segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Sabotagem no Paraíso – Nona parte - Sedução e Engano

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

 
 

As carícias, os beijos sabedores e o feitiço de atração de Samael, deixaram Rrava sem ação e ela deixou que ele a sentasse no chão, sentando-se ele próprio a seu lado.

O anjo acariciou-lhe o rosto e o cabelo enquanto ela reclinava a cabeça para trás e perguntava sonhadoramente: — Que tenho de fazer para ver como são as coisas fora do jardim? Como posso conhecer esses homens que constroem as suas próprias grutas onde querem?

— Se o Pai te deixasse sair, era fácil… — Atirou Samael.

— Mas Ele nunca nos proibiu de nada, — ela abriu os olhos, intrigada — pensas que vai impedir de sair? Nem ao menos um bocadinho?

— Sim, tenho a certeza que não vai querer que saias, mas tens a certeza que nunca vos proibiu nada? — O anjo esboçou um sorriso conhecedor.

— Bem, — corrigiu-se ela —, disse-nos que não comêssemos nada de uma destas árvores. — Apontou uma modesta macieira carregada de maçãs vermelhas e reluzentes.

— Mas por quê? — Insistiu Samael.

— Não sei. — A jovem exibiu uma expressão de criança, enquanto encolhia os ombros. — Nunca pensei nisso, se calhar vai fazer-nos mal.

— Não faz mal nenhum, é mentira. — Lillian recuperou lentamente a forma humana ante o olhar espantado de Rrava, enquanto exibia as suas formas por baixo da túnica curta cor-de-ferrugem que a cobria. — Podes comer de tudo o que existe no jardim e nada te fará mal.

— Esta é Lillian. — Apresentou Samael, sem se levantar. — Também já viveu neste jardim, como tu. Ela tem razão, nada neste jardim te fará mal, a proibição é uma prova da vossa obediência.

Como que para o provar, Lillian apanhou uma das maçãs mais baixas nos ramos, trincou-a e mastigou-a sonoramente, após o que. passou lentamente a língua pelos lábios exuberantes.

O anjo, aproveitando a voluptuosa cena, puxou novamente o rosto de Rrava para o seu e beijou-a longamente, emitindo uma vez mais as ondas de desejo que Lillian sentiu.

Os pequenos orbes[1] luminosos e quase translúcidos, que se escondiam entre a folhagem, libertaram-se em rodopios em volta dos amantes, como que a festejar o amor.

Sem que ninguém se percebesse, Adam surgiu na entrada da clareira, logo ao lado de Lillian, que estremeceu ao vê-lo.

O homem ficou estático, tentando perceber o que via; a sua Rrava estava deitada no chão abraçada e aos beijos a outro homem e ali, a seu lado, estava a mulher revoltada que fugira de junto dele.

— Lillian? — A voz dele, quase inaudível, dir-se-ia não querer perturbar os amantes. — Não te foste embora?

Os orbes, percebendo a presença do intruso, compreenderam que o plano podia de Samael podia ruir de um segundo para o outro. Voaram rapidamente em volta de Lillian e Adam, envolvendo-os em rodopios e atraindo sobre eles um deleitante raio de sol.

Novamente as inexplicáveis ondas de desejo envolveram, desta vez o antigo casal. O homem olhou-a de alto a baixo e ela ofereceu-lhe a maçã, com a parte trincada voltada para ele.

Após alguma hesitação, ele deu uma sonora trincadela no fruto, deixando algum do sumo escorrer do canto da boca. Aproveitando a deixa, Lilian beijou-o no local, para que não se perdesse.

Adam apertou-a contra si e, embalados pelo desejo sobrenatural que os consumia, envolveram-se numa união carnal em que cada um tentava a supremacia sobre o outro.

Saciados, os dois casais, estavam sentados no chão em círculo.

Adam ainda estava incrédulo com o regresso de Lillian e a presença de outro humano no jardim. Sempre acreditara que, para além deles e do Pai, não existia mais ninguém parecido no mundo. Bombardeou-os com perguntas, apoiado por Rrava que sempre se calava quando ele a interrompia.

O interesse de Rrava voltou-se por fim para as “finas peles” com que se cobriam os estranhos. Queria saber do que eram feitas e para que serviam. Samael, porém, estava mais interessado em convencer Adam de que a vida fora do jardim era livre e que podiam fazer e andar por onde quisessem, ao contrário do que acontecia ali.

Lilian ensinou Rrava a juntar várias folhas grandes e costurá-las com fibras de uma trepadeira para formar uma saia grosseira. Ela aprendeu tão rapidamente, que fez outra para Adam que ficou um pouco confundido quando lha pôs à cintura.

Rrava estava felicíssima com a nova habilidade e fez um pequeno corpete com que ocultou os fartos seios. Como agradecimento, abraçou e beijou Lillian nos lábios, encostando o seu corpo quente ao dela. A mulher renegada sentiu-se estranhamente excitada, surpreendida porque pensava que tal só acontecia com homens e principalmente com o “seu” Samael. A outra, porém, não se imobilizara e correu a apanhar mais uma maçã que partilhou com ela após dar a primeira mordida.

— Sabias que estamos fechados num jardim e muitas pessoas iguais a nós, vivem para além dele? — Adam interrompeu o potencial idílio entre as duas. — O Pai alguma vez te falou deles?

— Não. Nunca. — Confirmou Rrava. — A primeira vez que ouvi isso foi contado por ele. — Apontou Samael com o queixo.

— Claro que Ele não quer que saibam. — Interveio Lillian intempestivamente. — Quer vos manter aqui presos na ignorância. Também eu não sabia e tive de ir lá fora para ver com os meus olhos. A minha desobediência foi castigada, transformando-me numa serpente! — Samael arregalou os olhos, horrorizado com a mentira, mas ela não se refreou. — Queria submeter-me ou matar-me, mas não conseguiu, porque os anjos protegem-me.

— Transformou-te em serpente? — Adam estava espantado. — O Pai fez isso?

