segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Sabotagem no Paraíso – Nona parte - Sedução e Engano

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

 
 

As carícias, os beijos sabedores e o feitiço de atração de Samael, deixaram Rrava sem ação e ela deixou que ele a sentasse no chão, sentando-se ele próprio a seu lado.

O anjo acariciou-lhe o rosto e o cabelo enquanto ela reclinava a cabeça para trás e perguntava sonhadoramente: — Que tenho de fazer para ver como são as coisas fora do jardim? Como posso conhecer esses homens que constroem as suas próprias grutas onde querem?

— Se o Pai te deixasse sair, era fácil… — Atirou Samael.

— Mas Ele nunca nos proibiu de nada, — ela abriu os olhos, intrigada — pensas que vai impedir de sair? Nem ao menos um bocadinho?

— Sim, tenho a certeza que não vai querer que saias, mas tens a certeza que nunca vos proibiu nada? — O anjo esboçou um sorriso conhecedor.

— Bem, — corrigiu-se ela —, disse-nos que não comêssemos nada de uma destas árvores. — Apontou uma modesta macieira carregada de maçãs vermelhas e reluzentes.

— Mas por quê? — Insistiu Samael.

— Não sei. — A jovem exibiu uma expressão de criança, enquanto encolhia os ombros. — Nunca pensei nisso, se calhar vai fazer-nos mal.

— Não faz mal nenhum, é mentira. — Lillian recuperou lentamente a forma humana ante o olhar espantado de Rrava, enquanto exibia as suas formas por baixo da túnica curta cor-de-ferrugem que a cobria. — Podes comer de tudo o que existe no jardim e nada te fará mal.

— Esta é Lillian. — Apresentou Samael, sem se levantar. — Também já viveu neste jardim, como tu. Ela tem razão, nada neste jardim te fará mal, a proibição é uma prova da vossa obediência.

Como que para o provar, Lillian apanhou uma das maçãs mais baixas nos ramos, trincou-a e mastigou-a sonoramente, após o que. passou lentamente a língua pelos lábios exuberantes.

O anjo, aproveitando a voluptuosa cena, puxou novamente o rosto de Rrava para o seu e beijou-a longamente, emitindo uma vez mais as ondas de desejo que Lillian sentiu.

Os pequenos orbes[1] luminosos e quase translúcidos, que se escondiam entre a folhagem, libertaram-se em rodopios em volta dos amantes, como que a festejar o amor.

Sem que ninguém se percebesse, Adam surgiu na entrada da clareira, logo ao lado de Lillian, que estremeceu ao vê-lo.

O homem ficou estático, tentando perceber o que via; a sua Rrava estava deitada no chão abraçada e aos beijos a outro homem e ali, a seu lado, estava a mulher revoltada que fugira de junto dele.

— Lillian? — A voz dele, quase inaudível, dir-se-ia não querer perturbar os amantes. — Não te foste embora?

Os orbes, percebendo a presença do intruso, compreenderam que o plano podia de Samael podia ruir de um segundo para o outro. Voaram rapidamente em volta de Lillian e Adam, envolvendo-os em rodopios e atraindo sobre eles um deleitante raio de sol.

Novamente as inexplicáveis ondas de desejo envolveram, desta vez o antigo casal. O homem olhou-a de alto a baixo e ela ofereceu-lhe a maçã, com a parte trincada voltada para ele.

Após alguma hesitação, ele deu uma sonora trincadela no fruto, deixando algum do sumo escorrer do canto da boca. Aproveitando a deixa, Lilian beijou-o no local, para que não se perdesse.

Adam apertou-a contra si e, embalados pelo desejo sobrenatural que os consumia, envolveram-se numa união carnal em que cada um tentava a supremacia sobre o outro.

Saciados, os dois casais, estavam sentados no chão em círculo.

