segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Sétima parte - A Criação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Quando o Criador proclamou o advento de um novo ser — o Homem — e designou Seu Filho como o mediador divino, Lúcifer viu nisso um insulto à sua própria magnificência. “Por que devemos curvar-nos diante de outro?”, ele pensou, “se somos livres e dotados de poder?” Sua voz, persuasiva e doce como o mel, espalhou-se entre os corações angélicos que começavam a questionar: seria a submissão nosso único destino?

 

In “O Paraíso Perdido” de John Milton

 

De longe, Samael e Lilian apreciaram os dois portentosos Querubins que guardavam a entrada do jardim do Éden. As espadas flamejantes faziam com que tudo em volta parecesse escuro.

A mulher estremeceu com a espantosa visão, mas o anjo acalmou-a: — Sossega. Apesar do seu aspeto, não te fariam mal. Apesar de guerreiros temíveis, são um pouco limitados nas suas ações e seguem as ordens do Senhor cegamente. Se lhes ordenaram que não deixassem ninguém entrar ou sair, assim farão. Desviarão ou impedirão a entrada, ou saída, de quem quer que seja, se não tentarem pela violência, não terão problemas.

— Mas… — Lilian achava estar a ver mal —… não são mulheres?

— Masculinos ou femininos, que interessa? — Samael sorriu-lhe divertido. — São anjos e são Querubins. São os guardiões do conhecimento divino e nada os detém para o proteger. — Murmurou algumas palavras e transformou-se num melro que pousou numa pedra fitando insistentemente a mulher.

Lilian, após alguma hesitação, murmurou o encantamento e o seu corpo principiou a torcer-se e a mirrar, até restar a espantosa serpente castanha e vermelha de olhos verdes.

Guiada pelo melro, a serpente rastejou através da clareira que precedia a entrada no jardim. Dirigiram-se ambos para um ponto afastado do local onde estavam os guardas. Se lhes despertassem a atenção, eles perceberiam a atividade da energia angelical e conseguiriam ver para além dos disfarces; seriam logo desmascarados.

Durante dias, na sua forma humana, vaguearam no incomensurável jardim. Não viam Adam nem Rrava na gruta onde Lilian vivera. Os inúmeros animais que povoavam o jardim olhavam-nos estranhamente: “Sabem que não pertencemos aqui.” Avisou Samael.

Durante praticamente todo o dia andavam juntos e comiam os abundantes e deliciosos frutos que pendiam das árvores e arbustos. Não havia ali nada que lhes fizesse mal, tal como os animais que, mesmo os perigosos, como os tigres, ou os lobos, limitavam-se a olhá-los e a seguir a sua vida. Lilian já tinha esquecido como o jardim era belo e colorido, em contraste com o poeirento e árido mundo lá fora.

— Por que é tão diferente o exterior? — Ela questionou subitamente, quando estavam sentados numa pedra a comer laranjas. — Aqui é tudo tão verde, luxuriante e lá fora seco e tudo é terra castanha, quase sem árvores nem água.

— O mundo não é todo assim. — O anjo deixou cair os olhos para o chão, melancólica e pensativamente, após o que respondeu. — Antes da Guerra no Céu, o Criador e todos os anjos trabalhavam afincadamente a transformar uma bola de pedra e terra seca, que era este planeta, num imenso jardim povoado de árvores e vida animal. Olhou-a como se a não visse, mas sim algo que acontecera há milénios:

O Criador fez várias experiências com múltiplas espécies. Não se conseguia decidir e rapidamente, num frenesi descontrolado, toda a Terra estava habitada por répteis. Os mais variados tipos de gigantescos répteis, desde o fundo dos oceanos até aos próprios ares! Ele sentia, no entanto, uma enorme frustração porque não era aquilo que pretendia, embora não soubesse ainda o que era.

Um dia, furioso, enviou uma enorme pedra sobre a Terra que provocou uma devastação enorme e destruiu praticamente tudo o que fora construído. Todos os anjos ficaram revoltados com tão grande destruição e alguns mostraram essa revolta abertamente ao Criador.

O planeta ficou coberto de poeiras do impacto. Ondas gigantescas lamberam as zonas costeiras, enquanto grandes fogos irrompiam pelas florestas. Perturbados, os vulcões cuspiam furiosamente o seu conteúdo flamejante. Nuvens de fumo e poeira estenderam-se à escala planetária. Toda a vida extinguiu-se e o trabalho efetuado desaparecera. Restou um mal-estar no Céu, enquanto a Terra, privada do calor do sol, arrefecia e ficava gradualmente coberta de gelo.

Então alguns de nós percebemos que nem tudo desaparecera; havia uma pequena faixa do planeta de onde as nuvens se dissiparam. Havia árvores, rio e… muitas espécies de novos animais a povoavam.

Felizes, os anjos voltaram ao trabalho, à medida que o calor do sol, agora liberto das nuvens, fazia derreter lentamente as grandes camadas de gelo. A área povoada de fauna e flora crescia.

As Potestades e as Virtudes[1] são as classes que mais trabalham nessas criações. Alguns deles, apaixonam-se de tal forma pelo fruto do seu trabalho que se fundem com ele, tornando-se como que a alma dessas entidades. Há Potestades nas águas dos rios e dos mares, no vento que envolve a Terra, nas montanhas e nos próprios vulcões, enquanto outros vagueiam livremente ao sabor do vento velando pela fauna, acarinhando tanto rebanhos de cabras, como manadas de elefantes. Era um mundo novo para um novo reino onde os mamíferos se sobrepunham ao reduzido número dos répteis que sobreviveram à grande extinção.

