção de Henrique. Uma das últimas reuniões a que presidiu foi para dar “um puxão de orelhas” a alguns diretores que não queriam acatar as determinações de Ângela e admitir nas reuniões do conselho de direção, com caráter definitivo, a presença de um novo “consultor” na pessoa de João Teixeira, amigo de infância da esposa. Assim podia dedicar-se com mais cuidado à sua última diversão, uma moreninha simpática que trabalhava nos Recursos Humanos.
Era uma manhã como as outras e Ângela estava  no gabinete da administração, furiosa com os relatórios que lhe chegavam às mãos e que davam conta das quedas nas vendas e do crescente volume de reclamações. Aliado à greve que decorria na fábrica da Nazaré, era um caldo explosivo para o seu temperamento pouco paciente... devia estar a ficar velha, pois já não reconhecia os pequenos contratempos pelo seu tamanho.
A parede à sua esquerda, era uma enorme vitrine onde podiam ser apreciados os quase quinhentos metros de extensão dos edifícios fabris. Uma varanda sem outro resguardo que não o vidro e que permitia ver, três pisos abaixo, as enormes caixas da ventilação das câmaras frigoríficas.
Apercebeu-se dos dois vultos à entrada do gabinete a sussurrar. Fingiu continuar a trabalhar. Não precisou de levantar os olhos para identificar João Teixeira.
-    Entra! - Ordenou, ainda sem levantar os olhos, quando ele se preparava para bater na porta.
João entrou seguido de um homem baixo e gordo em cuja calva brilhavam gotas de transpiração. Ela recostou-se, rosto inexpressivo, olhando os dois. Os seus pensamentos corriam em alta velocidade; “João e o Francisco Gouveia, o diretor de produção. Oh, como ela desprezava aquele homem covarde e adulador. Sempre todo transpirado... tinha que o suportar. Era um mal necessário. A presença dos dois a esta hora era tudo menos um bom sinal...”  Não os mandou sentar e continuou a olha-los interrogativamente.
-    Ângela... - Começou João, hesitante. - ...o Francisco veio ter comigo... com um problema.
Ela ergueu uma sobrancelha e debruçou-se sobre a secretária pousando os braços no tampo numa atitude defensiva.
-    Sim?!? - Ela impacientou-se. - Desembucha, vá. Que aconteceu desta vez, Francisco?
-    Bem, doutora Ângela, - O homem ficou apavorado quando a atenção se voltou para ele causando um visível alivio a João. - a ASAE esteve esta manhã na fábrica de Matosinhos.
-    E que tem isso? Não é a primeira vez nem será a última. - Ela alternou o olhar entre os dois homens. - Tratem disso como o costume.
-    O problema é esse... - Começou João.
-    Não fomos avisados. - Explicou Francisco. - E o inspetor que veio não foi o do costume.
-    Falem com ele! Ora bolas, desenrasquem-se! Liguem para o “palhaço” que resolve estas coisas na ASAE. - Ela começa a levantar a voz.
-    Já tentei. - Lamentou-se Francisco. - Não atende o telemóvel e na secretaria da ASAE dizem que está de baixa, doente.
Ela continuava a alternar o olhar que parecia soltar chispas entre os dois homens. Sentia-se encurralada e nenhum daqueles imprestáveis parecia ser capaz de arranjar uma solução. Mexeu-se desconfortável na cadeira.
-    Encontraram algo que não deviam? - Perguntou ela, percebendo já que sim.
-    A carga de Sevilha, que chegou ontem ao fim do dia, não estava ainda arrumada... - Francisco sentia-se cada vez mais infeliz.
-    Merda!!!! - Explodiu Ângela. - Imprestável, idiota! Não foste avisado montes de vezes? Chegue quando chegar, tem que ser imediatamente misturada com as restantes, não se pode deixar à vista o peixe que chega de lá, faziam horas extra e arrumavam tudo! Não é para isso que estás lá?!?
-    Ele tentou. - João saiu em defesa do apavorado homem. - O Francisco pediu para fazerem horas mas o Armandino da comissão de trabalhadores armou ali uma grande confusão e quase se pegaram à porrada à frente dos funcionários. Parecia até que já foi de propósito para apanharem a carga imprópria esta manhã.
-    Merda, merda, merda! - Ela continuava a gritar.
-    Que achas que devemos fazer? - João tentava ser construtivo.
-    Sei lá! - Exclamou Ângela. - Temos que aguardar o relatório. Vamos levar com uma multa gigantesca... isto, se não nos quiserem fechar a fábrica. E esse Armandino... é uma fonte de problemas...
-    Achas que é um problema a resolver? - Perguntou João olhando-a diretamente nos olhos.
-    Senhor Francisco. - Ela pareceu recuperar a compostura. - Vá para o seu trabalho ver se resolve a merda que deixou acontecer. Insista em encontrar esse bendito inspetor para ele fazer valer o dinheiro que lhe pagamos e não se atreva a trazer-me mais más notícias hoje.
O pequeno homem acenou nervosamente com a cabeça e saiu do gabinete em passo de corrida a enxugar a testa.
-    Esse Armandino. - Começou ela pensativamente. - Pode ter alguma coisa que ver com a greve da Nazaré?
-    Não seria nada que me surpreendesse. Desde que reduzimos as quotas de compras aos pescadores locais e começamos a trazer o peixe mais barato de Sevilha que ele tem sido o causador de montes de problemas na laboração e instigador dos trabalhadores que à boca pequena vão comentando a falta de qualidade de algum produto. 
-    Na verdade, João, temos dois problemas... vamos precisar de alguém mais ágil na direção de produção... vê se consegues que um problema trate do outro. Eu vou pensando em quem vou escolher para a vaga na direção.
João contornou a secretária pelo lado direito e debruçou-se sobre o rosto de Ângela beijando-a ternamente na boca.
-    Já sabes que não quero que faças isso aqui. - Ela censurou suavemente.
-    Sim, minha senhora. - Ele brincou abandonando o gabinete num passo apressado.
As coisas estavam a começar a complicar-se. Tinha que resolver este problema sem perturbar Eduardo e a sua concubina. Ele tem que continuar afastado dos destinos da empresa, ela é que tem que gerir aquilo, porque ele não consegue viver com o odioso e fazer o que precisa ser feito. Para agravar a situação, na noite anterior o marido e o cunhado tiveram mais uma violenta discussão sobre a herança. Eduardo quer comprar o quadro da mãe mas Filipe quer metade do controlo da empresa em troca... diz que vai contestar o testamento... não convém nada que ande a “desenterrar fantasmas”... é aquela venenosa da Luciana... mais outro problema a tratar. Mas este terá de ser ela a resolver.