Adam ainda estava incrédulo com o regresso de Lillian e a presença de outro humano no jardim. Sempre acreditara que, para além deles e do Pai, não existia mais ninguém parecido no mundo. Bombardeou-os com perguntas, apoiado por Rrava que sempre se calava quando ele a interrompia.

O interesse de Rrava voltou-se por fim para as “finas peles” com que se cobriam os estranhos. Queria saber do que eram feitas e para que serviam. Samael, porém, estava mais interessado em convencer Adam de que a vida fora do jardim era livre e que podiam fazer e andar por onde quisessem, ao contrário do que acontecia ali.

Lilian ensinou Rrava a juntar várias folhas grandes e costurá-las com fibras de uma trepadeira para formar uma saia grosseira. Ela aprendeu tão rapidamente, que fez outra para Adam que ficou um pouco confundido quando lha pôs à cintura.

Rrava estava felicíssima com a nova habilidade e fez um pequeno corpete com que ocultou os fartos seios. Como agradecimento, abraçou e beijou Lillian nos lábios, encostando o seu corpo quente ao dela. A mulher renegada sentiu-se estranhamente excitada, surpreendida porque pensava que tal só acontecia com homens e principalmente com o “seu” Samael. A outra, porém, não se imobilizara e correu a apanhar mais uma maçã que partilhou com ela após dar a primeira mordida.

— Sabias que estamos fechados num jardim e muitas pessoas iguais a nós, vivem para além dele? — Adam interrompeu o potencial idílio entre as duas. — O Pai alguma vez te falou deles?

— Não. Nunca. — Confirmou Rrava. — A primeira vez que ouvi isso foi contado por ele. — Apontou Samael com o queixo.

— Claro que Ele não quer que saibam. — Interveio Lillian intempestivamente. — Quer vos manter aqui presos na ignorância. Também eu não sabia e tive de ir lá fora para ver com os meus olhos. A minha desobediência foi castigada, transformando-me numa serpente! — Samael arregalou os olhos, horrorizado com a mentira, mas ela não se refreou. — Queria submeter-me ou matar-me, mas não conseguiu, porque os anjos protegem-me.

— Transformou-te em serpente? — Adam estava espantado. — O Pai fez isso?

— Sim! — Ela insistiu na mentira, para horror de Samael. — Assim poderia matar-me com mais facilidade, mas os anjos esconderam-me e ensinaram-me a sair da forma a que fui condenada. — Sorriu ao ver os olhares de admiração deles. — Se vierem connosco, eles também vos protegerão.

— Depois Ele não virá atrás de nós também? — Rrava mostrou-se atemorizada. — Certamente nos quererá matar por fugirmos.

— Levar-vos-emos para a Terra dos Homens, onde vivem em grande número. — Corroborou Samael. — Eu e os meus irmãos velaremos para que o Pai não vos encontre. Lá podereis viver como quiserdes.

— Podereis ter roupas como as nossas. — Incentivou Lillian antes de se aperceber que o lobo os observava à distância, desconfiado. — Voltou… — sorriu —… lobo….

— Não é estranho que, tirando o lobo, não haja mais nenhum animal à vista? — Observou Adam.

— Sim, já tinha reparado. — Confirmou Rrava. — Apenas Samael como melro e ela como serpente…

— Lobo! — Chamou Lillian. — Vem cá, não tenhas medo, sou eu, Lillian! — Deu alguns passos na direção dele, que começou a recuar e a rosnar.

— Vão-se embora! — Latiu ameaçadoramente o lobo. — Vão-se embora daqui! — Eriçou os pelos do cachaço enquanto puxava as orelhas para trás ameaçadoramente. — O teu lugar não é aqui, Lillian, criança desobediente, vai-te para a terra enferma de onde vieste, vai-te embora em nome do Criador!