Só quase no final o Criador mostrou-nos quem estava na base do Seu novo plano; eram umas criaturas desengraçadas, curvadas e peludas que viviam em grupos miseráveis. Pesados demais para serem macacos, pois não conseguiam subir às árvores com a graciosidade deles, eram também demasiado fracos e pequenos para serem ursos. Estavam condenados ao extermínio.     

Alguns de nós apaixonaram-se imediatamente por eles, ou não fosse essa a vontade do Criador, mas, outros, discordaram completamente da escolha e fizeram questão de o dizer.

O Senhor, porém, não estava com paciência para escutar vozes dissonantes. Afirmou ser essa a Sua decisão irrevogável, acrescentando ainda; toda a classe angelical serviria estes seres mirrados e auxiliaria a guiá-los na sua sobrevivência, corrigindo os seus erros e apoiando-os nos seus planos.

Alguns dos mais poderosos do Céu fizeram ouvir a sua revolta abertamente. Lúcifer, mais do que qualquer um, o Querubim a quem chamavam “o Portador da Luz”, desafiou o próprio Criador, afirmando que Ele enlouquecera e não podiam mais obedecer-Lhe.

Ao arcanjo rebelde, juntaram-se-lhe outras poderosas entidades, como Belial, Moloque, Abaddon, Beelzebub, Mammon, …  representavam uma força temível, envolvendo várias classes angelicais, que pretendia aprisionar o Criador, tomar o poder e as rédeas da Criação.

Muitos de nós temiam-nos e não se atreveram a contestá-los. Moloque, era como que a fúria de Deus, revoltado e adepto da violência extrema, chamam-lhe agora “Deus dos Sacrifícios”, por incentivar os sacrifícios humanos pelo fogo, para sua honra. Beelzebub, “O Senhor das Moscas”, era divinamente perigoso. Na hierarquia celeste, estava ao nível de Lúcifer e nunca olhou a meios, por mais tortuosos que fossem, para atingir os fins e desafiá-lo era correr graves riscos. Mammon era engenhoso, além de ganancioso e revoltado. Algumas das armas mais cruéis e terríveis usadas na guerra foram desenvolvidas por ele.

Apenas Miguel lhes fez frente; “Aquele que é como Deus” chefiou as hostes fiéis ao Criador, encabeçou os melhores guerreiros e expulsou os rebeldes para a Terra, fechando-lhe os portões do Céu.

Desde então, Lúcifer e os seus sequazes espalham a miséria e a desolação por todo o lado, escondendo-se onde os nossos trabalhos não chegaram, ou onde eles os destruíram.

Se já o faziam antes, após a derrota no Céu, dedicaram-se com mais afinco a corromper a Criação e a iludir os povos dispersos. Na verdade, o facto de nascerem tantos “deuses” nestas terras áridas é apenas a prova da ausência da “Shekinah”.[2] Quase todas as povoações adoram o seu próprio deus que, na maior parte dos casos, é apenas um dos companheiros de Lúcifer, mais ou menos disfarçado. No fundo, são pequenos focos de poder, que não se entendem entre si.

Fala-se nos Céus que os expulsos estão a construir um grande palácio a que chamam Pandemónio[3], nas profundezas da Terra e onde pretendem organizar uma contraofensiva para tomar o poder.

— E tu colaboras com eles… — interveio finalmente Lilian.

— Não quero realmente Lúcifer como governante… — confessou Samael olhando para o chão —… mas muitas vezes questiono-me acerca da lucidez do Criador… e como eu, há outros. Samyaza, Azazel e Armaros são apenas os mais proeminentes deles.

— Achas que haverá outra guerra no Céu? — Ela sorriu com a ideia.

— Não sei, não consigo prevê-lo. — Ele encolheu os ombros. — Este novo grupo não parece interessado no poder. Perturba-os o livre arbítrio concedido aos humanos e a submissão imposta aos anjos. Samyaza e o seu grupo fazem parte daqueles escolhidos pelo Criador como Vigilantes[4] dos humanos e estão fortemente envolvidos com o objeto da sua vigilância. Grande parte tomou mulheres entre os humanos e muitos têm até filhos com elas… — aqui olhou conspicuamente para Lilian — por isso invoquei a ajuda deles.

— Então há mais como o meu filho?  — Alegrou-se a mulher. — Não estaria mais seguro entre eles?

— Antes pelo contrário. — O rosto do arcanjo contraiu-se numa expressão de dor. — Alguns têm uma altura incomum, para um humano, outros, detêm poderes especiais, mas aquilo que todos sem exceção revelam é uma crueldade e uma revolta sem limites. O lado demoníaco dos anjos sobressai na hibridação com os humanos… chamam-lhe os Nefilim 



[1] Classes de anjos da segunda tríade, vocacionada para a execução da vontade divina

[2] Palavra hebraica que significa “habitação” ou “presença de Deus”. Para os teólogos a tradução que mais se aproxima dessa palavra é “a glória de Deus se manifesta”

[3] O nome Pandemónio deriva do grego, combinando pan (todos) e daimónion (demónios ou espíritos), significando literalmente "o lugar de todos os demónios" e é referido na obra de John Milton, “O Paraíso Perdido”

[4] Os Vigilantes, Grigori, em grego, fazem parte do livro de Enoch onde se conta em pormenor a história deste grupo angelical, que ficará conhecido como os Anjos Caídos.

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quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Sexta parte - O Perigo por Perto

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Samael e Armaros estavam preocupados com a presença de Jahi. Faltava ter a certeza se ela tentava aliciar Lilian por sua própria iniciativa, ou se cumpria ordens de Belial… que por sua vez as cumpriria do próprio Lúcifer. Estaria ali um plano para descobrir a localização do Jardim do Éden e do projeto do Criador?