Naquela noite, um vulto que se deslocou-se furtivamente na enorme varanda do segundo piso da vivenda de Eduardo, geminada com a de Filipe, e passou sem dificuldade, da varanda de uma casa para a outra sem necessidade de pisar as telhas do alpendre da entrada.
Em baixo, no jardim, um dos rottweiller farejou o movimento e rosnou baixinho, desinteressando-se de imediato.
Ângela, envergando um fato de macaco de licra preta, ocultou-se nas sombras evitando as áreas iluminadas ou cobertas pelas câmaras de vigilância. Experimentou as portadas da varanda e acabou por descobrir uma que cedeu... naquela noite de verão era praticamente impossível que estivessem todas fechadas. Entrou sem ruído no quarto da cunhada e aproximou-se da cama de casal, onde ela estava sozinha, para se certificar que dormia. Depois, abriu muito devagar, a porta que ligava ao quarto do cunhado. Um ronco ritmado e forte dizia-lhe que estava num sono profundo. Pé, ante pé, pegou a almofada do cadeirão junto da janela e regressou ao quarto de Luciana fechando suavemente a porta de ligação. Aproximou-se novamente da cunhada e calcou-lhe a almofada sobre o rosto adormecido com toda a força. Sobressaltada, a mulher despertou e tentou lutar contra a ameaça que não percebia e esbracejou a tentar agarrar alguma coisa sem sucesso. Ângela ficou ainda mais uns longos segundos a bloquear o rosto depois da vítima ter parado de esbracejar. Atirou a almofada para o chão e contemplou a máscara de morte da cunhada, de olhos esbugalhados e boca escancarada em busca de ar. Saiu por onde entrou tendo o cuidado de deixar as portas como estavam.
Estava “inocentemente” no seu posto de trabalho, no gabinete da administração das Conservas Lusas quando Eduardo surgiu intempestivamente e, num discurso meio atabalhoado, conta que a cunhada fora encontrada morta naquela manhã, com indícios de ter sido assassinada. Filipe fora levado para a esquadra para ser interrogado. 
Aguentou com paciência e respondeu às questões do marido enquanto olhava para a carta que lhe entregaram em mão esta manhã. Era destinada a Eduardo e era do Presidente da Câmara a manifestar grande preocupação com as informações que lhe foram fornecidas relativamente a uma inspeção da ASAE efetuada num fábrica no concelho. Aparentemente foram detetadas graves irregularidades que iriam dar origem a um processo de contra-ordenação muito grave contra as Conservas Lusas.
Assim que o marido deixou o gabinete, entrou João. 
-    Dá-me boas notícias. - Pediu ela.
-    O nosso problema numero um está tratado e o numero dois está em curso. - Piscou-lhe um olho e sorriu. - Mas tu não pareces muito contente.
-    Já temos bronca da grossa com a câmara. Conseguiram falar com o sacana do inspetor?
-    Não. Não está ninguém em casa dele. Já percebeu que alguém atirou merda no ventilador...
Ela pousou o cotovelo na secretária e esfregou o rosto numa atitude de stress.
-    A minha cunhada foi assassinada esta noite. Desconfiam do marido.
-    Aquele lingrinhas? - João não conseguiu disfarçar o espanto. - Foi apanhado?
-    Foi levado para depoimentos.
-    Já lá fica. - Sentenciou.
-    Agora deixa-me por favor. Tenho que escrever a resposta ao Presidente da Câmara e ver como vou dar isso a assinar ao Eduardo... e depois ver com quem falo para limpar esta porcaria sem dar muito barulho.
-    Sim senhora doutora. - Ele piscou o olho divertido e abandonou o gabinete.
Ele não tinha de saber da sua atividade. Aliás, quanto menos soubesse, melhor.
Naquela manhã o marido andou numa agitação só. Telefonava para os advogados, foi por duas vezes ao tribunal para conseguir a libertação do irmão. Não foi autorizado, pois teria que ser ouvido por um juiz e esse só o faria no dia seguinte. Teria de passar a noite nos calabouços da Judiciária.
Ângela começava a ficar preocupada. Eduardo deveria estar contente. Se o irmão fosse preso, acabavam-se os problemas com a herança e teria finalmente o quadro que tanto quer.
Se bem o pensou, melhor o fez e apresentou-se na casa do cunhado, com João, para levantar o quadro da mãe dos Mello.
A governanta que abriu a porta não estava muito segura sobre o que fazer até que Ângela, candidamente, lhe recordou que, se o cunhado ficasse preso, seria ela a decidir o destino dos empregados da casa.
Saíram dali com a enorme pintura embrulhada. Levaram-na para o escritório para a apresentar a Eduardo. Ela até sentia as lágrimas nos olhos ao imaginar a alegria que ele sentiria sentir ao rever o quadro da mãe.
Tudo o que fazia era por aquele homem... Eduardo, seu marido. Já não tinham conta os esforços e sacrifícios feitos por ele, só para o ver feliz. Conseguira que o testamento lhe fosse favorável, melhorara os rendimentos da empresa, facilitara-lhe a vida, permitindo que trabalhe menos... até lhe arranja as amantes... de que ele desfruta durante algum tempo, antes de voltar para ela, arrependido. E agora o quadro. Estava ansiosa por ver a cara dele. Mas não foi naquele dia que a pôde ver pois ele não voltou naquela tarde.
No dia seguinte, disse-lhe que tinha uma surpresa no escritório, mas ele quase nem ouviu, que precisava de ir para o tribunal rapidamente. O irmão iria ser ouvido naquela manhã. Ângela foi retomar o seu lugar no escritório, envolta nos papeis e em cada vez mais reclamações.
 -    Doutora Ângela. - A voz em tom de urgência da secretária puxou-a para fora dos seus pensamentos. - Venha depressa à produção por favor.
 -    Que se passa? - Respondeu de mau humor.
 -    Está lá a Judiciária. Vêm prender o Francisco Gouveia. Está acusado da morte do Armandino Marques.
 -    O Armandino morreu? - Fingiu surpresa.
 -    Sim, tiraram o corpo do mar ontem ao fim do dia. Encontraram a carteira dele em casa do Francisco.
 -    Desço já, já.
Apressou o passo pelo corredor que levava a uma das varandas com vista para área de produção e notou logo o grande ajuntamento de funcionários, em círculo, junto de uma das escadas de acesso ao escritório.
