sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Traição I

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Na penumbra da sala o silêncio impunha-se pesadamente apenas interrompido a espaços pelo crepitar do fogo na lareira.
Lá fora o vento rugia naquela tempestuosa manhã de Janeiro atirando as gotas de chuva com força contra a vidraça.
Ele estava afundado no sofá individual ao pé da lareira com os pés esticados sobre um pequeno banco e o olhar vidrado fixo perdido sobre o telemóvel que repousava na mesa de apoio.
O homem, já nos últimos anos dos quarenta, estava bastante magro e com olheiras profundas no rosto pálido. Os fios de prata no cabelo ondulavam na luz errática da fogueira.
Estremeceu com o súbito toque do telemóvel. Aquela melodia escutada tantas vezes trouxe-lhe memórias de ocasiões felizes... e outras nem tanto.
No ecrã do equipamento o rosto sorridente de um homem de cabelos desgrenhados claros. O nome “Ricardo” piscava ao ritmo da musica.
Após uns segundos de hesitação, soergueu-se, clicou para atender e encostou o telemóvel ao ouvido sem falar. Do outro lado uma voz grave e enérgica interpelou:
-        Olá bom dia dorminhoca. Tudo bem?
-         Bom dia... - A resposta foi rouca e arrastada e do outro lado fez-se um silêncio fruto da surpresa de não ser a pessoa esperada. - Desculpa, sei que esperavas a Sandra.
-        Hmm, sim. Ela está? - A voz passara de decidida a cautelosa.
-        Não, ela não está. De facto estava mesmo aqui a pensar se deveria ou não ligar-te.
-        Ligar-me?!? - Havia incredulidade no tom – Mas nós conhecemo-nos?
-        Na verdade não, já agora, eu sou o marido da Sandra, Fernando.
-        Ricardo. - A resposta tardou um pouco – Mas continuo sem perceber...
Um sorriso cansado perpassou nos seus lábios:
-        Queria ter uma pequena conversa contigo, não te importas que te trate por tu, pois não?
-        Como disse, não nos conhecemos, mas não, não me importo.
-        É verdade, não nos conhecemos, mas temos uma coisa muito importante em comum... a minha mulher Sandra.
A afirmação soou como um tiro que provocou um momento de silêncio nervoso antes de uma patética tentativa de ganhar tempo:
-        Como? Não estou a perceber.
-        Não adianta negar. - O sorriso alargou-se – Eu sei de tudo. Os encontros nos motéis, os jantares, os passeios nos jardins... até a conferência há dois meses atrás em Londres...
Nem o respirar se escutava no outro extremo da comunicação.
-        … de todas as formas não te posso censurar. Ela é uma mulher muito bela e inteligentíssima,  uma combinação irresistível.
-        Mas... quando soubeste? - Não adiantava negar.
-        Oh, já sei há muito tempo. Quase que posso dizer desde o início.
-        Não posso crer... e não disseste nem fizeste nada? Há quanto tempo achas que aconteceu?
-        Deverá fazer dois anos em Março. Estou certo?
O silêncio do interlocutor consentia.
-        No inicio não me apercebi de nada, claro. Nada pelo menos que me fizesse suspeitar disto. - Fernando continuou –  Apenas, de repente, a nossa relação morna de um casal da nossa idade com muitos anos de casamento, tornou-se muito mais ativa sexualmente. Como já não era há muitos anos. - Limpou uma lágrima que correu no rosto – Ela procurava-me mais frequentemente e não se negava tantas vezes aos meus “avanços”.
A chuva parara entretanto e o latido de um cão ouviu-se trazido pelo vento que amainara.
-        Eu estava feliz, ela estava feliz, como poderia suspeitar? Nem reparava nas frequentes trocas de SMS, no falar mais baixo ao telemóvel em algumas circunstancias... estava cego.
O suspiro que se seguiu saiu mais audível do que pretendera:
-        Até que um dia, ao chegar a casa mais tarde que eu e a tirar as coisas da carteira, vi que trazia amarrotado um pano negro... onde consegui divisar as rendas. Mesmo através da sua atrapalhação fiquei sem qualquer dúvida que trazia, amarrotadas na carteira as calcinhas que vestira naquela manhã... Porque traria ela as calcinhas na carteira? Porque as tiraria?
-        Poderiam haver outros motivos para além de... - Ricardo tentou ajudar.
-        Pois poderia. Por isso não poderia ficar com a duvida. Ela disfarçou e escondeu... e eu fingi não ter reparado.
