Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Acordou com o calor
imenso que sentia.
Estava completamente encharcado em
transpiração e os lençóis, amarrotados aos pés da cama, mais pareciam trapos
acabados de limpar a loiça.
-
Que
coisa incrível – gemeu António – Terceira noite sem dormir com este calor
infernal.
Desceu da cama, esgotado, e encaminhou-se
para a janela apenas vestido com os boxeurs verde tropa.
Ainda era noite e a pequena praça em frente à
decrépita pensão da vila estava completamente deserta. À luz da lua cheia,
papeis dispersos brincavam com o vento aos pulos na calçada.
Abriu a janela procurando um pouco de
frescura e recebeu em pleno rosto a aragem morna daquela noite alentejana de
Setembro.
-
Mais
uma noite. – Concluiu – Amanhã é Sexta e já irei embora deste calor dos
infernos.
Há perto de duas semanas que circulava de
terra em terra a instalar o novo sistema informático em cada uma das
localizações da sua empresa e estava a começar a ficar farto. Não era
definitivamente o tipo de trabalho que lhe agradava – Afinal, sou um técnico de
informática ou um caixeiro-viajante? – Costumava lamentar-se.
Esta vilazita representava o final de uma
etapa da sua ronda que cumpria já mais de dois mil quilómetros percorridos... –
Pff, venham cá dizer-me que o nosso país é pequeno.
Tornou a fechar o vidro e encaminhou-se para
o duche enquanto resmungava de si para si repetindo a ladainha da dona da
pensão:
- O ar condicionado dos alentejanos são as
portas e as janelas fechadas, se assim as mantiverem, o calor não entra no
verão nem sai no Inverno.
Sentiu-se um pouco mais fresco após o banho
e, após secar-se, envergou uma t-shirt amarela, uns jeans e uns pequenos
sapatos de lona.
Desceu preguiçosamente as escadas desertas da
estalagem adormecida.
Abandonou o edifício e caminhou na desolada
calçada envolvido na brisa que não refrescava.
- Este é o Suão. O vento do deserto. –
Concluiu para os seus botões. – Traz com ele os ares de África, onde repousam
as saudades, as expectativas e as almas dos grandes heróis portugueses… Eh, que
românticos que nós estamos hoje. – Resmungou enquanto vagueava pelas ruas, sem
destino.
Um gato miou do cimo de um telhado
lamentando-se, como ele, de estar sozinho num mundo esquecido. Um cão passou
atravessando a rua apressado para um qualquer dos afazeres que os cães têm
quando andam assim apressados.
- Parece impossível que consigam suportar o
calor que está dentro das habitações, não se vê vivalma. – Ia apreciando a
arquitetura das janelas e das frontarias das casas.
Havia edifícios para todos os gostos. Desde a
casa de aspeto vetusto com fachadas de cantaria bem lavrada, até à típica
alentejana com faixa de rodapé azul ou castanho a contrastar com o imaculado
branco. Todas elas guardadas pela sombra protetora do castelo imponente no alto
do morro.
No seu deambular chegou à porta do cemitério:
Uma enorme porta de ferro com mais de 3 metros de altura encimada por uma
inscrição em latim agradecendo a um qualquer nobre do século dezanove a
construção do local.
A imensa entrada apresentava sinais de
decrepitude; uma das laterais ligeiramente fora dos gonzos, vestígios de
ferrugem aqui e além…
Empurrou-a. Com um lamento que ecoou em toda
a rua, a vetusta porta obedeceu franqueando-lhe a passagem.
O calor abafado que se fazia sentir provocava
um estranho efeito de condensação por entre a floresta de mármore e calcário
que se adivinhava envolta num espesso caldo de algodão.
Não era o sítio mais alegre para se passear,
mas parecia provir dali uma frescura que contrariava as emanações das paredes e
das calçadas. Havia uma sensação de tempo suspenso naquele nevoeiro
despropositado que já sentira por diversas vezes nos cemitérios e nas igrejas.