— Sim! — Ela insistiu na mentira, para horror de Samael. — Assim poderia matar-me com mais facilidade, mas os anjos esconderam-me e ensinaram-me a sair da forma a que fui condenada. — Sorriu ao ver os olhares de admiração deles. — Se vierem connosco, eles também vos protegerão.

— Depois Ele não virá atrás de nós também? — Rrava mostrou-se atemorizada. — Certamente nos quererá matar por fugirmos.

— Levar-vos-emos para a Terra dos Homens, onde vivem em grande número. — Corroborou Samael. — Eu e os meus irmãos velaremos para que o Pai não vos encontre. Lá podereis viver como quiserdes.

— Podereis ter roupas como as nossas. — Incentivou Lillian antes de se aperceber que o lobo os observava à distância, desconfiado. — Voltou… — sorriu —… lobo….

— Não é estranho que, tirando o lobo, não haja mais nenhum animal à vista? — Observou Adam.

— Sim, já tinha reparado. — Confirmou Rrava. — Apenas Samael como melro e ela como serpente…

— Lobo! — Chamou Lillian. — Vem cá, não tenhas medo, sou eu, Lillian! — Deu alguns passos na direção dele, que começou a recuar e a rosnar.

— Vão-se embora! — Latiu ameaçadoramente o lobo. — Vão-se embora daqui! — Eriçou os pelos do cachaço enquanto puxava as orelhas para trás ameaçadoramente. — O teu lugar não é aqui, Lillian, criança desobediente, vai-te para a terra enferma de onde vieste, vai-te embora em nome do Criador!



[1] Corpo esférico ou circular. = BOLA, ESFERA, GLOBO
"orbe", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

 

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terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Natal 2024

 


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domingo, 22 de dezembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Oitava parte - Perfídia

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Lilian começava já a pensar se não poderiam ter uma vida melhor ali naquele jardim, em vez de voltar para a aridez do mundo. Samael sentiu-se preocupado quando ela lhe deu a entender que se sentia como que voltando a casa.

— Esta já não é a tua casa. — Avisou-a o anjo, com os olhos postos no chão. — Eventualmente, o Criador poderá até te perdoar, mas creio que nunca te permitirá que regresses aqui. Se suspeitasse que nos infiltramos, enviaria um exército de anjos que nos encontrariam e aprisionariam.

— A ti também? — Ela abriu muito os olhos verdes.

— A mim também. — Ele acenou gravemente. — A ti poderia matar-te ou simplesmente expulsar-te para muito longe, de onde não conseguisses voltar, a mim expulsar-me-ia do Céu e porventura tirar-me-ia as asas… pior que isso, só ser lançado nas chamas eternas no centro da terra.

Caminhavam despreocupadamente pela vereda, apesar da gravidade do tema, como se não tivessem nada a esconder. Lilian meditava nas palavras do anjo e na gravidade do castigo que ambos se sujeitavam, quando depararam com o lobo.

O animal, surpreendido com os intrusos, ficou parado no meio do caminho com as patas perfeitamente apoiadas numa atitude de expectativa. As orelhas puxadas para trás e a cauda inerte mostravam a sua dúvida entre fugir ou atacar.

A mulher reconheceu imediatamente o canídeo que sempre os acompanhava quando ela habitava o jardim e estranhou de imediato a postura agressiva.

— Lobo. — Chamou ela suavemente. — Lobo, não te lembras de mim?

Um rosnar de advertência foi a resposta, antes de soltar o que pareceu um sopro de desprezo e voltar-lhes as costas. Ignorando-os, trotou pela vereda, em sentido contrário ao que trazia.

— Não acredito que já não se lembra de mim em tão pouco tempo! — Lilian bufou de frustração e fez o gesto de atirar um pequeno objeto que tinha na mão.

O braço dela passou perto de Samael o suficiente para lhe despertar a atenção e ficar a olhá-la e à mão fortemente fechada que escondia algo.

— Que tens aí? — Interrogou o anjo, perante o ar culpado que a denunciava.

— Nada. — Ela cerrou ainda mais a mão. — É só uma coisa minha… para me sentir mais confiante.

Ele estendeu a mão insistentemente e aguardou até que ela, relutantemente, pousasse uma pequena pirâmide talhada em madeira.

Assim que o objeto caiu na palma da mão dele, começou a escutar milhares de vozes que sussurravam continuamente uma oração ou um encantamento.

— Foi Armaros quem te deu isso, não foi? — Ela confirmou com um aceno da cabeça, mantendo os olhos baixos. Ele abriu-lhe a mão e devolveu o amuleto. — É um feitiço. A esta hora, ele e todos os que o ajudaram a urdi-lo sabem onde estamos e como chegar aqui. — O seu desapontamento era óbvio. — O segredo da localização está perdido.

— Desculpa. — Lilian mostrava-se verdadeiramente desolada. — Não percebi. Ele disse-me que to não mostrasse, pois irias ter ciúmes por dar a mim e não a ti.

Samael esboçou um sorriso triste. Também os anjos começavam a mentir despudoradamente. Aprendiam com os humanos. Afinal a evolução (?) acontecia nos dois sentidos, ou será que era a evolução dos humanos e a regressão dos anjos?

— Temos de ir. — Instou Samael iniciando uma caminhada decidida na direção que o lobo tomara. Obediente e constrangida, ela seguiu-o.

Não tardou que vissem Adam, que seguia o voo de uma borboleta, tentando escutar o que a sua quase inaudível vozinha dizia. Os dois intrusos regressaram rapidamente aos seus disfarces e mantiveram-se a observar ocultos pelas folhas dos arbustos. A abertura de uma caverna podia observar-se ao fundo por trás de Adam; o seu novo lar.

— Ah, que pássaro tão bonito! — A voz feminina surpreendeu o melro/Samael. — Que penugem tão lustrosa e um bico amarelo tão lindo.

 

e olhos amendoados. O seu luxuriante cabelo escuro, quase lhe cobria o corpo, de onde sobressaíam os seios de bicos rosados.

Olá! — O melro reagiu rapidamente, no vocabulário limitado, típico dos animais do paraíso. — Também muito bonita, tu. Irmãos falarem de ti e eu querer ver. — O plano insidioso iria começar de imediato.