Francisco, com ar infeliz, tinha as mãos algemadas atrás das costas e estava seguro pelo braço por um dos homens à civil da Polícia Judiciária. João falava com outro dos agentes.
-    Que se passa aqui? - Interrogou com autoridade.
-    Bom dia. - Respondeu o que falava com João. - Deduzo que seja a responsável pela empresa, a doutora Ângela Mello. Sou o inspetor Mariano da brigada de homicídios da Polícia Judiciária e temos ordens para deter Francisco Gouveia por suspeita de envolvimento na morte de Armandino Marques.
-    Eu nem sabia que o Armandino tinha morrido. - Disse ela. - Como é que isso aconteceu?
-    Neste momento está a decorrer uma investigação e...
-    Cabra fingida! - A voz estrangulada de Francisco sobrepôs-se. - De certeza que foste tu que o mandaste matar e deitar-me as culpas...
-    Cala-te! - Ordenou o agente que o guardava com um puxão do braço.
-    … o Armandino estava a ser um estorvo, tu própria o disseste. - Continuou ele ignorando a interrupção. - Quantos foram mais? O Fernandes, na greve do ano passado? Que ninguém sabe o que foi feito dele? Quantos mais? As secretárias do diretor que desapareciam de um dia para o outro? Não és uma mulher, és um demónio que saiu dos infernos, vives do mal e vais morrer pelas tuas ações... És maldita, morrerás num lugar escuro, comida por bichos e a tua memória será uma lembrança de horror e repulsa que todos quererão esquecer.
-    Chega! - Gritou o outro agente. - Leva-o para o carro para que não diga mais disparates. Senhora doutora, as nossas desculpas, vamos levar este facínora.
Assim que os agentes abandonaram o portão da fábrica, os chefes de serviço começaram a dar ordens para que todos regressassem ao trabalho.
Abalada pela maldição, Ângela quedou-se, em choque, encostada ao corrimão das escadas, até que João a amparou e ajudou a subir e encaminhar-se para a segurança do gabinete.
Não se acabavam porém, naquela lamentável cena, todas as novidades daquele dia. Chegados ao gabinete da direção, deparam com os dois irmãos, de braços cruzados sobre o peito, que os esperam em silêncio. Sobre a secretária, o quadro desembrulhado da matriarca Mello.
-    Podes dizer-me o que significa isto? - Exigiu saber Eduardo apontando o quadro.
-    Como é que o meu quadro veio parar a este escritório, logo na altura em que sou detido injustamente acusado de uma morte? - Os olhos de Filipe faiscaram de ódio enquanto avançava e agarrava-a pelo braço. - Vamos, responde!
-    Tira daí a mão! - Gritou João empurrando-o com violência.
-    E tu, desaparece-me da frente, cabrão oportunista! - Filipe ameaçou, apontando o dedo a João, após recuperar o equilíbrio.
-    Ou o quê? - João era uns bons vinte centímetros mais alto que Filipe e bastante mais musculado, mas isso não impediu que o outro se atirasse a ele e se envolvessem numa luta.
-    Parem com isso! - Gritou Eduardo numa voz autoritária que ninguém lhe conhecia mas que era bem herança de seu pai. - Parem com isso imediatamente!
João empurrou Filipe para longe de si enquanto protegia Ângela ainda atordoada e incapaz de reagir.
Eduardo postou-se em frente a João e exigiu:
-    Quero falar com a minha mulher, agradeço que se retire.
João olhou para a visada que, com as lágrimas nos olhos, assentiu com a cabeça. Ele afastou-se para trás dela mas não abandonou o aposento.
-    Fala, Ângela. Que está o quadro do meu irmão a fazer aqui?
-    Meu amor. - Ela gemeu. - Sempre te ouvi dizer que adoravas aquele quadro, que o desejavas e só ele te impedia de o ter. Assim que me disseste que ele estava preso, vi a altura ideal para te devolver o que é teu por direito.
-    Não posso crer que achaste que eu iria aceitar tirar uma coisa do meu irmão. Ainda para mais de forma tão torpe, tão vil... onde estão os teus princípios? - Havia uma repulsa no olhar dele que a magoou profundamente.
-    Os meus princípios?!? - Ela olhou-o como se o não reconhecesse- Os MEUS princípios? Os meus princípios, perderam-se no dia em que o mafioso do teu pai me fez casar contigo após ter arruinado o meu... e mesmo assim eu amei-te tanto. Mesmo assim abdiquei de mim para te dar a ti... E sofri em cada humilhação que me fizeste aceitar... em cada amante que tinhas, que eu te arranjava. Em cada coisa que querias e eu conseguia para ti e que tu não agradecias. As sevícias que suportei do baboso do teu pai para que ele mudasse o testamento em teu favor...
-    Eu sabia! - Gritou Filipe fazendo estremecer Eduardo que não acreditava no que estava a ouvir. - Foi por isso que o testamento foi mudado, puseste-te debaixo do velho lúbrico, sua cabra, para conseguir o que querias. E a Luciana? Foste tu não foste? Tu, ou essa bosta que trazes sempre contigo e que sei que metes na tua cama.
-    Que dizes, infeliz? - Eduardo pareceu recuperar.
-    Sim, é verdade! - Reafirmou o irmão. - Já o sei há muito tempo e não to dizia porque não irias acreditar em mim.
-    Matei sim! - Reconheceu finalmente Ângela. - Matei essa invejosa que te envenenava contra nós!
Filipe atirou-se ao pescoço dela e chocaram ambos contra o enorme vidro através do qual se podia admirar toda a extensão da fábrica. Rachou, mas suportou o impacto. João precipitou-se a ajudar e os três, chocaram uma vez mais contra o vidro. Agora era peso a mais e ele cedeu em mil pedaços... Filipe caiu com a cabeça para fora e com o corpo dentro, mas João e Ângela caíram, desamparados, através da vitrine, agora sem proteção.
João bateu na varanda imediatamente abaixo com uma pancada surda que fez tremer as paredes.  Ângela, bateu com força na esquina da mesma varanda e foi a rodopiar mais um piso para o meio das enormes ventoinhas de refrigeração das câmaras frigoríficas. Um buraco enorme numa das cabines anunciava o lugar da queda.
A equipa de bombeiros levou mais de duas horas para cortar a amalgama de ferros e plástico da cabine que impedia o acesso ao corpo. Quando chegaram perto e conseguiram iluminar o local, viram uma quantidade enorme de ratos a fugir em todas as direções, deixando exposto um corpo contorcido, semidevorado.
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domingo, 16 de agosto de 2015