Por várias ações, que acabaram por culminar na primeira guerra do Céu, Lúcifer já provara não ser um anjo como os outros e por isso tentou sobrepor-se ao próprio Criador. Só pela força física acabou sendo subjugado. Se ele estivesse envolvido nesta tentativa de levar Lilian para o seu lado, todos corriam perigo; Lúcifer só reconhecia duas posições; ou a favor, ou contra ele.

Os planos de Armaros, Samyaza e dos restantes vigilantes iam apenas no sentido de interromper o projeto do Criador, embora a eventual morte das criaturas humanas chegasse a estar prevista. Não queriam, porém, a destruição do jardim e isso era o que aconteceria se envolvessem Lúcifer e o seu bando de anjos demoníacos; toda a área ficaria transformada num deserto, à semelhança de outras intervencionadas por eles.

Os anjos que continuavam nos céus, apesar de se saberem superiores aos humanos, amavam-nos como à restante Criação, não podiam era aceitar a humilhação de serem-lhes subservientes. A ideia do assassinato como necessidade foi posta de parte, ainda mais porque achavam que o projeto do Criador incluiria um número elevado de humanos e não apenas um casal.

Samael, já reunido com Samyaza e Armaros, pediu-lhes que não perguntassem a localização, pois não conseguiria mentir, mas garantiu que, em conjunto com Lilian, faria abortar o projeto; Adam e Rrava abandonariam o jardim e viveriam como os restantes humanos.

— E se o Senhor descobrir o que estamos a fazer? — Samyaza perguntou com os olhos fixos no chão.

— Vai ficar furioso, claro! — Afirmou Armaros. — Seremos castigados de alguma maneira. Espero que não nos faça como a Lúcifer e aos outros.

— O que eles fizeram foi muito mais grave! — Samael afirmou, hesitante. — Não foi?

— É inútil estar a tentar prever o futuro e saber como o Senhor encarará mais esta traição. — Samyaza encerrou a discussão. — Irmão: Se estás determinado a atingir os nossos objetivos com a ajuda de Lilian, fá-lo quanto antes. De outra forma, diz-nos onde fica e nós o faremos, Azazel e Baraqiel[1] há muito que querem que reveles o segredo… se calhar já estaria tudo resolvido.

— Não o conseguiríamos fazer pela força, irmãos. — Samael deixou cair os braços com desânimo. — Um grupo agressivo provocaria outra guerra; o Senhor invocaria Miguel e os seus guerreiros. Deixem-nos fazer isto de forma mais subtil, deverá ser o próprio Criador a terminar o projeto, para isso teremos de convencer Adam e Rrava a fazer o contrário do que o Criador pretende.

Os dois Vigilantes abraçaram o irmão, encorajando-o. Lilian, que se mantivera em silêncio, a brincar com o filho, olhou conspicuamente para o seu protetor.

O anjo devolveu-lhe o olhar pensativamente antes de concluir: — Temos de começar a trabalhar.

Nos dias que se seguiram, Armaros dedicou-se a tentar ensinar Lilian a controlar a faculdade do teletransporte. As palavras que a deveriam projetar funcionavam sempre de forma caótica e atiravam-na para os locais mais inesperados. O que para os anjos ocorria com natural suavidade, para ela era como uma explosão. Temiam que, o libertar desenfreado de tanta energia angelical no jardim, alertasse os querubins guardiões, ou mesmo o próprio Criador, que devia estar mais vigilante.

Fora assim, de resto, que ela caíra na terra de Nod, quando fugira do jardim, sem que Samael soubesse para onde havia ido. O pobre sistema vocal dos humanos não conseguia reproduzir algumas subtilezas do idioma divino. As palavras, que soavam como música quando proferidas por um anjo, saíam-lhe pouco melodiosas e grosseiras, trazendo resultados diferentes do que se esperava.

Asmodai ria divertido com o desespero dos anjos e batia as palmas quando eles regressavam trazendo a sua mãe de mais um “jogo de escondidas”.

Cansados de “perseguir” a jovem pelos mais diversos locais para onde ela se projetava, optaram por tentar a invisibilidade, o que se revelou uma completa impossibilidade. A mulher não conseguiu de forma nenhuma articular o feitiço e nada acontecia, aquelas palavras estavam vedadas aos humanos.

A solução teria de estar na metamorfose; se ela se transformasse num qualquer animal, passaria facilmente desapercebida e conseguiria entrar no jardim.

Foram vários os animais que tentaram, mas também aqui os resultados não eram nada animadores; uns incompletos e outros nem por isso. Uma vez mais, a incapacidade linguística era determinante nos péssimos resultados que obtinham.

Também aqui a criança se divertia, assustando-se poucas vezes, por mais espantoso dragão com cabeça humana ou terrível tigre com pernas humanas que se formasse ante os seus olhos.

Foi com a serpente que conseguiram o resultado melhor. Lilian transmutou-se numa enorme serpente castanho-dourada, decorada com manchas vermelhas, onde sobressaíam os seus olhos verdes. Não fossem as inesperadas barbatanas laterais em forma de mãos, poderia enganar qualquer um. Ocasionalmente a transformação tremeluzia, como se fosse regredir a qualquer momento, mas teriam de arriscar, não podiam perder mais tempo, urgia partir para a ação.