— Oh, a sério? — O sorriso dela fê-la ainda mais bela. — Também estranhava nunca te ter visto aqui.

— Venho de longe. — Continuou ele, observando pelo canto do olho como Adam se afastava da clareira perseguindo a borboleta. — De fora do jardim, onde vivem os outros homens.

— Outros homens? — Espantou-se ela. — Quais? Há mais alguém além de Adam e do Pai? — A semente estava lançada.

O melro saltitou de arbusto em arbusto, na direção contrária à que seguira Adam. Rrava seguiu-o, curiosa: — Diz-me, há mais pessoas por aí?

— Sim, mais perto do que imaginas. — O pássaro fez um pequeno voo para mais longe da caverna, logo seguido pela mulher. A serpente castanha acompanhava-os silenciosamente, oculta da vista, rastejando entre a folhagem que cobria o chão.

— Mas… — a curiosidade tinha sido despertada e estava imparável —… Onde estão? Porque nunca os vi? Porque os outros pássaros não falam deles? — Aqui imobilizou-se e olhou para as copas das árvores. — Onde andam os pássaros?

 — O pai não quer os homens por perto e eles vivem por aí em casas de lama e pedra. — Samael falou de ainda mais longe, atraindo novamente a atenção dela.

— Que são casas? — Rrava correu para junto do melro.

— São lugares como a caverna onde vives, mas são os homens que as constroem onde querem. — Explicou pássaro negro.

— Eu gostava que a caverna ficasse mais próxima do rio. — Disse ela pensativamente. — Como posso construí-la lá?

— Não podes. — O melro esvoaçou para outra folha mais distante. — Aí está, não sabes fazê-lo. Mas, se estivesses fora do jardim, com os outros homens, eles ajudavam-te a fazê-la.

— Então, como encontro esses homens? — Ela ergueu os ombros numa interrogativa.

Samael assumiu a forma humana frente a ela enquanto respondia maviosamente: — Terás de sair do jardim, eu ensino-te como o fazer, quiseres.

A serpente/Lilian circulou pelos arbustos perto deles, apreciando o insidioso círculo de sedução que o anjo construía em volta da inocente Rrava. Devido ao seu estado, agora quase divino, conseguia sentir as ondas de emoções que Samael emitia e que o tornavam irresistível… Era o mesmo “truque” que com certeza utilizara com ela e fazia-a sentir raiva, repulsa e… admiração.

Rrava e o anjo beijaram-se longamente. A volúpia provocada pelo ente divino enlouquecia-a ela entregou-se completamente às suas mãos experientes.

Lilian sentia-se inquieta, ciumenta, talvez, mas algo mais. Olhou em volta e notou a oscilação de luz que acontecia em alguns locais. Percebeu de imediato que eram observados por alguém invisível e rastejou sub-repticiamente para junto da anomalia. O tremeluzir afastou-se ligeiramente, mostrando que a via e, possivelmente, tinha consciência dela para além da sua forma de serpente.

Quase de imediato, a forma translúcida de um sorridente Armaros, com o dedo pousado sobre os lábios, pedia que não dissesse nada. Tornou a desaparecer no momento seguinte. Procurando com mais atenção, detetou várias pequenas orbes luminosas saltitando pela clareira; o segredo da localização do Jardim do Éden fora revelado.

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segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Sétima parte - A Criação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Quando o Criador proclamou o advento de um novo ser — o Homem — e designou Seu Filho como o mediador divino, Lúcifer viu nisso um insulto à sua própria magnificência. “Por que devemos curvar-nos diante de outro?”, ele pensou, “se somos livres e dotados de poder?” Sua voz, persuasiva e doce como o mel, espalhou-se entre os corações angélicos que começavam a questionar: seria a submissão nosso único destino?

 

In “O Paraíso Perdido” de John Milton

 

De longe, Samael e Lilian apreciaram os dois portentosos Querubins que guardavam a entrada do jardim do Éden. As espadas flamejantes faziam com que tudo em volta parecesse escuro.

A mulher estremeceu com a espantosa visão, mas o anjo acalmou-a: — Sossega. Apesar do seu aspeto, não te fariam mal. Apesar de guerreiros temíveis, são um pouco limitados nas suas ações e seguem as ordens do Senhor cegamente. Se lhes ordenaram que não deixassem ninguém entrar ou sair, assim farão. Desviarão ou impedirão a entrada, ou saída, de quem quer que seja, se não tentarem pela violência, não terão problemas.

— Mas… — Lilian achava estar a ver mal —… não são mulheres?

— Masculinos ou femininos, que interessa? — Samael sorriu-lhe divertido. — São anjos e são Querubins. São os guardiões do conhecimento divino e nada os detém para o proteger. — Murmurou algumas palavras e transformou-se num melro que pousou numa pedra fitando insistentemente a mulher.

Lilian, após alguma hesitação, murmurou o encantamento e o seu corpo principiou a torcer-se e a mirrar, até restar a espantosa serpente castanha e vermelha de olhos verdes.

Guiada pelo melro, a serpente rastejou através da clareira que precedia a entrada no jardim. Dirigiram-se ambos para um ponto afastado do local onde estavam os guardas. Se lhes despertassem a atenção, eles perceberiam a atividade da energia angelical e conseguiriam ver para além dos disfarces; seriam logo desmascarados.

Durante dias, na sua forma humana, vaguearam no incomensurável jardim. Não viam Adam nem Rrava na gruta onde Lilian vivera. Os inúmeros animais que povoavam o jardim olhavam-nos estranhamente: “Sabem que não pertencemos aqui.” Avisou Samael.

Durante praticamente todo o dia andavam juntos e comiam os abundantes e deliciosos frutos que pendiam das árvores e arbustos. Não havia ali nada que lhes fizesse mal, tal como os animais que, mesmo os perigosos, como os tigres, ou os lobos, limitavam-se a olhá-los e a seguir a sua vida. Lilian já tinha esquecido como o jardim era belo e colorido, em contraste com o poeirento e árido mundo lá fora.

