terça-feira, 28 de junho de 2022

Erros Meus, Má Fortuna

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Fernando arrastou os sapatos de couro gasto e quase sem brilho, pelo passeio de cimento. Tinha o cabelo castanho cheio de brancas que lhe chegava aos ombros, mas estava lavado… pelo menos hoje. A pele do rosto, queimada do sol e vincada milhares de vezes, estava para além dos cinquenta e oito anos que dizia ter, mas hoje estava mais clara e reluzente. A alva barba estava penteada e limpa e até as mãos de dedos curtos e gordos, estavam lavadas e com as unhas escuras cortadas.

Hoje estava destinado a ser um dia especial. Foi por isso que foi ao abrigo tomar banho, arranjou um fato cinza-claro (que era obviamente para alguém maior que ele) e convenceu a Eduarda, a bonita, mas cansada voluntária do abrigo, a penteá-lo e fazer-lhe a manicura possível.

Agora estava ali, a chegar à paragem de autocarro onde se sentou pesadamente e cruzou a perna, à espera. Sentia-se orgulhoso, não bebia desde o jantar de ontem e bem olhara para a garrafa de tinto ainda meia que deixara com os seus pertences.

Soltou um suspiro soluçado, enquanto pensava nos cartões, cobertores e restantes tralhas a que ele chamava “as suas coisas” que deixara à guarda do Tone “Figo”. Não sabia o apelido dele, todos o chamavam assim porque para ele, tudo o que comia, dizia que “chamou-lhe um figo!” Era bom rapaz, se se pode chamar isso a alguém com cinquenta e muitos anos, mas faltava-lhe a coragem para se defender a si e ao que é seu. Sabia bem que se um dos outros sem-abrigo fosse lá roubar as coisas que ficaram ao seu cuidado, ele nada faria para o impedir. De qualquer maneira, Fernando dissera-lhe que se não voltasse naquela noite poderia ficar com tudo, mesmo com o maravilhoso relógio despertador a pilhas que tanto estimava.

Roeu nervosamente a unha do indicador direito e continuou com o sabugo até que lhe doeu. Gemeu e olhou os dedos maltratados com as unhas negras. Aquele lixo, se insistisse na lavagem, levaria anos a sair… assim como levou anos a amontoar-se.

Estava nervoso, claro que sim. Acordara na última madrugada decidido a dar uma volta na sua vida. Quase não dormira a sonhar como o iria fazer e se bem pensou, rápido o fez; foi quase o primeiro a comparecer na fila do duche do abrigo e depois correu ao vestiário para arranjar as roupas novas. Agora ali estava… pronto para ir à casa da filha de onde saíra há… demasiado tempo.

Pensou no rosto de Maria Inês, sua filha, mas não conseguia lembrar-se dela com vinte e muitos anos, quando ele saiu de casa, apenas via a Inês de quinze anos sempre abraçada a ele, aos beijos. “Como as pessoas podem mudar assim?” — Pensou para si. — “Era um amor profundo e terno, que parecia não morrer nunca. Ela tomava sempre o meu partido nas minhas discussões com a mãe dela.”

A sua expressão alterou-se para preocupação. Como reagiria a filha assim que o visse, agora, dez anos passados? Que pensaria ela do homem que saiu pela porta fora, zangado com ela e com o mundo e que nunca mais voltou nem deu notícias? Primeiro, acreditou que seria uma noite ou duas e dormiu no chão entre os cartões e o lixo. Alcoolizado, os cheiros não o incomodavam, nem dava pelo tempo passar e uma manhã, aquele amanhecer precisamente, levara dez anos a chegar.

Também ela estava zangada com ele… e com razão. Fora ela, aliás, quem começara a discussão; encontrara-o de novo a dormir no chão do quarto, embriagado, com as roupas fétidas e sujas de vómito e urina.