[1] Mais dois anjos que faziam parte do grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes” (Grigori em grego)

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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quinta parte - Na Terra de Nod

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Devastada com a eventualidade de perder o seu filho, Lilian acarinhava-o e abraçava-o com força, como se temesse que este se escapulisse entre os seus braços.

Samael estava quase em permanência com ela, preocupado, sem saber o que fazer, que não fosse um desafio direto à autoridade do Criador. Também os seus dois companheiros, Samyaza e Armaros[1] visitavam-nos frequentemente, o primeiro era experiente no seu envolvimento com humanas, mas nunca se preocupara em saber que fora feito delas, o segundo, por seu turno, era hábil nas palavras mágicas e nas defesas contra os feitiços. Os três teceram uma proteção mágica sobre a mulher e a criança e, para que melhor se defendessem, Samyaza imbuiu-os de alguma da sua essência angelical tornando-os algo mais que humanos.

Aquela era a altura, segundo eles, para dar o nome à criança. Quando Samael se preparava para ditar a palavra com que selaria o filho até ao fim dos seus dias, Lilian sussurrou “Asmodai”. Os três anjos olharam-na com espanto.

A mulher, com o seu olhar ausente, repetiu, agora com voz mais decidida; — Asmodai[2], que quer dizer Espírito da Fúria, pois esta criança, filha do amor, será sempre revoltada e furiosa contra Aquele que a amaldiçoou.

— Pois que seja Asmodai. — Sentenciou Armaros, erguendo a mão direita num gesto de abençoar e crescendo enormemente para assumir a sua forma de anjo. Converteu-se numa criatura de mais de três metros de altura, a pele reluzente como ouro e com enormes asas da mesma cor. — Feitiços e dentes de bruxa não fenderão a carapaça que aqui te ponho, veneno de cobra não vingará no teu sangue, nem peçonha na tua pele, a pedra resvalará, a espada não penetrará e o pau partir-se-á.

— Serás grande entre os Homens. — Samyaza seguiu os passos do companheiro e tornou-se num gigantesco fenómeno de pele como cobre em brasa e os seus olhos soltavam chispas. — Eles seguir-te-ão até à morte e as tuas palavras serão para eles como a água no deserto.

Não ficando atrás dos seus amigos, Samael tornou-se num gigante, cor de prata, emitindo uma luz resplandecente que iluminou toda a gruta, encandeando-os a todos: — Asmodai, comandarás os Homens em batalha e vencerás mil guerras, serás chefe de milhares e não conhecerás a derrota.

Agradecida e atemorizada pelo impressionante aspeto dos seus protetores, Lilian ajoelhou frente a eles, sem largar a criança que chorava e esperneava.

— Tu, Lilian, — Armaros estendeu a descomunal mão sobre a mulher. — Enganarás a morte muitas vezes e os teus dias não terão fim, serás amada por milhares e odiada na Terra por outros tantos. O encanto que o Criador te deu, eu dobro e ponho mais, nenhum homem te conseguirá resistir. Mesmo nunca sendo rainha, os reis ajoelharão a teus pés e farão o que mandares.

— Assim seja, ámen! — Trovejaram os três poderosos seres.

Depois dos últimos ecos do encantamento retumbarem na gruta, fez-se um silêncio pesado enquanto as paredes pareciam reluzir, recobertas de palavras escritas na língua que apenas os seres divinos conhecem.

A gargalhada cristalina de uma criança quebrou o silêncio que se impunha, como se de um espelho se tratasse. O som foi contagiante e todos sorriram felizes para o bebé Asmodai que agitava as mãos e os pés com satisfação.

Para Lilian, aquela era uma criança que nascera de uma gravidez normal, mas ela não tinha experiência suficiente. Se a tivesse, saberia que as crianças humanas levavam nove e não quatro meses a formar-se no ventre da mãe… e que o seu bebé de doze semanas apresentava já o desenvolvimento de doze meses.

Nos tempos que Lilian ficava sozinha, alargava os seus horizontes, afastando-se cada vez mais da gruta que habitava. Eventualmente acabou por travar conhecimento com as pessoas da aldeia próxima, que se mostravam amigáveis, embora curiosos com as suas origens, que preferia não revelar. Asmodai crescia e aparentava já dois anos.

Jahi, uma das mulheres da aldeia, perdera um filho recentemente e visitava-os com frequência para estar próxima da criança. Era uma bela jovem, magra, de longos cabelos e olhos negros sobre um rosto oval de lábios carnudos. Apesar de se afirmar uma pobre aldeã, as suas mãos denunciavam a ausência de trabalhos duros.

As duas mulheres passavam longos períodos a conversar sobre os males que afligiam a população; como a longa seca prejudicara as colheitas e como os deuses não haviam abençoado os rebanhos, onde nasceram menos crias que nos anos anteriores. Por vezes, a aldeã tentava abordar o tema de onde vieram e como se mantinham isolados na gruta, onde não parecia faltar nada, mas Lilian sempre desviava a conversa.

Um dia, ela sentiu-se particularmente desconfortável quando Jahi lhe falou de Belial. Era o poderoso deus protetor da aldeia; fazia com que as colheitas fossem abundantes, os rebanhos férteis e os rios generosos. Graças ao deus, antigamente havia peixe, carne e cereais, agora, porém, parecia ter-se esquecido do seu povo e as pessoas passavam fome. Os crentes já haviam sacrificado vários animais e até crianças, aqui Lilian deitou-lhe um olhar desconfiado, mas nada resultara e agora procuravam uma razão para a ira do deus. Jahi mostrou-se um pouco nervosa quando confessou que havia quem dissesse que a recém-chegada, com a criança, eram os culpados. “Claro que eu não penso nada disso” desculpou-se “e sempre vos defendi…”

Num rasgo de oportunidade, Samael entrou na gruta. Apresentava-se, como sempre, como um humano comum, mas o seu rosto ficou sombrio ao deparar com Jahi. Também esta se mostrou perturbada e agitada com o recém-chegado, ficando aparentemente sem saber o que fazer. Embora não soubesse de quem se tratava, sentiu emanar dele um poder e uma autoridade que pareciam esmagá-la, pelo que se ajoelhou humildemente gemendo: — Sejas bem-vindo, meu senhor, perdoa a minha intromissão.