Luis e Isabel seleccionado para a coletânea "Quando o Amor é Cego




From: Arroz Papel 
Date: domingo, 16/08/2015 à(s) 22:16
Subject: Quando o Amor é Cego
To: Manuel Amaro


Boa noite, Manuel 

O seu texto

Luís e Isabel

concorrente ao  5º Concurso Literário da Papel D´arroz Editora

 "Quando o Amor é Cego"

foi seleccionado para integrar a  Colectânea - Quando o Amor é Cego 

Depois de apurado o vencedor – Sérgio Sola – já o 5ª Autor premiado pela Papel D´Arroz Editora!

Vamos produzir mais uma fantástica colectânea.

Desde já,  os nossos agradecimentos  a todos os participantes que proporcionaram momentos deliciosos a quem teve o privilégio de vos ler -  no Blogue e na página da PAPEL D´ARROZ.

Os vossos textos já estão em revisão e formatação.

A Colectânea  do Concurso Literário - “Quando o amor é cego!” - será apresentada em conjunto com a Colectânea, relativa ao mesmo tema:
“Amar (S)em Desespero"”

(contamos fazer a apresentação conjunta em Outubro de 2015)


No decorrer de todo o processo vamos dando as indicações pertinentes.

O Autor não tem obrigatoriedade de compra – Na Colectânea "Quando o Amor é Cego"

poderá adquirir os exemplares que entender, para tal
iremos encontrar o melhor preço, para o Autor.

O Autor não perde os direitos de Autor - sobre o texto a integrar -  “Quando o Amor é Cego” -  assim,  poderá utilizá-lo, futuramente,  como entender.

A colectânea estará disponível para venda na Página Facebook da PAPEL D´ARROZ e através de mail:


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sexta-feira, 31 de julho de 2015

Já à venda: Terras de Xisto e Outras Histórias



Terras de Xisto e Outras Histórias" é uma colectânea de contos diversos escrita por Manuel Amaro Mendonça sem preocupações com um tema ou mote que os una.
Em muitos deles, circunstâncias dramáticas obrigam a transformações ou ações do mesmo nível e os personagens são muitas vezes levados a contrariar a sua própria natureza. Noutros, as guerras são interiores, com tempestades de sentimentos antagónicos.