— Por que é tão diferente o exterior? — Ela questionou subitamente, quando estavam sentados numa pedra a comer laranjas. — Aqui é tudo tão verde, luxuriante e lá fora seco e tudo é terra castanha, quase sem árvores nem água.

— O mundo não é todo assim. — O anjo deixou cair os olhos para o chão, melancólica e pensativamente, após o que respondeu. — Antes da Guerra no Céu, o Criador e todos os anjos trabalhavam afincadamente a transformar uma bola de pedra e terra seca, que era este planeta, num imenso jardim povoado de árvores e vida animal. Olhou-a como se a não visse, mas sim algo que acontecera há milénios:

O Criador fez várias experiências com múltiplas espécies. Não se conseguia decidir e rapidamente, num frenesi descontrolado, toda a Terra estava habitada por répteis. Os mais variados tipos de gigantescos répteis, desde o fundo dos oceanos até aos próprios ares! Ele sentia, no entanto, uma enorme frustração porque não era aquilo que pretendia, embora não soubesse ainda o que era.

Um dia, furioso, enviou uma enorme pedra sobre a Terra que provocou uma devastação enorme e destruiu praticamente tudo o que fora construído. Todos os anjos ficaram revoltados com tão grande destruição e alguns mostraram essa revolta abertamente ao Criador.

O planeta ficou coberto de poeiras do impacto. Ondas gigantescas lamberam as zonas costeiras, enquanto grandes fogos irrompiam pelas florestas. Perturbados, os vulcões cuspiam furiosamente o seu conteúdo flamejante. Nuvens de fumo e poeira estenderam-se à escala planetária. Toda a vida extinguiu-se e o trabalho efetuado desaparecera. Restou um mal-estar no Céu, enquanto a Terra, privada do calor do sol, arrefecia e ficava gradualmente coberta de gelo.

Então alguns de nós percebemos que nem tudo desaparecera; havia uma pequena faixa do planeta de onde as nuvens se dissiparam. Havia árvores, rio e… muitas espécies de novos animais a povoavam.

Felizes, os anjos voltaram ao trabalho, à medida que o calor do sol, agora liberto das nuvens, fazia derreter lentamente as grandes camadas de gelo. A área povoada de fauna e flora crescia.

As Potestades e as Virtudes[1] são as classes que mais trabalham nessas criações. Alguns deles, apaixonam-se de tal forma pelo fruto do seu trabalho que se fundem com ele, tornando-se como que a alma dessas entidades. Há Potestades nas águas dos rios e dos mares, no vento que envolve a Terra, nas montanhas e nos próprios vulcões, enquanto outros vagueiam livremente ao sabor do vento velando pela fauna, acarinhando tanto rebanhos de cabras, como manadas de elefantes. Era um mundo novo para um novo reino onde os mamíferos se sobrepunham ao reduzido número dos répteis que sobreviveram à grande extinção.

Só quase no final o Criador mostrou-nos quem estava na base do Seu novo plano; eram umas criaturas desengraçadas, curvadas e peludas que viviam em grupos miseráveis. Pesados demais para serem macacos, pois não conseguiam subir às árvores com a graciosidade deles, eram também demasiado fracos e pequenos para serem ursos. Estavam condenados ao extermínio.     

Alguns de nós apaixonaram-se imediatamente por eles, ou não fosse essa a vontade do Criador, mas, outros, discordaram completamente da escolha e fizeram questão de o dizer.

O Senhor, porém, não estava com paciência para escutar vozes dissonantes. Afirmou ser essa a Sua decisão irrevogável, acrescentando ainda; toda a classe angelical serviria estes seres mirrados e auxiliaria a guiá-los na sua sobrevivência, corrigindo os seus erros e apoiando-os nos seus planos.

Alguns dos mais poderosos do Céu fizeram ouvir a sua revolta abertamente. Lúcifer, mais do que qualquer um, o Querubim a quem chamavam “o Portador da Luz”, desafiou o próprio Criador, afirmando que Ele enlouquecera e não podiam mais obedecer-Lhe.

Ao arcanjo rebelde, juntaram-se-lhe outras poderosas entidades, como Belial, Moloque, Abaddon, Beelzebub, Mammon, …  representavam uma força temível, envolvendo várias classes angelicais, que pretendia aprisionar o Criador, tomar o poder e as rédeas da Criação.

Muitos de nós temiam-nos e não se atreveram a contestá-los. Moloque, era como que a fúria de Deus, revoltado e adepto da violência extrema, chamam-lhe agora “Deus dos Sacrifícios”, por incentivar os sacrifícios humanos pelo fogo, para sua honra. Beelzebub, “O Senhor das Moscas”, era divinamente perigoso. Na hierarquia celeste, estava ao nível de Lúcifer e nunca olhou a meios, por mais tortuosos que fossem, para atingir os fins e desafiá-lo era correr graves riscos. Mammon era engenhoso, além de ganancioso e revoltado. Algumas das armas mais cruéis e terríveis usadas na guerra foram desenvolvidas por ele.

Apenas Miguel lhes fez frente; “Aquele que é como Deus” chefiou as hostes fiéis ao Criador, encabeçou os melhores guerreiros e expulsou os rebeldes para a Terra, fechando-lhe os portões do Céu.

Desde então, Lúcifer e os seus sequazes espalham a miséria e a desolação por todo o lado, escondendo-se onde os nossos trabalhos não chegaram, ou onde eles os destruíram.

Se já o faziam antes, após a derrota no Céu, dedicaram-se com mais afinco a corromper a Criação e a iludir os povos dispersos. Na verdade, o facto de nascerem tantos “deuses” nestas terras áridas é apenas a prova da ausência da “Shekinah”.[2] Quase todas as povoações adoram o seu próprio deus que, na maior parte dos casos, é apenas um dos companheiros de Lúcifer, mais ou menos disfarçado. No fundo, são pequenos focos de poder, que não se entendem entre si.