[1] Corpo esférico ou circular. = BOLA, ESFERA, GLOBO
"orbe", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

 

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terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Natal 2024

 


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domingo, 22 de dezembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Oitava parte - Perfídia

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Lilian começava já a pensar se não poderiam ter uma vida melhor ali naquele jardim, em vez de voltar para a aridez do mundo. Samael sentiu-se preocupado quando ela lhe deu a entender que se sentia como que voltando a casa.

— Esta já não é a tua casa. — Avisou-a o anjo, com os olhos postos no chão. — Eventualmente, o Criador poderá até te perdoar, mas creio que nunca te permitirá que regresses aqui. Se suspeitasse que nos infiltramos, enviaria um exército de anjos que nos encontrariam e aprisionariam.

— A ti também? — Ela abriu muito os olhos verdes.

— A mim também. — Ele acenou gravemente. — A ti poderia matar-te ou simplesmente expulsar-te para muito longe, de onde não conseguisses voltar, a mim expulsar-me-ia do Céu e porventura tirar-me-ia as asas… pior que isso, só ser lançado nas chamas eternas no centro da terra.

Caminhavam despreocupadamente pela vereda, apesar da gravidade do tema, como se não tivessem nada a esconder. Lilian meditava nas palavras do anjo e na gravidade do castigo que ambos se sujeitavam, quando depararam com o lobo.

O animal, surpreendido com os intrusos, ficou parado no meio do caminho com as patas perfeitamente apoiadas numa atitude de expectativa. As orelhas puxadas para trás e a cauda inerte mostravam a sua dúvida entre fugir ou atacar.

A mulher reconheceu imediatamente o canídeo que sempre os acompanhava quando ela habitava o jardim e estranhou de imediato a postura agressiva.

— Lobo. — Chamou ela suavemente. — Lobo, não te lembras de mim?

Um rosnar de advertência foi a resposta, antes de soltar o que pareceu um sopro de desprezo e voltar-lhes as costas. Ignorando-os, trotou pela vereda, em sentido contrário ao que trazia.

— Não acredito que já não se lembra de mim em tão pouco tempo! — Lilian bufou de frustração e fez o gesto de atirar um pequeno objeto que tinha na mão.

O braço dela passou perto de Samael o suficiente para lhe despertar a atenção e ficar a olhá-la e à mão fortemente fechada que escondia algo.

— Que tens aí? — Interrogou o anjo, perante o ar culpado que a denunciava.

— Nada. — Ela cerrou ainda mais a mão. — É só uma coisa minha… para me sentir mais confiante.

Ele estendeu a mão insistentemente e aguardou até que ela, relutantemente, pousasse uma pequena pirâmide talhada em madeira.

Assim que o objeto caiu na palma da mão dele, começou a escutar milhares de vozes que sussurravam continuamente uma oração ou um encantamento.

— Foi Armaros quem te deu isso, não foi? — Ela confirmou com um aceno da cabeça, mantendo os olhos baixos. Ele abriu-lhe a mão e devolveu o amuleto. — É um feitiço. A esta hora, ele e todos os que o ajudaram a urdi-lo sabem onde estamos e como chegar aqui. — O seu desapontamento era óbvio. — O segredo da localização está perdido.

— Desculpa. — Lilian mostrava-se verdadeiramente desolada. — Não percebi. Ele disse-me que to não mostrasse, pois irias ter ciúmes por dar a mim e não a ti.

Samael esboçou um sorriso triste. Também os anjos começavam a mentir despudoradamente. Aprendiam com os humanos. Afinal a evolução (?) acontecia nos dois sentidos, ou será que era a evolução dos humanos e a regressão dos anjos?

— Temos de ir. — Instou Samael iniciando uma caminhada decidida na direção que o lobo tomara. Obediente e constrangida, ela seguiu-o.

Não tardou que vissem Adam, que seguia o voo de uma borboleta, tentando escutar o que a sua quase inaudível vozinha dizia. Os dois intrusos regressaram rapidamente aos seus disfarces e mantiveram-se a observar ocultos pelas folhas dos arbustos. A abertura de uma caverna podia observar-se ao fundo por trás de Adam; o seu novo lar.