Mais informações e encomendas: https://www.debaixodosceus.pt/terras-de-xisto
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terça-feira, 28 de julho de 2015

Tudo em jogo

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



** Este conto foi o 3º Classificado no 6º Concurso literário da Papel D'Arroz Editora em 2015

Naquele fim de tarde, a pequena e escura taberna estava enevoada de fumo de tabaco e as vozes tonitroantes de homens enchiam o espaço.
Por entre as mesas toscas de madeira, ladeadas de bancos corridos, o chão de lajes grosseiras estava manchado e sujo de anos de vinho entornado. Os candeeiros a petróleo, nas paredes de madeira enegrecida, travavam uma luta desigual com as trevas e o fumo que dominavam o estabelecimento. Uma enorme lareira crepitava e emprestava mais um pouco de luz bruxuleante a todo o ambiente.
Estavam os clientes todos amontoados, ao fundo, em volta da mesa onde estavam a ser decididos destinos.
Sentados, cercados pela pequena multidão, estavam quatro homens. Dois deles, eram sem dúvida camponeses, vestes modestas e rostos tisnados do sol com barbas crescidas, cortadas há muitas horas. Outro, envergava um blaser preto, discreto e rosto barbeado mas também queimado de muitas horas ao ar livre. O último deles aparentava ser o mais abastado de todos. Casaca preta comprida, cabelo impecavelmente cortado, rosto pálido e barba curta, devidamente aparada, sobreposta por um respeitável bigode de pontas retorcidas.
Os três primeiros, habitavam aquela aldeia e eram jogadores assíduos de dados na tasca do António “Bisarma”, um gigante com um metro e noventa e mais de cento e vinte quilos de peso. O ultimo deles era um recém chegado que se apresentou como um negociante de propriedades chamado Fernando Sarmento.
Os dois camponeses, o Manel “Esbarrola” e o “Xico da Horta”, jogavam habitualmente com o João Morais, lavrador proprietário conhecido pelo “Fanhoso”, em apostas mais ou menos elevadas. Muitas vezes as partidas levaram os magros rendimentos dos camponeses, mas outras tantas, o lavrador deixou gordas maquias nos necessitados bolsos dos companheiros.
Naquela tarde, o forasteiro entrou na taberna para beber e, após algum tempo a assistir ao jogo, mandou servir mais uma rodada de tinto a todos os presentes, apresentou-se e perguntou se podia juntar-se ao trio.
Após um olhar rápido entre todos, assentiram e Sarmento sentou-se ao lado do Fanhoso.
Em cima da mesa, além dos quatro dados e uma caneca de barro  com vinho,  três copos de madeira e pequenos montes de moedas ficavam à direita de cada jogador.
Jogavam ao vinte e um. Cada jogador lançava os quatro dados e, se o valor fosse inferior a vinte e um, escolhia um ou mais dados e podia jogar duas vezes até atingir o valor máximo menor ou igual que vinte e um. Se o valor fosse ultrapassado, perdia imediatamente, senão, finda a ronda de todos os jogadores, ganhava o que conseguisse o valor mais elevado.
As moedas corriam em cima da mesa ora para um lado ora para outro e, após algumas jogadas equilibradas, o forasteiro rapidamente começou a arrebanhar todo o dinheiro da mesa.
Mais duas canecas do tinto adamado se beberam antes do Xico da Horta, nervoso, gaguejar um “Já não tenho tusto” e levantar-se, juntando-se aos assistentes.
O Manel Esbarrola, assim conhecido pelo temperamento irascível e pelas gabarolices que lhe eram característica, começou a “ferver” assim que as últimas moedas se lhe escaparam da mão:
-        Demónios dos infernos. Excomungado jogo que não me dá sorte nenhuma. - Ferrou um soco na mesa que fez saltar dados, moedas, copos e canecas. - Não consegui fazer as sortes virarem.
Sarmento olhou surpreendido para o Fanhoso que acenou negativamente, de olhos no chão, desaprovando a já esperada conduta.
-        Eh, lá, ó Manel! - Trovoou o Bisarma de trás do balcão. - Já sabes que não quero cá coices! Se escoicinhas na mobília ponho-te na rua.
O Esbarrola voltou-lhe as costas e atirou um braço ao ar enquanto resmungava um “Deixa-me cá”.
Os outros dois jogadores olharam-se e o Fanhoso negou com a cabeça, informando que também para ele o jogo estava terminado.
O forasteiro ficou-se sentado à mesa a brincar com os dados enquanto os restantes clientes retomavam os lugares que ocupavam antes do jogo se tornar interessante.
-        Deixe-me jogar mais uma. - Pediu o Esbarrola de repente.
Sarmento olhou-o nos olhos antes de responder:
-        Não disseste que não tinhas mais dinheiro?
-        Sim, mas posso jogar outras coisas. - Voltou-se para o companheiro que se mantinha ao seu lado. - Xico, arranja-me cá um cigarro.
-        Arre porra, homem, os últimos dois que fumaste fui eu quem tos deu. Achas que a mim não custam dinheiro? - O da Horta atirou. - Hoje não larpas mais nenhum que eu te dê.
Manel deitou um olhar azedo ao amigo antes de tornar ao forasteiro.
-        Então? - Inquiriu. - Que me diz vossemecê?
-        Que tens que me possa interessar? - O indivíduo tornou o olhar para a mesa enquanto brincava com os dados numa atitude descontraída. - Tens terras?
-        Terras não tem. Esse lôrpa perdeu, as que o pai lhe deixou, há dois anos nessa mesa. - Interveio o taberneiro de braços pousados no balcão e atento à conversa.