Afastando a névoa, caminhou por entre as
lápides experimentando um prazer quase mórbido em ler os epitáfios que os que
ficam dedicam aos que foram…
“José Ferreira Telles”, N-13-06-831, F-
25-05-897, “Pai do Céu, velai por vosso filho, como ele velou pelos dele”
“Ermelinda da Mata”, N- 01-02-907, F-
17-01-938, “Cedo Levaste Senhor o amor razão da minha vida”
O típico “Eterna saudade da mulher e filhos”
e alguns bem originais: “Numa madrugada Deus contigo nos abençoou. Numa
fatídica noite um anjo consigo te levou.”
Ausente, embrenhou-se cada vez mais na cidade
dos que não acordam, focando com dificuldade os dizeres das lápides mal
iluminados por uma lua agora mais ténue.
Foi então que ouviu o fraco soluçar… Estacou
e olhou em volta. A tímida névoa parecia ter-se adensado e passado de bruma a
nevoeiro baixo e mais cerrado.
Os soluços continuavam, baixinho, quase como
um miar suave.
Seguiu o som e deparou com o Querubim de
calcário, com uma asa partida, de joelhos, na pose de quem chora.
Um arrepio percorreu-o de alto abaixo
enquanto o cabelo da nuca se eriçava de pavor.
De novo o soluçar. Estava alguém para além da
estátua que o assustara. Expirou lentamente apercebendo-se que tinha ficado sem
respirar.
Aproximou-se passo a passo da figura frágil
de negro debruçada numa laje. Sobre ela dominava, quase em tamanho natural, um
Serafim em toda a sua pujança, de armadura Romana empunhando a espada em chamas
ao longo da perna direita.
Parou junto da mulher, magra e pequena que
suspendeu o pranto sem contudo levantar o rosto. Pressentira-o mas aguardava o
seu movimento.
- Boa noite. – A voz saiu-lhe como um
grasnido em conjunto com uma baforada de vapor.
Ela levantou o rosto para ele.
O cabelo negro ondulante emoldurava um rosto
redondo decorado com duas estrelas por olhos, pequenos e vivos e um pequeno
botão de rosa fogo por boca. O nariz, pequeno e afilado, complementava a obra
de arte que Deus criara.
Pequenas manchas nas faces de mármore
marcavam o traçado das lágrimas como pequenas pérolas que escorriam para o
queixo pequeno e bem torneado.
O olhar que lhe devolveu tinha um misto de
indignação e curiosidade:
- Que quer? – Brusquidão numa voz sussurrada.
- Nada, peço que me perdoe – Desculpou-se –
Apenas pretendia saber se precisava de ajuda.
- E que pode fazer para me ajudar? –
Ergueu-se revelando perto de um metro e sessenta bem torneado e cheio de
atitude.
Um sorriso trocista e desafiador surgiu-lhe
nos lábios perante o silêncio dele.
- Eh? – Insistiu – Vamos, diga como me pode
ajudar.
- Para podermos ajudar uma pessoa temos de
saber o que a atormenta, ou pelo menos o que necessita. – Recuperou a voz e a
lucidez após um olhar demorado àquela pequena beleza morena que cruzava os
braços numa atitude de desafio.
Ela mirou-o de alto a baixo apreciando o
pouco à-vontade que lhe causava e que ele mal conseguia disfarçar:
- Não lhe pedi nada. – Sentenciou – Se quer
ouvir histórias, arranje quem lhas leia, se não tem que fazer, vá procurar
noutro lado.
- Assim farei.
Com o orgulho ferido, fez uma meia volta
dramaticamente marcial e começou a afastar-se atirando para trás um “– Tenha
uma boa noite.”
- Espere! – A voz dela ecoou, metálica.
Ele estacou mas não se voltou, aguardando.
- Espere, não vá. Peço que me desculpe. –
Agora era toda suavidade.
António voltou-se lentamente. Estava sentada
na campa onde estava debruçada há pouco, de perna cruzada, exibindo-a, bem
torneada, um pouco acima do joelho.
A respiração dele soltava uma pequena nuvem
de vapor a cada expiração… Como baixara a temperatura tão de repente.
- Estou muito nervosa – Recomeçou – Não sei o
que digo, além de que não o conheço de lado nenhum, é normal que suspeite das suas
intenções…
- Ok. Tentou ele. Vamos recomeçar. Peço que
me desculpe mas não pude evitar de a ouvir chorar e como um bom idiota
intrometido que sou, vim ver se necessitava de ajuda.
O seu sorriso foi como se a noite se tornasse
dia.