Agora que pensava bem, as discussões eram frequentes. Bernardo, o genro, tentava pôr “água na fervura”, apelava à calma dela e à minha compreensão de que não podia agir assim. Desde que nascera a criança deles, Inês estava insuportável, gritava à menor contrariedade… ou seria ele que se embriagava com demasiada frequência?

Desde a morte de Alzira, sua mulher, Inês nunca mais planeou casar e ter a sua própria casa. Fazia questão de ficar junto do pai para cuidar dele. Fernando, por seu lado, perdida a mulher que fazia parte da sua vida há mais de vinte e cinco anos, sentia-se desolado e desamparado. A filha tratava da sua própria vida, a trabalhar e a acabar os estudos e depois a namorar… não conseguiu perceber quando tudo começou. Ele bebia em casa o que havia e depois ia para fora a procurar mais. Começou por beber para esquecer, depois já não se lembrava porque bebia.

Uma lágrima correu veloz pelas rugas do rosto. Ele tinha noção que Alzira conseguia ser insuportável, mas era a mulher que ele escolheu e que o escolhera. Discutiam e zangavam-se, mas, após uns “amuos” começavam a falar normalmente e acabavam de fazer as pazes à noite, na cama. Depois partiu deste mundo e levou a alma dele com ela.

Inês cuidou dele, sim, pobre menina, o melhor que pôde. Aturou-lhe a depressão, o mau-humor e as bebedeiras. Depois conheceu Bernardo e a sua vigilância sobre ele aligeirou… a dependência do álcool e as suas consequências, cada vez mais difíceis de esconder, atiraram-no para o desemprego. — Ele franziu o sobrolho. — Quando nasceu a sua neta, Inês chamou-lhe Alzira, como se mais alguém pudesse digno de ser portador de tal nome.

Era obrigado a compreender que ele transformava a vida deles num inferno… baixou a cabeça e repousou-a entre as mãos com os cotovelos nos joelhos… ao longe o relógio da igreja soltou dez badaladas. Pensou que o autocarro se demorava.

— Bom dia, amigo. — Uma voz masculina bem-disposta interrompeu-lhe os pensamentos e ele levantou o rosto para ver um homem montado numa bicicleta, parado a seu lado. — Está à espera do autocarro aqui? Não vê que a paragem está desativada há mais de um ano? A carreira que passava aqui foi mudada para a outra rua paralela a esta.

Com esta explicação, o homem retomou a sua marcha pedalando e afastou-se rapidamente, sem mesmo escutar o “obrigado” quase inaudível.

Fernando ergueu-se e constatou o aviso quase apagado colado na placa indicativa da carreira. Pousou o olhar no chão, pensativo, como que a decidir o que fazer. “Então a carreira não me quer levar, é?” — Pensou de si para si. — “Se calhar também eles estão melhor sem mim…”

Sacudiu o pó das calças e começou a caminhar na direção de onde viera, rematando em voz alta:

— Vou ver se o Figo guardou as minhas coisas em condições, afinal, a garrafa do tinto ainda estava meia. Espero bem que não lhe tenha dado a sede.

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quarta-feira, 8 de junho de 2022

Viagens, Parabéns Lucinda Maria

Foi no passado dia 4 de junho que foi apresentado na Biblioteca Municipal de Oliveira do Hospital o novo livro de Lucinda Maria, "Viagens através da Imaginação".

Patrocinado pela Câmara Municipal, não podiam faltar a esta sessão o presidente, José Francisco Rolo, a vereadora da Cultura, Maria da Graça Silva e o presidente da Assembleia Municipal José Carlos Mendes.https://www.cm-oliveiradohospital.pt/index.php/municipio/item/2166-novo-livro-de-lucinda-maria-e-apresentado-no-sabado


Uma vez mais se nota o gosto pela cultura e o carinho e interesse pela produção artística dos seus munícipes nas Câmaras do interior do país. No litoral, talvez pelo facto de existir mais "oferta" cultural e mais artistas, há um desinteresse pelos "santos da casa" e prefere-se dar atenção às figuras nacionais em detrimento das locais. Claro que é muito mais fácil, sucesso garantido, divulgar a presença de um best-seller nacional, das editoras consagradas, ou alguém que aparece na TV frequentemente, do que patrocinar escritores ou outros artistas com pouca visibilidade. O pelouro da cultura tem a sua própria agenda e, na maior parte das vezes, desconhece completamente o que se produz no concelho.
 