Fala-se nos Céus que os expulsos estão a construir um grande palácio a que chamam Pandemónio[3], nas profundezas da Terra e onde pretendem organizar uma contraofensiva para tomar o poder.

— E tu colaboras com eles… — interveio finalmente Lilian.

— Não quero realmente Lúcifer como governante… — confessou Samael olhando para o chão —… mas muitas vezes questiono-me acerca da lucidez do Criador… e como eu, há outros. Samyaza, Azazel e Armaros são apenas os mais proeminentes deles.

— Achas que haverá outra guerra no Céu? — Ela sorriu com a ideia.

— Não sei, não consigo prevê-lo. — Ele encolheu os ombros. — Este novo grupo não parece interessado no poder. Perturba-os o livre arbítrio concedido aos humanos e a submissão imposta aos anjos. Samyaza e o seu grupo fazem parte daqueles escolhidos pelo Criador como Vigilantes[4] dos humanos e estão fortemente envolvidos com o objeto da sua vigilância. Grande parte tomou mulheres entre os humanos e muitos têm até filhos com elas… — aqui olhou conspicuamente para Lilian — por isso invoquei a ajuda deles.

— Então há mais como o meu filho?  — Alegrou-se a mulher. — Não estaria mais seguro entre eles?

— Antes pelo contrário. — O rosto do arcanjo contraiu-se numa expressão de dor. — Alguns têm uma altura incomum, para um humano, outros, detêm poderes especiais, mas aquilo que todos sem exceção revelam é uma crueldade e uma revolta sem limites. O lado demoníaco dos anjos sobressai na hibridação com os humanos… chamam-lhe os Nefilim 



[1] Classes de anjos da segunda tríade, vocacionada para a execução da vontade divina

[2] Palavra hebraica que significa “habitação” ou “presença de Deus”. Para os teólogos a tradução que mais se aproxima dessa palavra é “a glória de Deus se manifesta”

[3] O nome Pandemónio deriva do grego, combinando pan (todos) e daimónion (demónios ou espíritos), significando literalmente "o lugar de todos os demónios" e é referido na obra de John Milton, “O Paraíso Perdido”

[4] Os Vigilantes, Grigori, em grego, fazem parte do livro de Enoch onde se conta em pormenor a história deste grupo angelical, que ficará conhecido como os Anjos Caídos.

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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Sexta parte - O Perigo por Perto

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Samael e Armaros estavam preocupados com a presença de Jahi. Faltava ter a certeza se ela tentava aliciar Lilian por sua própria iniciativa, ou se cumpria ordens de Belial… que por sua vez as cumpriria do próprio Lúcifer. Estaria ali um plano para descobrir a localização do Jardim do Éden e do projeto do Criador?

Por várias ações, que acabaram por culminar na primeira guerra do Céu, Lúcifer já provara não ser um anjo como os outros e por isso tentou sobrepor-se ao próprio Criador. Só pela força física acabou sendo subjugado. Se ele estivesse envolvido nesta tentativa de levar Lilian para o seu lado, todos corriam perigo; Lúcifer só reconhecia duas posições; ou a favor, ou contra ele.

Os planos de Armaros, Samyaza e dos restantes vigilantes iam apenas no sentido de interromper o projeto do Criador, embora a eventual morte das criaturas humanas chegasse a estar prevista. Não queriam, porém, a destruição do jardim e isso era o que aconteceria se envolvessem Lúcifer e o seu bando de anjos demoníacos; toda a área ficaria transformada num deserto, à semelhança de outras intervencionadas por eles.

Os anjos que continuavam nos céus, apesar de se saberem superiores aos humanos, amavam-nos como à restante Criação, não podiam era aceitar a humilhação de serem-lhes subservientes. A ideia do assassinato como necessidade foi posta de parte, ainda mais porque achavam que o projeto do Criador incluiria um número elevado de humanos e não apenas um casal.

Samael, já reunido com Samyaza e Armaros, pediu-lhes que não perguntassem a localização, pois não conseguiria mentir, mas garantiu que, em conjunto com Lilian, faria abortar o projeto; Adam e Rrava abandonariam o jardim e viveriam como os restantes humanos.

— E se o Senhor descobrir o que estamos a fazer? — Samyaza perguntou com os olhos fixos no chão.

— Vai ficar furioso, claro! — Afirmou Armaros. — Seremos castigados de alguma maneira. Espero que não nos faça como a Lúcifer e aos outros.

— O que eles fizeram foi muito mais grave! — Samael afirmou, hesitante. — Não foi?

— É inútil estar a tentar prever o futuro e saber como o Senhor encarará mais esta traição. — Samyaza encerrou a discussão. — Irmão: Se estás determinado a atingir os nossos objetivos com a ajuda de Lilian, fá-lo quanto antes. De outra forma, diz-nos onde fica e nós o faremos, Azazel e Baraqiel[1] há muito que querem que reveles o segredo… se calhar já estaria tudo resolvido.

— Não o conseguiríamos fazer pela força, irmãos. — Samael deixou cair os braços com desânimo. — Um grupo agressivo provocaria outra guerra; o Senhor invocaria Miguel e os seus guerreiros. Deixem-nos fazer isto de forma mais subtil, deverá ser o próprio Criador a terminar o projeto, para isso teremos de convencer Adam e Rrava a fazer o contrário do que o Criador pretende.

Os dois Vigilantes abraçaram o irmão, encorajando-o. Lilian, que se mantivera em silêncio, a brincar com o filho, olhou conspicuamente para o seu protetor.

O anjo devolveu-lhe o olhar pensativamente antes de concluir: — Temos de começar a trabalhar.

Nos dias que se seguiram, Armaros dedicou-se a tentar ensinar Lilian a controlar a faculdade do teletransporte. As palavras que a deveriam projetar funcionavam sempre de forma caótica e atiravam-na para os locais mais inesperados. O que para os anjos ocorria com natural suavidade, para ela era como uma explosão. Temiam que, o libertar desenfreado de tanta energia angelical no jardim, alertasse os querubins guardiões, ou mesmo o próprio Criador, que devia estar mais vigilante.

