quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005

Ciúme

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


 
Foto: Fernando Mafra - Flickr
Dsf

O céu estava de um cinzento opaco sem o mais pequeno espaço entre as nuvens ameaçadoras que rebuliam nas alturas.
Pingas grossas mas espaçadas caíam aqui e ali convidando os últimos resistentes do funeral a abandonarem o campo das últimas moradas.
E ali estava eu. Um pouco afastada da ação, junto a uma árvore. Misteriosa;
Casaco comprido negro ocultando as formas, cabelo preso na nuca disfarçando o seu volume luxuriante… Ninguém me reconheceria à primeira vista mas também não estava interessada em ser reconhecida, antes em passar despercebida.
Estava livre finalmente. Aquele amor que me sufocava e descontrolava, aquela paixão tresloucada que me dominava, acabava-se ali, naquele instante.
Afundava-se na terra que os coveiros atiravam para dentro do buraco lúgubre e negro que continha o corpo sem vida do homem que eu mais amei na minha existência…
Mas porque é que eu não me sentia melhor? Porque é que não tresandava alegria, não exalava liberdade, se era o que mais ansiava, o que mais pedia… Libertar-me daquela voz que me enlevava, daquele olhar insinuante, daquelas palavras hipnóticas.
Não sei como o pude amar assim… Ele era apenas um homem, apenas isso.
O cemitério estava quase vazio… Apenas uma mulher ficou parada junto à cova que o tragou.
Ficou-se vendo a sepultura que se enchia debaixo de vigorosas pazadas soterrando os restos de uma existência tão doce como cruel, tão carinhosa como indiferente, tão importante como inútil.
Deixou-se ali até ao fim convencendo-se do início de uma nova vida sem a presença que durante anos fez parte da sua.
Também ela deverá sentir a libertação que eu sinto, irmã da minha dor, fraterna no meu sofrimento. Também ela se libertou do seu encanto hipnótico que nos fazia aceitar o inaceitável, que nos fazia amar o odioso… Também ela sofre.
Maldito e louvado sejas meu amado.
Por fim abandonou a sepultura e encaminha-se para a saída passando próximo de mim. Os seus olhos castanhos vivos, húmidos, fitaram-me e reconheceram-me sem nunca me terem visto. Foi ódio que brilhou por instantes logo apagado pela dor que lá habitava.
Estacou mesmo em frente a mim:
- Eras tu então, não eras?
Enfrentei o olhar dela com dificuldade mas não consegui responder. Como as minhas pernas tremiam.
- Agora não interessa mais. – Continuou baixando os olhos – Nem é teu nem é meu. Acabou. Foi uma vida a alternar entre campos de rosas e imensos silvados, de torturas imensas de novo aos píncaros do céu. E eu perdoei sempre… Sabe Deus a que custo, não conseguia estar muito tempo zangada com ele… - Suspirou e olhou-me nos olhos novamente - Não foste a primeira, sabes? E acho que não serias a última, mas ele voltava sempre para mim.
Tentei falar mas havia um nó na garganta que não deixava sair som. Olhei-a e não consegui impedir que uma lágrima rebelde corresse dos meus olhos.
A expressão dela suavizou-se um pouco e com um ligeiro sorriso deu-me duas reconfortantes palmadas no braço enquanto dizia à laia de despedida:
- Não precisas dizer, eu sei... Também eu.
Seguiu o seu caminho afastando-se enquanto eu empurrava as costas contra a árvore, ofegante, apercebendo-me de que devia ter estado sem respirar todo este tempo.
Não entendo. Ela deveria sentir-se como se lhe tivessem tirado um peso de cima. Sem ter de estar constantemente a olhar por cima do ombro, há espera que aparecesse a rival que ganhasse a corrida e lhe tirasse o seu homem… o meu homem… Que sei eu?…
Não é possível que também ela se sentisse como eu, numa hora no céu e na outra no inferno. Num momento envolta em doçuras e no outro apertado em arame farpado. E continuasse a amá-lo… Era apenas um homem, que tinha de especial?
Caminhei timidamente até à terra revolvida de fresco coberta com as flores de gente que eu não conhecia… Desconhecidos de uma vida do meu amor que eu ignorava. Tantos. E eu por vezes achava que o conhecia muito bem para logo em seguida descobrir uma nova faceta que pensava não existir ou que parecia não lhe pertencer.
Aos poucos as memórias acudiam-me. Os momentos de doçura, de carinho, do amor que exalava como ninguém. Não era possível que ele pudesse transmitir tanto amor quando estava comigo… Não posso crer que alguma vez ele conseguisse fazer o mesmo com outras, ama-las como me amava a mim…