- Obrigada. Eu não sou muito boa a lidar com
pessoas, tenho pouco contacto e como tal pouco tato. Eu é que peço desculpas.
Sentiu-se a atmosfera a aliviar e embora o ar
tivesse arrefecido imenso, havia calor nas palavras dela.
- Chamo-me António. – Instigou ele dando um
passo na direção dela que se ergueu.
- Eu sou a Susana. – De novo o sorriso
quente.
- Mas claro, “A Susana”. - Brincou ele. - Não
uma Susana qualquer. Muito prazer. – A mão estendida amigavelmente ficou sem
retribuição durante uns segundos, antes que ela se convencesse a aperta-la.
Por fim uma mão pequena e gelada tocou a
dele. De leve e rapidamente.
- Que mão tão fria. Parece incrível como este
local é frio enquanto lá fora há tanto calor.
- Como queres encontrar calor entre aqueles
que o perderam há muito? – O rosto sério era de uma beleza clássica. – A morte
é fria e negra.
Também António assumiu um rosto sério. – Mas
veio procurar consolo junto dela.
- Não vim procurar consolo, estou para além
de qualquer consolo. Aqui vai havendo alguma paz, entre aqueles que conseguem
repousar.
- Com isto estou a esquecer a minha atitude
cavalheiresca e não a estou a ajudar em nada, apenas a conversar.
As palavras foram bem recebidas pois o belo
sorriso retornou. – Estar a conversar consigo já é uma boa ajuda. Há muito
tempo que não falo com ninguém… Que valha a pena.
- Por vezes as coisas parecem melhores depois
de falarmos sobre elas… Não parecem tão negras e muitas vezes acabamos por rir
da nossa atitude. – Tentou o jovem sentando-se na laje onde ela se sentara
anteriormente.
- Acredite que o meu… Chamemos-lhe problema,
não é para rir e… Algo definitivo.
Sentou-se ao lado dele.
- Mas trata-se de algo que um estranho possa
ajudar?
- Não. De todo.
- Assim, sem mais.
- Sem mais. E preferia não falar do assunto.
- Como queira.
Instalou-se um silêncio incómodo, de súbito
interrompido por Susana. - Não fique aborrecido. Não quero parecer malcriada,
mas incomoda-me falar do assunto.
- Podemos falar de outras coisas… Do tempo?
Ela devolveu-lhe um olhar crítico. Mesmo
assim a beleza dela era impressionante.
- Pronto, está bem. Vamos falar da sua terra!
É muito bonita, adoro estas casas… E o castelo? Qualquer coisa de
impressionante. – A expressão de admiração dele provocou uma gargalhada curta
mas que lhe soou como a mais bela melodia.
- Pare! Não seja assim, o castelo está em
cacos e esta vila é terrivelmente aborrecida. Além de que esta não é a minha
terra.
- Não?
- Não. Eu nasci e vivi longe daqui. Ao pé do
mar. Figueira da Foz.
- Maravilha. Eu sou de Aveiro.
- Como tenho saudades do mar…
Por momentos o seu rosto pensativo e
silencioso foi como uma pintura de um anjo de um qualquer mestre italiano.
- Também gosto muito do mar. Por vezes, mesmo
no Inverno, passo horas a caminhar ao longo do areal. - Ele aproveitou
O rosto ausente pareceu despertar, como se só
agora se apercebesse da sua presença, para logo se tornar absorto outra vez: -
Também eu caminhei muitas vezes junto ao mar mas agora… Desde que casei e vim
para aqui…
Ela estava a abrir-se e ele optou pelo
silêncio, escutando:
- No início estava tudo bem e nós gozávamos a
vida e vivíamos um para o outro. Mas um dia convenceu-me a virmos para cá
cuidar da mãe, sozinha e doente.
O rosto belo estava absorto como se revivesse
cada um daqueles momentos passados uma vez mais.
- Também aqui tudo pareceu correr bem durante
algum tempo até que a velha, lenta, mas firmemente começou a “envenená-lo”
contra mim. Fazia-lhe queixas, a maior parte das vezes infundadas ou
maldosamente interpretadas.
Uma lágrima teimosa correu ficando a
tremeluzir no queixo como uma pedra preciosa.