Fora assim, de resto, que ela caíra na terra de Nod, quando fugira do jardim, sem que Samael soubesse para onde havia ido. O pobre sistema vocal dos humanos não conseguia reproduzir algumas subtilezas do idioma divino. As palavras, que soavam como música quando proferidas por um anjo, saíam-lhe pouco melodiosas e grosseiras, trazendo resultados diferentes do que se esperava.

Asmodai ria divertido com o desespero dos anjos e batia as palmas quando eles regressavam trazendo a sua mãe de mais um “jogo de escondidas”.

Cansados de “perseguir” a jovem pelos mais diversos locais para onde ela se projetava, optaram por tentar a invisibilidade, o que se revelou uma completa impossibilidade. A mulher não conseguiu de forma nenhuma articular o feitiço e nada acontecia, aquelas palavras estavam vedadas aos humanos.

A solução teria de estar na metamorfose; se ela se transformasse num qualquer animal, passaria facilmente desapercebida e conseguiria entrar no jardim.

Foram vários os animais que tentaram, mas também aqui os resultados não eram nada animadores; uns incompletos e outros nem por isso. Uma vez mais, a incapacidade linguística era determinante nos péssimos resultados que obtinham.

Também aqui a criança se divertia, assustando-se poucas vezes, por mais espantoso dragão com cabeça humana ou terrível tigre com pernas humanas que se formasse ante os seus olhos.

Foi com a serpente que conseguiram o resultado melhor. Lilian transmutou-se numa enorme serpente castanho-dourada, decorada com manchas vermelhas, onde sobressaíam os seus olhos verdes. Não fossem as inesperadas barbatanas laterais em forma de mãos, poderia enganar qualquer um. Ocasionalmente a transformação tremeluzia, como se fosse regredir a qualquer momento, mas teriam de arriscar, não podiam perder mais tempo, urgia partir para a ação.



[1] Mais dois anjos que faziam parte do grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes” (Grigori em grego)

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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quinta parte - Na Terra de Nod

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Devastada com a eventualidade de perder o seu filho, Lilian acarinhava-o e abraçava-o com força, como se temesse que este se escapulisse entre os seus braços.

Samael estava quase em permanência com ela, preocupado, sem saber o que fazer, que não fosse um desafio direto à autoridade do Criador. Também os seus dois companheiros, Samyaza e Armaros[1] visitavam-nos frequentemente, o primeiro era experiente no seu envolvimento com humanas, mas nunca se preocupara em saber que fora feito delas, o segundo, por seu turno, era hábil nas palavras mágicas e nas defesas contra os feitiços. Os três teceram uma proteção mágica sobre a mulher e a criança e, para que melhor se defendessem, Samyaza imbuiu-os de alguma da sua essência angelical tornando-os algo mais que humanos.

Aquela era a altura, segundo eles, para dar o nome à criança. Quando Samael se preparava para ditar a palavra com que selaria o filho até ao fim dos seus dias, Lilian sussurrou “Asmodai”. Os três anjos olharam-na com espanto.

A mulher, com o seu olhar ausente, repetiu, agora com voz mais decidida; — Asmodai[2], que quer dizer Espírito da Fúria, pois esta criança, filha do amor, será sempre revoltada e furiosa contra Aquele que a amaldiçoou.

— Pois que seja Asmodai. — Sentenciou Armaros, erguendo a mão direita num gesto de abençoar e crescendo enormemente para assumir a sua forma de anjo. Converteu-se numa criatura de mais de três metros de altura, a pele reluzente como ouro e com enormes asas da mesma cor. — Feitiços e dentes de bruxa não fenderão a carapaça que aqui te ponho, veneno de cobra não vingará no teu sangue, nem peçonha na tua pele, a pedra resvalará, a espada não penetrará e o pau partir-se-á.

— Serás grande entre os Homens. — Samyaza seguiu os passos do companheiro e tornou-se num gigantesco fenómeno de pele como cobre em brasa e os seus olhos soltavam chispas. — Eles seguir-te-ão até à morte e as tuas palavras serão para eles como a água no deserto.

Não ficando atrás dos seus amigos, Samael tornou-se num gigante, cor de prata, emitindo uma luz resplandecente que iluminou toda a gruta, encandeando-os a todos: — Asmodai, comandarás os Homens em batalha e vencerás mil guerras, serás chefe de milhares e não conhecerás a derrota.

Agradecida e atemorizada pelo impressionante aspeto dos seus protetores, Lilian ajoelhou frente a eles, sem largar a criança que chorava e esperneava.

— Tu, Lilian, — Armaros estendeu a descomunal mão sobre a mulher. — Enganarás a morte muitas vezes e os teus dias não terão fim, serás amada por milhares e odiada na Terra por outros tantos. O encanto que o Criador te deu, eu dobro e ponho mais, nenhum homem te conseguirá resistir. Mesmo nunca sendo rainha, os reis ajoelharão a teus pés e farão o que mandares.

— Assim seja, ámen! — Trovejaram os três poderosos seres.

Depois dos últimos ecos do encantamento retumbarem na gruta, fez-se um silêncio pesado enquanto as paredes pareciam reluzir, recobertas de palavras escritas na língua que apenas os seres divinos conhecem.

A gargalhada cristalina de uma criança quebrou o silêncio que se impunha, como se de um espelho se tratasse. O som foi contagiante e todos sorriram felizes para o bebé Asmodai que agitava as mãos e os pés com satisfação.

Para Lilian, aquela era uma criança que nascera de uma gravidez normal, mas ela não tinha experiência suficiente. Se a tivesse, saberia que as crianças humanas levavam nove e não quatro meses a formar-se no ventre da mãe… e que o seu bebé de doze semanas apresentava já o desenvolvimento de doze meses.

Nos tempos que Lilian ficava sozinha, alargava os seus horizontes, afastando-se cada vez mais da gruta que habitava. Eventualmente acabou por travar conhecimento com as pessoas da aldeia próxima, que se mostravam amigáveis, embora curiosos com as suas origens, que preferia não revelar. Asmodai crescia e aparentava já dois anos.