- Ele disse-me uma vez que amava cada mulher como se fosse a primeira. - A voz a meu lado sobressaltou-me e fez-me ver uma outra mulher vestida de negro que parecia ter-se materializado naquele momento.
Mirei-a. Alta, morena, rosto firme e magro, elegante… Típica.
- Uma vez perguntei-lhe como conseguia ter várias mulheres ao mesmo tempo. – Nova “viúva” materializou-se ao outro meu lado. – Respondeu-me que cada uma era um universo que ele amava profundamente e sem cobranças.
Cabelo castanho, rosto pálido, marcado pelos anos, mas ainda bonito. Não me surpreendeu.
- Uma vez sussurrou-me ao ouvido – Desta vez a voz vinha de trás de mim - Que ele era como uma brisa. Acariciava todas suavemente mas deixando marcas profundas como a recordação de uma brisa fresca nas noites de calor.
Voltei-me. Não havia uma mas várias mulheres todas de negro que tinham vindo prestar homenagem ao homem de que eu me libertei, de quem elas se libertaram… De quem eu nos libertei…
Rostos, todos diferentes, tristes, mais cansados, menos cansados, mais idade menos idade. Pele limpa, sardas… Variedade… Pedaços da vida do meu amor, folhas que durante algum tempo vogaram ao sabor do mesmo vento que eu. Estrelas que por algum tempo da vida empalideceram com o brilho do ao sol que ele foi.
Um sol… Sim, acho que se podia chamar assim. Os risos eram poucos mas sinceros e convidativos… Nunca se zangava comigo... e eu zanguei-me tantas vezes com ele. Era desconcertante e fazia-me sentir confusa.
- Se ele me pedisse o mundo eu dar-lho-ia. – O murmúrio saiu do meio delas, não consegui distinguir qual.
- Nunca cobrou nada, sempre aceitou o que lhe dei e deu-se com grande intensidade. – Sobressaíram uns olhos verdes.
- Quando ele estava comigo, era comigo que estava, das outras eu não queria saber. – Um rosto magro aparentando ser mais velha que a maioria.
- Mas tu queria-lo só para ti. – A acusação pareceu um coro. – Não podias suportar partilhar a dádiva de amor que ele trazia com ele. Tinhas que acabar com tudo.
- Libertei-nos! – Gemi. – Libertei-vos.
- Livre era ele e deixava-nos viver em volta dele e saborear do seu amor e dedicação. Ainda que por pouco tempo. – Uma delas, elegante, de longos cabelos negros enfeitados com fios de prata, adiantou-se.
- Uma vez disse-me que a vida é tão curta e o amor tão vasto… – Disse outra cujo cabelo castanho curto e o rosto sardento davam-lhe um aspeto infantil – … que na hora em que pensasse amar apenas uma mulher estaria a morrer... ou já morto.
- Fazia-me sentir a mulher mais amada do mundo quando me abraçava, beijava e dizia coisas maravilhosas. – A pequena cicatriz debaixo da vista esquerda não a desfeava, antes dando um aspeto exótico – Outras vezes, era o meu amigo e confidente que me ouvia contar as minhas tristezas, incansável, atento, reconfortante.
- O sexo era extraordinário. – O piercing no nariz e as enormes argolas nas orelhas davam-lhe um ar de cigana – Calmo, decido, atento às minhas necessidades.
- Sim, mas mesmo que não quiséssemos sexo, - Rosto magro, nariz fino e óculos de hastes finíssimas – conseguia ter uma conversa inteligente…
- Sim, e tu destruíste tudo isso. Destruíste um homem que não te cobrou mas que tu cobraste, que não te exigiu mas que tu exigiste, que te amou e que tu sofregamente devoraste. – O rosto largo e fortemente bronzeado projetou um hálito quente e perfumado quando me fez a acusação quase nariz com nariz.
Fiquei-me, lágrimas nos olhos, de frente para o júri que já tinha dado o veredicto: Culpada.
Culpada de amar à loucura. Culpada de me descontrolar e achar que podia segurar a areia quente de um belo dia de praia na minha mão. Culpada de achar que ele só podia ser meu. Culpada de me deixar iludir por aquele anjo/monstro que durante tanto e tão pouco tempo encheu de amor a minha vida e infernizou o meu amor-próprio.
Findo o julgamento, todas se começaram a afastar, cada uma numa direção diferente. Cada uma para os seus próprios afazeres, quem sabe, à procura de um outro homem que consiga encher um pouco das suas existências como aquele fizera…

Fiquei-me ali recordando aquela hora há duas noites atrás… A discussão, invariavelmente sobre um potencial caso. A calma dele a refutar os meus argumentos, a astúcia dele a fazer-me crer no incrível, a argúcia dele a fazer-me aceitar o inaceitável.
Por fim, os beijos. As palavras doces que me tiravam a sensatez, o toque suave que me excitava à loucura.
Não me podia perder mais e tinha de me libertar daquele inferno quente/frio, daquele céu fresco/escaldante que era a minha existência nos últimos tempos ao lado do homem que amava.
Soltei-me. Abri o porta-luvas onde sabia que ele guardava a arma e, sem pensar, descarreguei o carregador naquele peito carregado de amor que não era só meu.
É horrível que aquele rosto não mostrou, nem aí, fúria. Após a expressão de surpresa inicial, deixou-se descair, sem um gemido, com um ar de tristeza, de pena. De deixar esta vida, de me deixar, de mim… a elas... Sei lá.
Libertei-me de um pesadelo ou estarei agora a viver um?

Ao fundo do cemitério, à saída, começavam a juntar-se alguns polícias que apontavam para mim… Assim ia acabar tudo. Presa por libertar o mundo de um monstro, libertar o mundo de um anjo do amor e do engano…
Os polícias chegam ao pé de mim e agarram-me os braços com força e prendem-me as mãos atrás das costas com as algemas apertadas e frias e eu sinto-me sufocar…

Dou um salto na cama. Os meus olhos levam algum tempo a habituar-se à semi-obscuridade do quarto. A meu lado, meu marido dorme placidamente com um respirar rítmico e pesado.
Tudo está normal… Era apenas um pesadelo, está tudo bem e eu estou aqui no meu quarto. Forço-me a começar a respirar normalmente enquanto recupero de tão violento pesadelo.
Encosto-me calmamente ao meu marido evitando acorda-lo e procurando um pouco de segurança para o medo que senti neste sonho.
Amanhã será outro dia, vai amanhecer, sairei de casa e irei ter com o meu amor.



FIM

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