— Ah, que pássaro tão bonito! — A voz feminina surpreendeu o melro/Samael. — Que penugem tão lustrosa e um bico amarelo tão lindo.

 

e olhos amendoados. O seu luxuriante cabelo escuro, quase lhe cobria o corpo, de onde sobressaíam os seios de bicos rosados.

Olá! — O melro reagiu rapidamente, no vocabulário limitado, típico dos animais do paraíso. — Também muito bonita, tu. Irmãos falarem de ti e eu querer ver. — O plano insidioso iria começar de imediato.

— Oh, a sério? — O sorriso dela fê-la ainda mais bela. — Também estranhava nunca te ter visto aqui.

— Venho de longe. — Continuou ele, observando pelo canto do olho como Adam se afastava da clareira perseguindo a borboleta. — De fora do jardim, onde vivem os outros homens.

— Outros homens? — Espantou-se ela. — Quais? Há mais alguém além de Adam e do Pai? — A semente estava lançada.

O melro saltitou de arbusto em arbusto, na direção contrária à que seguira Adam. Rrava seguiu-o, curiosa: — Diz-me, há mais pessoas por aí?

— Sim, mais perto do que imaginas. — O pássaro fez um pequeno voo para mais longe da caverna, logo seguido pela mulher. A serpente castanha acompanhava-os silenciosamente, oculta da vista, rastejando entre a folhagem que cobria o chão.

— Mas… — a curiosidade tinha sido despertada e estava imparável —… Onde estão? Porque nunca os vi? Porque os outros pássaros não falam deles? — Aqui imobilizou-se e olhou para as copas das árvores. — Onde andam os pássaros?

 — O pai não quer os homens por perto e eles vivem por aí em casas de lama e pedra. — Samael falou de ainda mais longe, atraindo novamente a atenção dela.

— Que são casas? — Rrava correu para junto do melro.

— São lugares como a caverna onde vives, mas são os homens que as constroem onde querem. — Explicou pássaro negro.

— Eu gostava que a caverna ficasse mais próxima do rio. — Disse ela pensativamente. — Como posso construí-la lá?

— Não podes. — O melro esvoaçou para outra folha mais distante. — Aí está, não sabes fazê-lo. Mas, se estivesses fora do jardim, com os outros homens, eles ajudavam-te a fazê-la.

— Então, como encontro esses homens? — Ela ergueu os ombros numa interrogativa.

Samael assumiu a forma humana frente a ela enquanto respondia maviosamente: — Terás de sair do jardim, eu ensino-te como o fazer, quiseres.

A serpente/Lilian circulou pelos arbustos perto deles, apreciando o insidioso círculo de sedução que o anjo construía em volta da inocente Rrava. Devido ao seu estado, agora quase divino, conseguia sentir as ondas de emoções que Samael emitia e que o tornavam irresistível… Era o mesmo “truque” que com certeza utilizara com ela e fazia-a sentir raiva, repulsa e… admiração.

Rrava e o anjo beijaram-se longamente. A volúpia provocada pelo ente divino enlouquecia-a ela entregou-se completamente às suas mãos experientes.

Lilian sentia-se inquieta, ciumenta, talvez, mas algo mais. Olhou em volta e notou a oscilação de luz que acontecia em alguns locais. Percebeu de imediato que eram observados por alguém invisível e rastejou sub-repticiamente para junto da anomalia. O tremeluzir afastou-se ligeiramente, mostrando que a via e, possivelmente, tinha consciência dela para além da sua forma de serpente.

Quase de imediato, a forma translúcida de um sorridente Armaros, com o dedo pousado sobre os lábios, pedia que não dissesse nada. Tornou a desaparecer no momento seguinte. Procurando com mais atenção, detetou várias pequenas orbes luminosas saltitando pela clareira; o segredo da localização do Jardim do Éden fora revelado.

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