Jahi, uma das mulheres da aldeia, perdera um filho recentemente e visitava-os com frequência para estar próxima da criança. Era uma bela jovem, magra, de longos cabelos e olhos negros sobre um rosto oval de lábios carnudos. Apesar de se afirmar uma pobre aldeã, as suas mãos denunciavam a ausência de trabalhos duros.

As duas mulheres passavam longos períodos a conversar sobre os males que afligiam a população; como a longa seca prejudicara as colheitas e como os deuses não haviam abençoado os rebanhos, onde nasceram menos crias que nos anos anteriores. Por vezes, a aldeã tentava abordar o tema de onde vieram e como se mantinham isolados na gruta, onde não parecia faltar nada, mas Lilian sempre desviava a conversa.

Um dia, ela sentiu-se particularmente desconfortável quando Jahi lhe falou de Belial. Era o poderoso deus protetor da aldeia; fazia com que as colheitas fossem abundantes, os rebanhos férteis e os rios generosos. Graças ao deus, antigamente havia peixe, carne e cereais, agora, porém, parecia ter-se esquecido do seu povo e as pessoas passavam fome. Os crentes já haviam sacrificado vários animais e até crianças, aqui Lilian deitou-lhe um olhar desconfiado, mas nada resultara e agora procuravam uma razão para a ira do deus. Jahi mostrou-se um pouco nervosa quando confessou que havia quem dissesse que a recém-chegada, com a criança, eram os culpados. “Claro que eu não penso nada disso” desculpou-se “e sempre vos defendi…”

Num rasgo de oportunidade, Samael entrou na gruta. Apresentava-se, como sempre, como um humano comum, mas o seu rosto ficou sombrio ao deparar com Jahi. Também esta se mostrou perturbada e agitada com o recém-chegado, ficando aparentemente sem saber o que fazer. Embora não soubesse de quem se tratava, sentiu emanar dele um poder e uma autoridade que pareciam esmagá-la, pelo que se ajoelhou humildemente gemendo: — Sejas bem-vindo, meu senhor, perdoa a minha intromissão.

O anjo olhou interrogativamente para Lilian antes de tornar, preocupado, para a estranha mulher. — Que fazes aqui, criatura? — Trovejou com autoridade. — Quem és tu?

— Meu senhor, — ela continuou sem se atrever a levantar os olhos —, apenas mato algum tempo com a minha amiga, desculpai-me o atrevimento. Sou apenas uma pobre camponesa, viúva que perdeu o único filho.

— Não és tal! — Acusou Samael parecendo crescer. — Que queres daqui? Vejo o negrume que te guia e que se alarga para envolver tudo e todos. — Em seguida olhou para o teto da gruta e abriu os braços. Numa voz gutural, invocou algumas palavras incompreensíveis da qual apenas se distinguiu o nome Armaros.

Quase no mesmo instante o outro anjo materializou-se a seu lado. Também ele fixou imediatamente os olhos em Jahi: — Criatura! — A poderosa voz angelical fez tremer o chão e as paredes. — Que fazes aqui? És um esbirro de Belial[3], não és? Que te manda o teu negro senhor fazer?

— Mil perdões, perdoai esta pobre mortal! — Ela estava visivelmente aflita e chorava apavorada. — Não sabia estarem sob a vossa proteção, poderosos senhores. Apenas tentava arranjar mais um sacrifício para o meu amo!

— Se tornas a aproximar-te deles, far-te-ei em pedaços, antes de te atirar para os fogos eternos! — Avisou Samael.

— Volta para a escuridão onde pertences, demónio[4]! — Exorcizou Armaros.

— Piedade, nobres senhores, misericordiosos senhores… — a mulher, quase rastejando, aproximava-se gradualmente da saída, sempre com a cabeça baixa temendo ser fulminada se enfrentasse o olhar dos formidáveis seres. Assim que viu o caminho desimpedido, lançou-se numa corrida pela própria vida.



[1] Estes dois anjos faziam parte de um grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes”(Grigori em Grego)

[2] Asmodai ou Asmodeus tem origem no persa antigo e significa algo como demônio da ira ou espírito da fúria, derivado da figura zoroastriana de Aeshma.

[3] Um dos anjos expulsos do Céu após a revolta de Lúcífer, acontecida durante a criação da vida na Terra.

[4] Jahi é o nome na língua avéstica da demônia da "lascívia" do Zoroastrismo. Como uma entidade hipostática, Jahi é interpretada de várias maneiras como "vadia", " libertina ", "cortesã" e "aquela que leva uma vida licenciosa". Seu epíteto padrão é "a prostituta". In Wikipedia

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sábado, 12 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quarta parte - O Plano B

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;

E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.

E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada.

 

Versículos 21, 22 e 23 do livro do Génesis

 

O fracasso dos três emissários em fazer regressar Lilian era embaraçador e só deixara o Criador ainda mais frustrado: não era possível que aquela mortal tivesse a audácia de desobedecer. O facto de a terem amaldiçoado, em nada contribuía para o Seu objetivo e era apenas uma vingança mesquinha, por despeito.

O livre arbítrio era uma coisa complicada, nem os anjos tinham tanta liberdade; podiam tomar decisões independentes e enveredar por este ou aquele caminho, mas apenas na ausência de uma ordem direta. Como poderia lidar com uma criatura que mentia e omitia sem qualquer pejo e recusava-se a cumprir o que lhe ordenavam?

Chegava à conclusão que fora um erro ter criado Adam e Lilian da mesma forma. Inexplicavelmente, embora partilhassem ambos dos mesmos elementos, da mesma inteligência, curiosidade e vontade de aprender, o homem mostrou-se mais submisso e obediente do que a mulher. É verdade que ele tentou sobrepor-se a ela desde o primeiro dia e desde essa altura ela mostrou-se insubmissa exigindo igualdade ao companheiro.

Estava decidido. Teria de arranjar nova mulher para Adam, uma mais ligada a ele, dependente e que não o desafiasse.