-        Não tenho terras, mas tenho um cavalo. - Afirmou o Esbarrola ignorando o Bisarma.
-        E queres jogar o teu cavalo? O teu ganha pão? - Perguntou o estranho fitando-o nos olhos.
-        Não faças isso, Manel. - Avisou o Xico da Horta. - Se o perdes ficas sem emprego ou vais para carrejão.
-        Sim quero! - Ele ignora completamente os restantes.
-        Sente-se por favor. Eu aposto todo o dinheiro que aqui ganhei esta noite contra o teu cavalo. - Convidou Sarmento. - Senhor António, traga mais uma caneca.
Assim que o adversário se sentou, o homem tirou do bolso do casaco um pequeno molho de papeis. Soltou um deles, que se revelou uma folha amarelada dobrada em quatro e perguntou:
-        O teu nome é Manuel...
-        Esbarrola! - O grito, coroado de gargalhadas, veio de uma das outras mesas. Todos estavam atentos à conversa.
-        ...Bugio. - Esclareceu Manuel, ignorando-os.
Continuando o seu ritual, o forasteiro retirou de outro bolso uma caneta que destapou e começou a escrevinhar enquanto lia alto:
-        Eu, Manuel Bugio, declaro que este documento atesta a propriedade do meu cavalo e será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de de dados. Testemunha deste acordo foi o senhor António Pereira, taberneiro.
O tasqueiro pousa a caneca sobre a mesa e olha espantado para a caneta de tinta permanente que o homem empunhava. Nunca tinha visto nenhuma, embora já tivesse ouvido falar, até o senhor abade escrevia com aparos que molhava na tinta.
-        Senhor António. - Interpelou Sarmento. - Quer ser nossa testemunha, ler e assinar este contrato?
O Bisarma repetiu, de forma errática, as mesmas palavras que escutaram e garatujou o seu nome, numa letra infantil.
-        Agora você, Manuel. - Pediu o forasteiro.
-        Eu... não sei ler nem escrever. - Lamentou.
-        Não há problemas. Pegue na sua faca e faça um corte num dedo. Ponha uma pinga no fundo do papel e calque com um dedo..
Lentamente, os restantes clientes da taberna levantavam-se e refaziam o círculo à volta da mesa com os dois contendores e observaram o estranho ritual.
Tiraram as sortes e  Manuel começou... era prometedor, encheu o copo e esvaziou-o. Ganhou a primeira mão e passaram à segunda, também iniciada por ele, mas foi Sarmento quem arrebatou maior pontuação. Estavam empatados e a próxima decidiria tudo. Manuel encheu o seu copo e despejou-o quase de um trago.
O forasteiro lançou os dados e na sua jogada não conseguiu mais que um dezoito. Animado, Manuel iniciou o seu jogo; o lançamento só lhe deu quinze pontos; uma quadra, duas quinas e um ás. Pegou no dado com apenas uma pinta e lançou-o. Saiu um duque; fez um gesto de contrariedade, dezasseis ainda não chegava, só tinha mais uma hipótese. Relançou o dado novamente para obter, de novo, o um. Perdeu.
Sarmento, calmamente, dobrou o papel que comprovava a propriedade do cavalo e meteu-o no bolso.
Manuel, ainda debruçado sobre a mesa, estava em transe mas, de repente, levantou-se com brusquidão atirando o banco onde estivera sentado para o chão. Deu dois murros com os punhos fechados na mesa. Sarmento recuou instintivamente mas não se levantou. O taberneiro agarrou no braço de Manuel e preparava-se para o “acompanhar” à porta quando ele mudou de atitude:
-        Senhor Sarmento, por favor. Não me faça isto... - Implorou.
-        Isto o quê, meu amigo? Jogamos ambos, de boa fé, de acordo com o que nos propusemos. Eu ganhei, você perdeu.
-        Por favor. Eu prometo que lhe pago o valor do cavalo. Só preciso de mais algum tempo.
-        Não posso. Tenho que ir embora daqui a pouco.
-        Por favor. Não me deixe assim. Dê-me mais uma oportunidade...
Havia um silencio pesado na taberna, ninguém respirava a aguardar a resposta.
-        Está bem. - O forasteiro anuiu ao mesmo tempo que se ouvia um suspiro aliviado de toda a audiência. Mas ele logo continuou. - Que mais tens para jogar?
-        Vai-te embora rapaz. - Aconselhou o Bisarma.
-        Manel, não insistas, hoje o mar não tá para peixe. - Pediu o Quim da Horta. - Deixa ficar assim. Alguma coisa se há-de arranjar.
Outras vozes faziam coro, condoídos com a situação do homem, que apesar de tudo era responsável pela sua própria desgraça.
-        A minha casa. - Manuel sentenciou de forma quase inaudível. - Quero jogar a minha casa.
-        Espera Manel! - Interveio o Fanhoso – Não faças isso! Eu ajudo-te alguma coisa, adianto-te algum dinheiro. Não jogues a casa que te desgraças, homem.
-        Ouve, Manel. - Agora era o taberneiro que insistia. - Não faças isso, esse homem não quer saber de ninguém, está a causar a tua desgraça! Mataste a tua mãe de desgosto quando perdeste as terras, deixas a família passar fome, porque gastas tudo no jogo. Agora vais deixa-los sem teto? Valha-te Deus, lembra-te que a tua mulher está grávida e que tendes já um filho. Que queres fazer da vida, celerado?
Manuel sacudiu a manápula pesada do Bisarma e insistiu com Sarmento:
-        Que me diz? - Tudo o que ganhou hoje, cavalo incluído, contra a minha casa. Não disse que está interessado em propriedades?