O anjo olhou interrogativamente para Lilian antes de tornar, preocupado, para a estranha mulher. — Que fazes aqui, criatura? — Trovejou com autoridade. — Quem és tu?

— Meu senhor, — ela continuou sem se atrever a levantar os olhos —, apenas mato algum tempo com a minha amiga, desculpai-me o atrevimento. Sou apenas uma pobre camponesa, viúva que perdeu o único filho.

— Não és tal! — Acusou Samael parecendo crescer. — Que queres daqui? Vejo o negrume que te guia e que se alarga para envolver tudo e todos. — Em seguida olhou para o teto da gruta e abriu os braços. Numa voz gutural, invocou algumas palavras incompreensíveis da qual apenas se distinguiu o nome Armaros.

Quase no mesmo instante o outro anjo materializou-se a seu lado. Também ele fixou imediatamente os olhos em Jahi: — Criatura! — A poderosa voz angelical fez tremer o chão e as paredes. — Que fazes aqui? És um esbirro de Belial[3], não és? Que te manda o teu negro senhor fazer?

— Mil perdões, perdoai esta pobre mortal! — Ela estava visivelmente aflita e chorava apavorada. — Não sabia estarem sob a vossa proteção, poderosos senhores. Apenas tentava arranjar mais um sacrifício para o meu amo!

— Se tornas a aproximar-te deles, far-te-ei em pedaços, antes de te atirar para os fogos eternos! — Avisou Samael.

— Volta para a escuridão onde pertences, demónio[4]! — Exorcizou Armaros.

— Piedade, nobres senhores, misericordiosos senhores… — a mulher, quase rastejando, aproximava-se gradualmente da saída, sempre com a cabeça baixa temendo ser fulminada se enfrentasse o olhar dos formidáveis seres. Assim que viu o caminho desimpedido, lançou-se numa corrida pela própria vida.



[1] Estes dois anjos faziam parte de um grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes”(Grigori em Grego)

[2] Asmodai ou Asmodeus tem origem no persa antigo e significa algo como demônio da ira ou espírito da fúria, derivado da figura zoroastriana de Aeshma.

[3] Um dos anjos expulsos do Céu após a revolta de Lúcífer, acontecida durante a criação da vida na Terra.

[4] Jahi é o nome na língua avéstica da demônia da "lascívia" do Zoroastrismo. Como uma entidade hipostática, Jahi é interpretada de várias maneiras como "vadia", " libertina ", "cortesã" e "aquela que leva uma vida licenciosa". Seu epíteto padrão é "a prostituta". In Wikipedia

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sábado, 12 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quarta parte - O Plano B

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;

E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.

E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada.

 

Versículos 21, 22 e 23 do livro do Génesis

 

O fracasso dos três emissários em fazer regressar Lilian era embaraçador e só deixara o Criador ainda mais frustrado: não era possível que aquela mortal tivesse a audácia de desobedecer. O facto de a terem amaldiçoado, em nada contribuía para o Seu objetivo e era apenas uma vingança mesquinha, por despeito.

O livre arbítrio era uma coisa complicada, nem os anjos tinham tanta liberdade; podiam tomar decisões independentes e enveredar por este ou aquele caminho, mas apenas na ausência de uma ordem direta. Como poderia lidar com uma criatura que mentia e omitia sem qualquer pejo e recusava-se a cumprir o que lhe ordenavam?

Chegava à conclusão que fora um erro ter criado Adam e Lilian da mesma forma. Inexplicavelmente, embora partilhassem ambos dos mesmos elementos, da mesma inteligência, curiosidade e vontade de aprender, o homem mostrou-se mais submisso e obediente do que a mulher. É verdade que ele tentou sobrepor-se a ela desde o primeiro dia e desde essa altura ela mostrou-se insubmissa exigindo igualdade ao companheiro.

Estava decidido. Teria de arranjar nova mulher para Adam, uma mais ligada a ele, dependente e que não o desafiasse.

Quando o homem dormia, o Criador extraiu uma das suas costelas que misturou no caldo de terra, fogo, ar e água com que formou a nova mulher. Uma vez mais era uma criatura belíssima, mas desta feita com cabelo escuro e olhos castanhos. Segredou ao ouvido da concha vazia as palavras que lhe davam a vida e ela estremeceu, animou-se e sorriu ao Pai.

Chamou-lhe Rrava[1], que quer dizer vida, seria aquela que daria a vida à humanidade, a partir de Adam, que quer dizer terra[2]. Era aquela a segunda mulher do paraíso e desejou que o seu nome fosse menos enganador ou suscetível a deceções como sucedera com Lilian, que significa pura, inocente[3]. Agora queria esquecê-la e começar de novo.

Na mente do Criador, digladiavam-se agora várias fugas no segredo da existência do seu projeto; o escândalo à volta da fuga de Lilian, o facto de ela poder revelar coisas como a localização, o desconhecimento de quem fora o insidioso velhaco causador da sua fuga. Precisava de mais segurança e isso implicava envolver mais elementos; dois querubins, empunhando as suas espadas flamejantes, foram invocados para a segurança do jardim.