- Conseguia traduzir os erros que eu cometia
inocentemente em maquiavélicos atos destinados a humilha-la ou a fazer troça
dele, do filho dela, meu marido. Pouco a pouco a minha vida foi-se tornando num
inferno onde eu era incessantemente castigada sem culpa.
Ele pousou o braço sobre os ombros dela e
apertou-a sentindo o seu corpo gelado de encontro ao seu.
Susana ergueu-se soltando-se nervosamente do
abraço.
Ficou parada olhando-o nos olhos. Ele
manteve-se sentado, com a respiração pausada transformada em colunas de vapor…
- Desculpe-me. – O sorriso dela era uma
desculpa encantadora – Vou passar a noite a pedir desculpas.
Ele retribuiu o sorriso e ergueu-se também:
- Você é que tem que me desculpar. Não a
conheço de lado nenhum e já estava a abraça-la. No entanto acredite que se
tratava apenas de a acalmar um pouco. Não se tornará a repetir.
- Não, a sério. Eu deveria ter entendido e
não reagido desta maneira…
- Não falemos mais do assunto. Já nos
desculpamos um ao outro.
Um silêncio comprometido ocupou o exíguo
espaço entre ambos enquanto os olhares se cruzavam intensamente.
- Voltamos a sentar nesta pedra gélida? – Foi
a sugestão dele que ela aceitou sem responder.
Novamente ao lado um do outro, António sentia
o frio penetrante que vinha da laje e perguntava-se como conseguia ela aguentar
aquele frio e estar assim gelada.
- Eu não vou aguentar esta vida muito mais
tempo. – Susana concluiu ao fim de algum tempo de meditação. – Vou ter que
fazer alguma coisa antes que ela dê conta de mim.
- Já tentou falar com ele?
- Sim. Acabamos sempre a discutir. Ele acha
que eu só quero pô-lo contra ela e que quero realmente humilha-la… Por várias
vezes a discussão foi tão violenta que chegou a bater-me.
- Não é possível que ele tenha assim uma
confiança tão cega na mãe que não consiga perceber que as coisas não podem ser
todas como lhe são contadas. Nem ao menos o beneficio da dúvida?
- Não, nada! Obediência cega e confiança
absoluta.
Ele acariciou lentamente o rosto dela
enquanto limpava outra pérola que corria livremente pela face:
- Como há homens que não sabem aproveitar o
amor de um anjo do céu… – O sorriso triste dela era como se um raio de sol o
atingisse – Tivesse eu a sorte de ter o amor de uma mulher maravilhosa como
você.
- O destino não é justo. Também eu sinto como
deveria ser doce a vida ao seu lado, embalada no seu carinho…
De repente o rosto de Susana escureceu numa
onda de preocupação e sobressalto enquanto olhava atentamente para a parte mais
distante do cemitério.
- Que foi? – Preocupação nele.
- Já deram pela minha falta. Chamaram-me,
tenho de ir!
- Espera! – Segurou-lhe o braço – Voltas
ainda?
- Não. Não posso.
- Amanhã. A esta hora?
- Não sei. – Ela estava a ficar ansiosa. –
Não sei se posso. Tenho de ir, deixa-me.
Soltou-se com um gesto brusco e começou a
correr.
- Onde moras? – Ele gritou com as mãos em
concha.
A jovem parou e olhou-o indecisa.
Por fim ergueu um braço e indicou o vulto de
uma casa encostada ao muro do cemitério onde uma janela tinha a luz acesa.
- Amanhã? – Insistiu ele.
- Veremos! – Gritou ainda enquanto recomeçava
a correr.
António percorreu o caminho de volta à pensão
com uma alegria imensa enquanto o calor da noite se fazia sentir novamente a
cada passo que dava para longe daqueles muros que guardavam a morte.
Chegado à pensão, deitou-se sobre os lençóis
completamente vestido e adormeceu com um sorriso no rosto.
Na manhã seguinte, após umas poucas horas de
sono, estava fresco e renovado como não se sentia há muitos anos.
Passou uma boa hora a convencer o chefe que
precisava de mais um dia para concluir o trabalho após o que telefonou para a
pensão a confirmar que ficaria mais esta noite e Sábado.
O resto das horas pareceram uma eternidade.
Pela meia-noite já António trotava
alegremente para o mesmo local onde encontrara Susana na noite anterior.