Quando o homem dormia, o Criador extraiu uma das suas costelas que misturou no caldo de terra, fogo, ar e água com que formou a nova mulher. Uma vez mais era uma criatura belíssima, mas desta feita com cabelo escuro e olhos castanhos. Segredou ao ouvido da concha vazia as palavras que lhe davam a vida e ela estremeceu, animou-se e sorriu ao Pai.

Chamou-lhe Rrava[1], que quer dizer vida, seria aquela que daria a vida à humanidade, a partir de Adam, que quer dizer terra[2]. Era aquela a segunda mulher do paraíso e desejou que o seu nome fosse menos enganador ou suscetível a deceções como sucedera com Lilian, que significa pura, inocente[3]. Agora queria esquecê-la e começar de novo.

Na mente do Criador, digladiavam-se agora várias fugas no segredo da existência do seu projeto; o escândalo à volta da fuga de Lilian, o facto de ela poder revelar coisas como a localização, o desconhecimento de quem fora o insidioso velhaco causador da sua fuga. Precisava de mais segurança e isso implicava envolver mais elementos; dois querubins, empunhando as suas espadas flamejantes, foram invocados para a segurança do jardim.

A paz voltou então ao paraíso. Rrava, que proveio de Adam, partilhava da sua simplicidade, sendo a sua curiosidade mais pura e menos insaciável. Ambos se quedavam fascinados a escutar o canto cristalino do rio nas pedras, o sussurrar do vento nos ramos das árvores, ou mesmo a conversar com os outros animais, que Lilian achava tão limitados.

O Criador voltara aos Seus ensinamentos, falando-lhes da Sua Criação, de como tudo se interligava, preparando-os para o dia os tiraria da segurança do jardim e esvaziaria a Terra de todas as aberrações que a conspurcavam.

Ele não interferia, mas olhava com preocupação para o que acontecia para lá dos muros invisíveis do Jardim do Éden. Os humanos selvagens, para além das suas limitações em termos de força e tamanho, conseguiam sobrepor-se a outros seres mais possantes. Derrotavam centauros, gigantes e ogres, ainda que com grandes perdas. Os outros deuses pareciam desinteressados em proteger as suas criações, ou haviam resolvido deixar os selvagens à sua vontade, na luta pela sobrevivência. A sua tenacidade e inteligência acabavam por compensar a falta de força da espécie humana. Alguns pequenos agrupamentos de casas de adobe tonavam-se aldeias à medida que mais casas iam sendo construídas para albergar a população que crescia.

Nunca fora intenção do Criador que os humanos dominassem o fogo, ou utilizassem os ossos dos animais que matavam para fazerem armas e as suas peles para vestuário, mas reconhecia que, se assim não fosse, não teriam nenhuma hipótese contra as outras espécies criadas para os exterminar. O equilíbrio natural era quase perfeito e, nesse aspeto concordava com as vozes contra a criação dos humanos, eles eram uma rotura nesse equilíbrio. O animal-inteligente, ao contrário do animal-força-bruta,, estaria predestinado ao sucesso. Nada de répteis gigantescos, desajeitados e brutos como aqueles que povoavam a Terra na primeira fase… ainda bem que acabara com praticamente todos, ou quase, os que restaram desapareceriam com o tempo. Chegara à conclusão que detestava cobras e lagartos.

O ser humano era o mais próximo que podia existir da face mais frágil dos anjos, que Ele amava profundamente. Como estes últimos eram imortais e tinham em si um demónio furioso, removeu na sua criação a capacidade de se transformar, ficar invisível ou incorpóreo, deu-lhes, contudo, a capacidade de questionar e tomar decisões de moto próprio. O ser humano não se sentiria compelido a seguir as ordens do Criador, se tal não pretendesse, mas também o seu tempo de vida seria finito, se algum deles Lhe desagradasse, bastaria ignorá-lo até que chegasse ao fim dos seus dias… embora por vezes a Sua Infinita Paciência se esgotasse e mandasse Samael acabar com ele, ou eles. Sabia que o arcanjo nem sempre cumpria a totalidade das missões e a sua compaixão acabava por deixar vivos alguns elementos dispersos das tribos que fora incumbido de eliminar até à última alma, mas não se importava, também Ele sofria por mandar castigar os Seus filhos.

Lilian estava agora também a testar a Divina Paciência e a desafiar as Suas ordens. Ignorá-la, seria fácil e apenas teria de esperar algumas centenas de anos até que ela envelhecesse e morresse, para Ele seria o mesmo que uns minutos na escala temporal divina. A simples existência dela, porém, incomodava-o e prejudicava a sua atenção ao projeto. Quem sabe se não mandaria Samael visitá-la para eliminar o problema.

Também não pretendia, assim que os dois humanos do Seu jardim estivessem prontos, deixar vivos os outros, cheios de vícios e maldade no coração cultivados nas constantes lutas pela sobrevivência. O Seu jardim produziria aqueles que iriam povoar o mundo; humanos e outros animais a coexistirem livremente. A Terra teria de ser um lugar de paz e concórdia, para isso, sofreria uma purga quase total. O próximo evento de extermínio seria para apagar da face do planeta todos os seres com algum nível de inteligência, que não estivessem sob o seu controlo e não fossem da Sua Própria Criação.



[1] Eva em hebraico é Chava, que deriva da palavra "vida". CH em hebraico tem o som de RR, logo Chava = Rrava.

[2] Adão em hebraico é adam. Assim ele se chama, pois a Torá nos conta que Deus tirou-o da terra, que significa adamá em hebraico. Com esse mesmo radical temos a cor vermelha, adom que pressupõe que a terra era vermelha como o barro. Todos somos descendentes de Adão, por isso ser humano é ben adam, que literalmente significa filho de Adão.

https://www.hebraicosimples.com/post/nomes-b%C3%ADblicos-significado-em-hebraico

[3] Como este texto trata-se de uma adaptação livre do Génesis, assumi que Lilith, a existir, não se chamaria assim, terá tido um nome hebraico, daí ter escolhido Lilian (porque não?). Só terá começado a ser chamada de Lilith mais tarde, associando-a ao demónio feminino Liliu da Mesopotâmia.

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