A paz voltou então ao paraíso. Rrava, que proveio de Adam, partilhava da sua simplicidade, sendo a sua curiosidade mais pura e menos insaciável. Ambos se quedavam fascinados a escutar o canto cristalino do rio nas pedras, o sussurrar do vento nos ramos das árvores, ou mesmo a conversar com os outros animais, que Lilian achava tão limitados.

O Criador voltara aos Seus ensinamentos, falando-lhes da Sua Criação, de como tudo se interligava, preparando-os para o dia os tiraria da segurança do jardim e esvaziaria a Terra de todas as aberrações que a conspurcavam.

Ele não interferia, mas olhava com preocupação para o que acontecia para lá dos muros invisíveis do Jardim do Éden. Os humanos selvagens, para além das suas limitações em termos de força e tamanho, conseguiam sobrepor-se a outros seres mais possantes. Derrotavam centauros, gigantes e ogres, ainda que com grandes perdas. Os outros deuses pareciam desinteressados em proteger as suas criações, ou haviam resolvido deixar os selvagens à sua vontade, na luta pela sobrevivência. A sua tenacidade e inteligência acabavam por compensar a falta de força da espécie humana. Alguns pequenos agrupamentos de casas de adobe tonavam-se aldeias à medida que mais casas iam sendo construídas para albergar a população que crescia.

Nunca fora intenção do Criador que os humanos dominassem o fogo, ou utilizassem os ossos dos animais que matavam para fazerem armas e as suas peles para vestuário, mas reconhecia que, se assim não fosse, não teriam nenhuma hipótese contra as outras espécies criadas para os exterminar. O equilíbrio natural era quase perfeito e, nesse aspeto concordava com as vozes contra a criação dos humanos, eles eram uma rotura nesse equilíbrio. O animal-inteligente, ao contrário do animal-força-bruta,, estaria predestinado ao sucesso. Nada de répteis gigantescos, desajeitados e brutos como aqueles que povoavam a Terra na primeira fase… ainda bem que acabara com praticamente todos, ou quase, os que restaram desapareceriam com o tempo. Chegara à conclusão que detestava cobras e lagartos.

O ser humano era o mais próximo que podia existir da face mais frágil dos anjos, que Ele amava profundamente. Como estes últimos eram imortais e tinham em si um demónio furioso, removeu na sua criação a capacidade de se transformar, ficar invisível ou incorpóreo, deu-lhes, contudo, a capacidade de questionar e tomar decisões de moto próprio. O ser humano não se sentiria compelido a seguir as ordens do Criador, se tal não pretendesse, mas também o seu tempo de vida seria finito, se algum deles Lhe desagradasse, bastaria ignorá-lo até que chegasse ao fim dos seus dias… embora por vezes a Sua Infinita Paciência se esgotasse e mandasse Samael acabar com ele, ou eles. Sabia que o arcanjo nem sempre cumpria a totalidade das missões e a sua compaixão acabava por deixar vivos alguns elementos dispersos das tribos que fora incumbido de eliminar até à última alma, mas não se importava, também Ele sofria por mandar castigar os Seus filhos.

Lilian estava agora também a testar a Divina Paciência e a desafiar as Suas ordens. Ignorá-la, seria fácil e apenas teria de esperar algumas centenas de anos até que ela envelhecesse e morresse, para Ele seria o mesmo que uns minutos na escala temporal divina. A simples existência dela, porém, incomodava-o e prejudicava a sua atenção ao projeto. Quem sabe se não mandaria Samael visitá-la para eliminar o problema.

Também não pretendia, assim que os dois humanos do Seu jardim estivessem prontos, deixar vivos os outros, cheios de vícios e maldade no coração cultivados nas constantes lutas pela sobrevivência. O Seu jardim produziria aqueles que iriam povoar o mundo; humanos e outros animais a coexistirem livremente. A Terra teria de ser um lugar de paz e concórdia, para isso, sofreria uma purga quase total. O próximo evento de extermínio seria para apagar da face do planeta todos os seres com algum nível de inteligência, que não estivessem sob o seu controlo e não fossem da Sua Própria Criação.



[1] Eva em hebraico é Chava, que deriva da palavra "vida". CH em hebraico tem o som de RR, logo Chava = Rrava.

[2] Adão em hebraico é adam. Assim ele se chama, pois a Torá nos conta que Deus tirou-o da terra, que significa adamá em hebraico. Com esse mesmo radical temos a cor vermelha, adom que pressupõe que a terra era vermelha como o barro. Todos somos descendentes de Adão, por isso ser humano é ben adam, que literalmente significa filho de Adão.

https://www.hebraicosimples.com/post/nomes-b%C3%ADblicos-significado-em-hebraico

[3] Como este texto trata-se de uma adaptação livre do Génesis, assumi que Lilith, a existir, não se chamaria assim, terá tido um nome hebraico, daí ter escolhido Lilian (porque não?). Só terá começado a ser chamada de Lilith mais tarde, associando-a ao demónio feminino Liliu da Mesopotâmia.

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domingo, 29 de setembro de 2024

Apresentação do livro "Almas Rebeldes" de Suzete Fraga

 



Boa tarde a todos,

 

Obrigado pela paciência que demonstram ao dispensar uns minutos, para escutar um maçador como eu, em vez de estarem a ler as “Almas Rebeldes” da Suzete Fraga.

Sabem como é costume dizer; “Não se deve julgar um livro pela capa?” Bem, no caso do livro da Suzete, é difícil não ser atraído pela bela e ilustrativa pintura da minha grande amiga Lucinda Maria, mas as páginas que ele contém são ainda mais encantadoras!