-        Ela deve ter pensado que não viste...
-        Mas vi. E andei louco de dor e confusão por uns dias atento a todos os seus movimentos, atitudes e horários... cada vez se aprofundavam mais as minhas suspeitas. Até que um dia à hora do almoço fui para a rua em frente à escola onde ela trabalha e esperei. Não tardou que a visse... e te visse com ela.
-        Sim, almoçamos muitas vezes juntos.
-        Para saber a extensão “do problema” contratei uma pessoa para a seguir durante uma semana e dar-me um relatório; fiquei a saber mais do que o que queria, o relatório era extenso o suficiente para incluir fotos, horários, os motéis e restaurantes que frequentavam e a altura aproximada em que começaram a ser vistos juntos. Um bom trabalho em suma.
-        Nunca nos apercebemos de nada...
-        Como eu disse, um bom trabalho. Mas o que me deixava louco era a sua naturalidade, a facilidade e o prazer com que fazíamos amor, a sua vontade e carinho. Parecia que continuava apaixonada por mim...
-        E continua. Ela disse-mo várias vezes. Sempre que lhe pedia para te deixar e vir viver comigo. Nunca o quis, dizia que te amava demais para poder viver sem ti e que o que existia entre nós era uma paixão que ela esperava que passasse um dia.
Foi a vez de Fernando ficar em silêncio por uns minutos. Ambos os homens calados a escutar a respiração do outro através do telemóvel.
-        Por fim acabei por me conformar. - Retomou a narrativa. - Aceitei que ela seria discreta o suficiente para me envergonhar e aceitei que deveria apreciar cada minuto da sua atenção, cada beijo e cada carícia como dádivas que poderia perder a qualquer momento.
-        Foi precisa muita coragem para uma decisão dessas.
-        Não não foi. Muita covardia isso sim, medo de ficar sem ela, sem a mulher que amo. Medo que se fosse e não tornasse mais. A vida sem ela seria insuportável. Mas nos últimos tempos é assim que tem sido mesmo com ela, insuportável.
-        Daí esta chamada. - Ricardo concluiu – Concluíste que não consegues viver assim e vens pedir-me que me afaste.
-        Falo-ias?
-        Se isso for o melhor para ela... sim. Também vou sofrer imenso. Deixei a minha mulher há uns meses porque achei que facilitaria a decisão da Sandra mas ainda não lhe disse.
-        Temes pressiona-la?
-        Sim, ela é adorável mas sob pressão é imprevisível. - Sentiu-se o sorriso na voz.
-        Consigo perceber que também a amas, não se trata apenas de um caso.
-        Não, não é. Desde o início, desde o primeiro riso, as primeiras palavras, fiquei completamente preso a ela. Julgava que depois de uma certa idade já não era possível uma paixão com tal intensidade.
-        E aqui estamos nós os dois... apaixonados pela mesma mulher.
-        Não tenho coragem de continuar a fazer-te o mal que temos andado a fazer. Até aqui achava que não sabias...
-        Que era um corno feliz...?
-        Não, nunca pensamos, pensei, em ti nesses termos. Eras apenas o outro que a impedia de vir para mim de vez.
-        Agora não interessa mais, não vale a pena estarmos a discutir sobre isto.
-        Que se passa? Zangaram-se? - O tom de voz não conseguia disfarçar a esperança.
As lágrimas corriam agora livremente pelo rosto de Fernando.
-        Não, caro amigo, a Sandra teve um acidente de automóvel esta noite quando regressava de tua casa. Faleceu de madrugada no hospital... O funeral é às 9h de amanhã e o corpo encontra-se na capela do hospital. Se quiseres podes aparecer... todas as pessoas que a amavam são bem-vindas.
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sábado, 29 de novembro de 2014

Devoção



És uma santa que leva à perdição
e eu um anjo completamente caído
Sempre que falamos
deixo de ser eu,
ou pelo menos
o eu que mostro aos outros.
Deixo cair o escudo,
ponho de lado a mascara
e sinto-me como uma criança
que anseia por se aconchegar
encostar a cabeça no teu seio
e deixar-se embalar.
Por comodismo deixo as canções falar
por mim
beneficiar do impacto maior
que traz a música.
Mas as palavras estão aqui
à boca do coração
caladas,
amordaçadas,
mas pesadas e sentidas,
Esperando o dia em que as solte
faça o que não quis fazer
e seja o que não quis ser.
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