-        Sente-se Manel. - Sarmento permitiu-se um sorriso de escárnio enquanto tirava novamente o pequeno maço de folhas amareladas de onde tirou uma cuidadosamente dobrada. - Vamos escrever isto, sim? Eu, Manuel Bugio, declaro que este documento atesta a propriedade da minha casa e será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de de dados. Testemunha deste acordo foi o senhor António Pereira, taberneiro.
-        Eu não assino isso! - Recusou-se o Bisarma. - Não vou ajudar a desgraçar esse infeliz.
-        Porque não? - Perguntou Sarmento. - E o senhor Xico da Horta? Quer assinar? Devolvo-lhe o dobro do dinheiro que perdeu esta noite.
O homem corou e notou-se que travava uma terrível luta interior. No entanto, a necessidade de dinheiro era mais forte, aproximou-se e gemeu um quase inaudível “Desculpa Manel”.
-        Testemunha deste acordo foi o senhor Francisco... - Continuou o forasteiro após riscar o nome do taberneiro.
-        …Terroso. - Concluiu o Xico. - Eu também não sei escrever.
-        Não tem mal. - Descansou-o Sarmento. - Só preciso de uma cruz. A promessa dele é que exige sangue.
Depois de todo o ritual terminado, a mancha de sangue apensada em mais um contrato, o forasteiro define mais uma regra:
-        Apenas uma jogada cada um. Estou a ficar sem tempo. Começa o Manel.
A tremer, Manuel apertou os dados com toda a força antes de os lançar para o meio da mesa. Olhou incrédulo para o resultado. Contou por duas vezes as pintas, todos festejaram, vinte de uma mão só! Era um milagre, todos gritavam, ia recuperar tudo e ficava com lucro.
Sem perder a calma, Sarmento atirou os seus quatro dados que pareceram demorar uma eternidade a imobilizar-se e... não era possível! Dois seis, um cinco e um quatro! Vinte e um! Ele conseguiu suplantar de uma mão só uma jogada quase única, só podia ser obra do Diabo!
-        Por todos os demónios!!! - Berrou Manuel fora de si enquanto atirava com os dados contra a parede e escacava a caneca no chão.
-        Chega! - Gritou o taberneiro arrastando Manuel pelo braço. - Eu avisei-te, todos te avisamos, não vais agora fazer baderna aqui e partir-me a tasca toda. Põe-te lá fora. O frio vai arrefecer-te essa cabeçorra e pensar na grande merda que fizeste esta noite.
-        Senhor Sarmento, por favor! - Implorou Manuel enquanto era arrastado pelo gigante. - Não se vá embora! Espere um bocadinho, eu vou arranjar algum dinheiro e falamos outra vez, espere....
-        Só vou beber mais um copo e depois vou embora. - Gritou o forasteiro antes do taberneiro bater a porta na cara ao destroçado Manuel.
 Cá fora já estava escuro. Pequenos fiapos de neve esvoaçavam empurrados por um vento ainda suave mas gelado. Ele estremeceu com a mudança de temperatura mas isso não impediu que se sentasse na pedra friíssima que servia de banco.
Chorou. Chorou ali, que ninguém o via. Sozinho, no escuro, porque os homens não choram e ele não podia passar por mais essa vergonha.
Os efeitos do vinho e dos nervos produziam um zumbido irritante dentro da cabeça que tinha dificuldades em manter erguida.
Decidido, levantou-se, limpou as lágrimas com as costas da mão e caminhou em passos largos em direção a casa. À Casa que já não era sua.
Entrou porta dentro como um furacão, abrindo a porta com força, fazendo-a bater na parede.
-        Credo! Homem de Deus que me matas de susto! - Alarmou-se Maria das Virtudes, sua mulher, que se afadigava na cozinha. A barriga proeminente anunciava mais uma boca para alimentar.
Não lhe respondeu e passou por ela, como se não a visse, com um olhar alucinado e o rosto sujo das lágrimas que escorreram.
Entrou no quarto onde dormiam e começou a remexer as gavetas da mesa de cabeceira e depois nas gavetas da cómoda.
Maria aproximou-se lentamente, apavorada, sem se atrever a dizer palavra enquanto observava a revista descontrolada que estava a ser feita.
-        Que está a fazer o pai, mãe? - Uma voz fina de criança fez-se ouvir quando um menino se juntou à mulher e agarrou a borda da saia.
-        Shhh, filho, não digas nada. Vai para a tua cama, vais? - A voz tremente de Maria pediu.
Entretanto Manuel tinha atingido o seu objetivo e exibia, triunfante um cordão em ouro que retirara de um dos gavetões.
-        Que vais fazer com isso? - Ela esforçou-se por mostrar firmeza.
-        Cala-te, mulher! Isto é a nossa salvação! - Retorquiu ele.
-        A nossa salvação? Ou o resto da nossa desgraça? Há quanto tempo não entra dinheiro nesta casa, que o gastas todo na taberna e no maldito jogo? Esse é o ultimo valor que temos, tirando a casa e o cavalo. Foram os meus pais que mo deram. Não vou deixar que o leves.
-        Não vais deixar? - Ele torceu o rosto numa careta de desprezo e desafio enquanto parecia crescer em frente a ela. - Já não temos casa nem cavalo. Com este cordão vou tentar que ao menos fique a casa.
-        Ah, excomungado, maldito! - Ela começou a agredi-lo com sapatadas pouco eficazes. - Amaldiçoada seja a hora em que o diabo te pôs no meu caminho!
-        Está quieta, cabra estúpida! - Ele começou a soca-la com o cordão envolto na mão. - Está quieta ou dou cabo de ti.
Ele continuou a bater-lhe enquanto ela caía e gritava e continuou a bater-lhe depois que ela se calou. A criança chorava alto, agarrada à mãe até que ele lhe deu um estalo que a atirou ao chão, atordoada. Deu mais dois pontapés na mulher e preparava-se para sair quando irrompem pela casa o pai e a mãe de Maria que acudiam aos gritos da filha.