 É por isso com enorme prazer que estou aqui hoje, quase oito anos depois da apresentação de “Almas Feridas”, neste mesmo local, para falar sobre a Suzete Fraga e a sua mais recente obra, “Almas Rebeldes”. Todos nós que escrevemos e temos o privilégio de poder apresentar a nossa obra ao público, sabemos como é especial este dia para ela e para todos os que a conhecem e apreciam o seu talento.

 A escrita da Suzete é sempre cativante. Consegue descrever acontecimentos comuns do nosso quotidiano sob um ponto de vista que nos escapa, ou desprezamos, na maior parte das vezes. As emoções subjacentes nas palavras empregues e as imagens vívidas em cada frase, emocionam e desafiam, enquanto divertem com o humor que a caracteriza.

Quem é que consegue não se identificar com o personagem de “Iogurte com Açúcar”, que desliga o despertador pela manhã em vez de carregar no botão para pausar dez minutos e acontece o impensável:

“Confiante nos tais dez minutos, apressas-te a dormir num instante.

Executas tão bem a ideia, que adormeces a valer e até sonhas que estás a caminho do trabalho. Já estás no trabalho, mas o teu cérebro ainda está a tentar lembrar-se das tarefas do dia anterior e que tinham de ter seguimento agora. Tragédia das tragédias, sem café a máquina não funciona.

Nesse apelo à sobrevivência, sentes a baba a escorrer e ouves-te roncar com um entusiasmo estranhíssimo. Porque tu não roncas, os outros é que roncam forte e feio, parecem motas velhas a trabalhar no ralenti. O coração dispara na garganta, acelerado e, ao contrário do que é costume, avisa-te que o cérebro está errado. Há uma hora que te está a enganar, pois claro.”

 

Ou como não sentir pena em “A Impressora” da forma, ainda que levemente humorística, é apresentado o Natal de um solitário:

 “… talvez acabasse a tempo de passar pelo Mercado de Natal, deliciar-se com um churro de chocolate acabadinho de sair e regressar a casa para a massagem habitual ao comando da televisão. Pode parecer que não, mas estava em pulgas para ver pela milésima vez o “Sozinho em casa”. Iria comer camarão como se fosse dono da lota e misturar uma série de bebidas até perder a consciência. Quando acordasse, o Natal já teria terminado, já não haveria mais mensagens da treta para responder, o coma alcoólico seria geral e o sossego reinaria em todo o prédio.”

O livro “Almas Rebeldes” não é apenas mais um na carreira da Suzete Fraga, mas um degrau ascendente como escritora. Nele, encontramos personagens verdadeiros, ou no mínimo verosímeis, tramas envolventes e temas que ressoam profundamente com os dilemas da vida de gente comum, como nós.

A Suzete tece as suas histórias, com uma delicadeza única, mas, ao mesmo tempo, com uma força capaz de nos transformar, transporta-nos para outras realidades e faz-nos ver o mundo de diferentes ângulos. Mas, acima de tudo, faz-nos sentir o que é ser humano, com todas as suas complexidades, alegrias e dores.

 A sinopse desta obra, na contracapa do livro, é bem expressiva do que nos espera:

Quem nunca levou um tabefe e ousou dizer que não doeu, não sabe o que é correr pela vida, nem o gozo que daí advinha. No entanto, a vida é isto mesmo: dançar no fio da navalha e, mesmo desfeito, troçar das pancadas e ganhar asas nos pés.

Não podemos evitar as vicissitudes da vida, mas podemos encará-las com rebeldia e humor. É esse o segredo para equilibrar a balança que, por vezes, pende teimosamente para o lado cinzento. Cabe a cada um de nós contrariar o peso, rindo até da nossa pouca sorte, se for o caso. Quando se procura a conjuntura perfeita para sorrir, corre-se o risco de morrer sem estrear o sorriso. E essa seria a maior das derrotas.”

Parabéns, Suzete, que com muito orgulho chamo “irmã das letras”, pelo belo trabalho que aqui apresentas. O teu talento, aliado à sensibilidade e capacidade de observação e descrição continua a iluminar aqueles que gostam de ler, e estamos todos muito ansiosos pelo que ainda está por vir.

E para finalizar, se “Almas Rebeldes” tivesse apenas um defeito, seria o facto de acabar. Porque, honestamente, eu poderia ler as histórias da Suzete Fraga para sempre.





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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Maldição de Calígula

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Caio Júlio César Augusto Germânico, ou Caio César, ficaria conhecido na história como Calígula, que significa "botinhas", como lhe chamavam os legionários comandados por seu pai, quando criança e usava as cáligas (sandálias militares) nos pés.

Estava-se em 32 D.C. e Calígula, ou Caio César, como era chamado, encontrava-se com o seu tio-avô, o imperador Tibério, voluntariamente exilado na ilha de Capri.

Nos últimos anos, após a morte do filho, Druso, O Jovem, Tibério mudara-se para a ilha de Capri e desinteressara-se completamente da política, entregando-se a atos de sadomasoquismo, pedofilia e outras perversões sexuais. A governação do império ficou praticamente entregue a Lúcio Élio Sejano, que governou aumentando o seu pecúlio e o dos seus próximos, enquanto foi fazendo desaparecer a maioria dos opositores.

Apesar de ser o herdeiro de Tibério, Calígula sabia estar completamente dependente dos caprichos do soberano; como a sua mãe e os seus irmãos, a qualquer momento poderia sofrer um trágico acidente que lhe tirasse a vida.