Este novo livro da Lucinda Maria (sétimo publicado) apresenta-nos uma forte carga autobiográfica com alguns contos obviamente ligados à infância da autora e outros que espelham sem qualquer dúvida o amor incondicional à terra que a viu nascer.

Conheci a Lucinda Maria há pouco tempo, embora o seu nome tenha constado com o meu em algumas publicações de antologias organizadas pelo nosso saudoso amigo comum, o editor e escritor Isidro Sousa (1973-2020).

Foi principalmente fruto do desaparecimento deste nosso amigo que se criou uma proximidade maior entre nós, com a minha iniciativa de editar um dos trabalhos não concluídos desse editor. A antologia "Filhos de Um Deus Menor" foi um dos projetos dele que me empolgou e que tive pena nunca ter visto a luz do dia. Por esse motivo, resolvi por mãos à obra e contactar os autores já selecionados para essa obra para que colaborassem .nesta nova antologia. Para meu desencanto, muito poucos responderam mas, entre os que o fizeram, estava esta nova amiga.

 
 

Depois dos vários contatos e trocas de opiniões que tivemos acerca desta obra, foi fácil ver nela uma valiosa colaboradora para a nova antologia dos Pentautores, que estava em projeto na altura. Não tive muito trabalho para convencer os meus companheiros, alguns dos quais já conheciam a escrita da Lucinda e assim nasceu "Deusas, Fadas e Bruxas" com a convidada Lucinda Maria, que, como é apanágio de todos os nossos convidados, além do conto, contribui com o prefácio da obra. A nossa amiga provou tratar-se de uma boa aposta e ficamos todos muito satisfeitos com o resultado final.


Daqui até ao acordo que fizemos para a publicação do seu livro "Viagens", foi apenas um passo.

Eu já tinha colaborado de diversas formas com outros escritores para a publicação das suas edições de autor e, gradualmente, fui dando relevo à minha chancela pessoal "Produções Debaixo dos Céus". Aqui estava eu novamente a criar bases, quem sabe, para uma nova editora.

 
Com uma capa pintada pela própria autora, vão se revelando as várias facetas desta artista que junta a pintura à sensibilidade da poesia e à capacidade narrativa.

No passado dia 4, foi então o lançamento público desta obra e foi também o dia em que pude conhecer pessoalmente esta excecional mulher e escritora. Eu e o meu amigo e escritor Fernando Ventura Morgado, acompanhados das respetivas esposas, fizemos questão de cobrir a considerável distância que separa as nossas cidades para a felicitar e dar um abraço de amizade e incentivo a esta nossa amiga.


Não foi difícil ver as qualidades humanas da Lucinda Maria, que de resto já tinha adivinhado durante todos os nossos contatos prévios, mas foi aqui que se comprovou a sua amizade, generosidade e humildade, materializada numa sala completamente cheia de pessoas que a vieram ver e ouvir.

 
Tivemos a oportunidade de ouvir falar da autora por quem a conhece e escutar alguns poemas de sua autoria, relativos a marcos importantes do concelho, declamados por alguns dos seus amigos.
 


Resta-me acrescentar que foi um dia maravilhoso e bem passado e a Lucinda Maria está de parabéns, não só por este novo livro, mas pelo seu excelente grupo de amigos e leitores e por ser o ser humano que é.

Bem hajas Lucinda Maria e muito sucesso.
 




 

 

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