Depois de uns segundos de espanto, o homem atirou-se a Manuel e envolveram-se numa sequencia de murros e pontapés  que se arrastaram até à cozinha enquanto a mulher acudia à filha que jazia no chão, balbuciante. Agora era outra a mulher que gritava e chorava agarrada à filha e ao neto.
Na cozinha, Manuel tentava, sem sucesso, soltar-se do furioso homem que o agredia. Devolvia os socos e tentava defender-se como podia até que chocou contra uma banqueta de madeira que quase o fez cair.
Evitando um ultimo soco,  pegou na banqueta e começou a agredir o sogro com toda a fúria até que este se imobilizou no chão.
Largou “a arma” e saiu a correr.
Dirigiu-se para a saída da aldeia, e, quando chegava à encruzilhada, avistou Sarmento que se afastava, montado num cavalo e levando outro pela arreata.
-        Senhor Sarmento, senhor Sarmento! - Chamou.
O homem imobilizou-se e voltou-se para ver quem o chamava.
Assim que Manuel se aproximou o suficiente, com o rosto marcado e com sangue, as roupas rasgadas, o interpelado comentou do alto da montada:
-        Você não desiste, homem? Não deveria estar a procurar um lugar onde ficar? Para a semana estarei cá de novo e quero a minha casa vazia.
-        Por favor. - Implorou Manuel. - Não me faça isso. Veja, tenho aqui este cordão de ouro, pelo menos dê-me o papel da casa.
O homem desceu, pegou o cordão, examinou-o e devolveu-o ao proprietário:
-        Acha que isso é suficiente para comprar a casa?
-        Não. Eu sei que não. Mas se o aceitasse como boa-fé, para a semana terei mais dinheiro e vou pagando até ao valor que achar bem. Juro!
-        Quer jogar uma mão? - Sarmento exibiu um riso de escarninho. - Ganha e fica com a casa e o cavalo...
-        E se perder, perco o cordão também... - Concluiu o desgraçado camponês.
-        Não. Vamos apostar outra propriedade que tens.
-        Outra? - Admirou-se. - Não tenho mais nenhuma!
-        Tens sim. Tens os teus serviços... a tua vida.
Manuel olhou-o, incrédulo. O vento continuava a atirar flocos de neve que esvoaçavam entre os dois homens enquanto eles tentavam ler os pensamentos um do outro através dos olhos.
-        Os meus serviços? Que eu seja teu criado?
-        Não própriamente meu, também eu tenho um patrão. Seriamos como colegas.
-        Mesmo que eu perca... - Sentenciou Manuel – Rasgas o papel da casa?
-        Sim, pode ser. - O outro anuiu, tirando do bolso mais uma folha amarelada que começou a rabiscar na sela do cavalo enquanto dizia em voz alta: - Eu, Manuel Bugio, declaro com este documento que me entrego de corpo e alma ao serviço do Grande Comandante que será entregue a Fernando Sarmento se ele me ganhar a uma partida de de dados.
Sarmento passou-lhe o papel que ele olhou, com olhos vazios, tentando perceber a enormidade do que fazia com aquele papel que não sabia ler.
-        Quem é o Grande Comandante? - Questionou.
-        Apenas uma pessoa muito importante que tem grandes exércitos de homens às suas ordens. Não gosta que usem o seu nome em vão, pelo que nunca o escrevemos e chamamo-lo sempre de Grande Comandante. Já sabes o que fazer, não é? Uma pequena gota de sangue?
-        Não há testemunhas... - Observou Manuel, ausente.
-        Não são necessárias. Este contrato não pode ser quebrado. - Rematou Sarmento pousando os dados sobre a pedra talhada que servia para as pessoas descansarem das jornadas.
-        Deixas mesmo a casa? - Perguntou uma vez mais enquanto marcava a impressão digital com sangue.
-        Está aqui o papel. Joguemos em cima dele. Se perderes podes fazer com ele o que quiseres... e se ganhares também, claro. Está aqui o do cavalo. Jogamos só uma vez cada um!
-        Joga tu primeiro. - Manuel convidou.
Sarmento atirou os dados e saíram nove pontos, Uma quadra, dois duques e um ás. Ele jogou todos menos a quadra. Obteve uma sena, um terno e outra quadra; dezassete pontos. Jogou o terno e saiu um duque... ficou-se pelos dezasseis.
Animado, Manuel jogou. Estava ali a oportunidade de recuperar tudo... finalmente a sorte iria sorrir-lhe! Só precisava de mais um ponto que ele.
Os dados rolaram, preguiçosamente, até se imobilizarem, obscenamente, em quatro horríveis senas! Vinte e quatro pontos de uma só mão! Ultrapassou os vinte e um. Perdeu uma vez mais!
Em choque, deixou-se ficar, digerindo lentamente tudo o que tinha jogado e perdido...
-        A casa fica para minha mulher? - Gemeu a pergunta de forma quase inaudível.
-        A tua mulher não passa desta noite... perdeu o vosso filho e não está nada bem... o teu sogro nunca mais vai ser o mesmo, mas viverá. A tua sogra cuidará do outro menino e ficarão bem! - Explicou Sarmento enquanto montava.
-        Como sabes tudo isso?
-        Há muita coisa que eu sei... em breve, também tu saberás. De qualquer modo essa família já não é tua, agora, pertences a outra maior. Anda, irmão, monta no teu cavalo e vamos levar a desgraça a outro lado.
Os dois cavaleiros afastaram-se na estrada batida pela neve que o vento atirava com uivos fortes. Com ela voavam também dois papeis amarelos que atestavam a condenação do vício de um homem.



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