Foi neste ambiente que ele foi abordado por uma bela e escultural mulher, a rondar os trinta anos, de longos cabelos vermelhos e olhos verdes, que disse chamar-se Dinah e ser da Judeia. Ele reconheceu-a como uma das muitas meretrizes que frequentavam as orgias de Tibério.

Ela mostrou-lhe uma caixa de madeira trabalhada, aparentando ser muito antiga. Dentro, residiam duas soberbas estatuetas em madeira, esculpidas na perfeição; representavam um demónio masculino e outro feminino. Explicou-lhe que aquele objeto tem passado pelas mãos dos homens mais importantes de Roma e o seu poder pode fazer dele o próximo imperador.

Calígula, suspeitando que estava perante uma armadilha de Tibério, ou de alguém para o fazer cair em desgraça perante ele, disse-lhe que se fosse embora, ou mandaria chicoteá-la. A mulher respondeu-lhe que não temia as ameaças dele, pois o poder das divindades que adorava, era muito superior ao dele ou do governante mais poderoso dos Homens.

Ela explicou-lhe que pertencia a uma irmandade que fizera aquela caixa há muitas gerações, para adorar a Primeira Mulher, Lilith, ali representada com o seu filho e amante Asmodeus. As preces feitas às duas divindades são ouvidas e cumprem-se na maioria das vezes.

Como nunca ouvira falar daqueles deuses, tentou despedi-la novamente, mas a mulher insistiu; “Júlio Cesar recebeu-a e desprezou-a; foi assassinado pouco depois. O grande Augusto herdou-a e utilizou-a para se livrar de Brutus e de Marco António e Cleópatra.”




O futuro imperador olhou-a de alto a baixo e Dinah, percebendo que conseguira a sua atenção, continuou: “Até Tibério a utilizou para afastar os outros herdeiros de Augusto…, mas quer destruí-la e isso irá levá-lo à ruína. A minha missão é arranjar um novo dono, para que isso não aconteça.”

O silêncio de Calígula encorajou-a a prosseguir e ela explicou que aquele objeto era um Altar de Orações e podia pedir-se-lhe o que quiséssemos para vingar os agravos que nos houvessem feito. Para isso bastava escrever num papiro o nome de quem queremos atingir e guardá-lo na caixa. Em pouco tempo, a vida dessa pessoa começará a sofrer os efeitos.

 — Se era Tibério que estava de posse disto, por que está contigo agora? — Interrogou ele, com um olhar conhecedor.

— Fui eu quem lha entregou há alguns anos para o ajudar a tornar-se César. — Ela baixou os olhos. — Ele obteve o que queria, mas não cumpriu a sua promessa. Por fim, sabe que está a ser castigado e quer destruir o altar. Eu sabia onde estava. Fui buscá-lo. Serás o novo dono e o novo César.

— Que tenho de fazer? — Perguntou Calígula ao fim de alguma hesitação.

— Para já, aceitar o altar nas tuas mãos — Dinah pousou o objeto nas dele — e prometer que, uma vez César, tudo farás para aumentar o número dos fiéis do culto a Lilith. Darás privilégios e erguerás um santuário a ela. Se o não fizeres, o teu fim estará próximo.

— Aceito. — Confirmou ele gravemente.

— Agora, escreves num pergaminho o nome da pessoa que queres atingir e o que queres que aconteça. — Enquanto falava, ela retomou o altar e abriu-o sobre uma pequena mesa de apoio aos escribas, expondo as duas imagens. — Depois colocas dentro da caixa e fechas novamente, enquanto recitas: “Lilith, mãe de todos os homens, Primeira Mulher, que caminhas pelos caminhos da noite e pelos abismos desconhecidos desde os primeiros dias do mundo. Ofereço a minha vontade, em troca da tua força. Concede-me o que desejo, e serei teu servo fiel, até o último suspiro. Que a tua sabedoria escura ilumine o meu caminho e que a tua sombra envolva os meus inimigos. Pelo pacto que selamos, eu entrego o meu destino a ti. Que assim seja, nas profundezas e além.

O futuro imperador de Roma ajoelhou ao lado da mesa enquanto repetia a oração que Dinah ensinava. Assim que terminou, pegou num dos rolos de pergaminho que se encontravam na mesa e começou a escrever a maldição pretendida que atingisse o seu tio-avô. Escreveu o nome de Tibério em letras maiúsculas, de forma bem clara e terminou expondo a sua pretensão de ser imperador.

— Eu sou Dinah Lua de Prata, sacerdotisa da Estrela da Manhã e sou tua testemunha. — A mulher ergueu as mãos aos céus. — Escuta-me Lilith, mãe das bruxas, esposa de Samael, mãe e amante de Asmodeus, recebe este teu filho e faz aliança com ele. Amen!

Calígula ergueu-se e pegou cuidadosamente no altar com uma mão, mantendo a carta na outra: — Eu guardarei isto da minha mão. Apenas eu saberei onde se encontra.

— A forma como usares, ou tratares este altar, — avisou a sacerdotisa —, ditará o sucesso ou desastre dos teus planos… ou da tua vida.

Ele suspirou e deitou um último olhar à carta que ditaria o seu destino e o do carrasco da sua família, que ficaria encerrada naquela caixa, à vontade das forças do mal. Fechou as tampas decididamente, com o som do martelo do juiz após proferir a sentença.

O futuro imperador Calígula não sabia, mas, cometera um erro mortal. Assinara o seu nome no texto da maldição que seria executada por um demónio.



Suporte para esta publicação:
Imagens obtidas por IA https://designer.microsoft.com/


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