Localizou rapidamente o anjo da asa partida,
sentou-se na mesma campa onde se sentaram anteriormente e ali esperou olhando
na direção onde ela desaparecera no dia anterior.
A noite estava completamente diferente. Desta
vez não havia nevoeiro nem frio e a lua dominava todo o céu sem nuvens.
A espera tornou-se longa e os minutos
tornaram-se em horas e as horas em tristeza.
Acabou por dormitar encostado à estela da
campa e a claridade da madrugada já ameaçava um dia abrasador quando tornou a
abrir os olhos.
Ergueu-se entorpecido e, sem disfarçar o seu
desalento, caminhou em passo arrastado de volta à pensão.
De novo se deitou completamente vestido mas
não havia alegria e caiu num sono pesado povoado de pesadelos que pouco ou nada
o descansou.
Quando acordou já era perto do meio-dia e,
após o banho matinal, desfazia a barba enquanto questionava o indivíduo com
olheiras profundas e rosto sério que o enfrentava ao espelho:
- Que faço? Vou procurar por ela? De certeza
que lhe arranjo problemas.
Só depois do almoço tomado no restaurante em
frente à pensão tomou uma decisão; Iria rondar a casa mas não sairia do carro e
esconder-se-ia se a visse, não fosse ela trair-se e meter-se em sarilhos ainda
maiores.
Assim enfrentou o calor da tarde de Sábado e
conduziu na direção daquela parte da vila que mal conhecia.
Após contornar o cemitério apercebeu-se da
Igreja que não conseguira divisar na noite anterior e, na tentativa de
localizar a casa de Susana, apercebeu-se não existir nenhuma casa encostada aos
muros, nem perto o suficiente para ser vista de dentro.
Estacionou o carro do outro lado da rua e
atravessou ainda confundido com a situação e parou junto do adro do pequeno
templo, pensativo.
Resolveu continuar a pé ao longo do muro sem
dar conta que estava a ser observado pelo velho padre que, curioso, acompanhava
todos os passos do jovem.
Ao dobrar a esquina encontrou as paredes
derrubadas de uma ou duas casas que em tempos existiram ali. Vestígios negros
anunciavam que o fogo poderá não ter sido estranho ao abandono e ruína destas
casas.
Ao voltar-se para contornar as ruínas quase
chocou com o pequeno e rotundo padre de ar simpático, cabelos brancos e batina
preta:
- Hei. – Exclamou surpreendido.
- Oh. – Também ele se assustou – Desculpe-me,
estava curioso com a sua curiosidade.
Uma gargalhada bem disposta sublinhou a
frase.
- Parece que saiu do nada. – Riu António –
Nem me tinha apercebido de si.
- Já estou a observa-lo desde que saiu do
carro. Eu sei que ser curioso é feio, mas estava com um ar tão enigmático e
pensativo que me deixou muito intrigado.
- Realmente estou aqui muito cismado. –
Concordou – Tanto que lhe vou fazer uma pergunta; Conhece uma jovem aí de uns
vinte e poucos, com mais ou menos um metro e sessenta, cabelo escuro e curto?
- Assim com essa descrição não há muitas por
aqui. A vila não é assim tão grande…
- Chama-se Susana.
- Com esse nome, não. – O padre foi
categórico.
- Não conhece nenhuma moça com esse nome?
- Não. Estou certo que não. Acho que não
conheço cá nenhuma Susana, só se for de alguma das aldeias vizinhas.
- Não. Ela disse-me que vivia aqui na vila
mas que era da Figueira da Foz.
O ar permanentemente risonho do padre
desapareceu do seu rosto.
- Susana? Da Figueira da Foz?
- Sim, foi o que ela disse.
- A única que eu conheci, sim correspondia a
essa descrição, morava aí na casa onde agora estão essas ruínas.
António devolveu o rosto sério ao sacerdote:
- Está a brincar comigo?
- Acha-me com cara de brincar com coisas
sérias?
- Ela morava aqui nesta casa?
- Sim morava aí até que a casa ardeu.
- E agora onde mora?
- Agora mora dentro destes muros. Morreu no
incêndio junto com a sogra e o marido. Deve estar a fazer um ano por estes
dias. – Rapidamente agarrou o braço do jovem quando ele oscilou com o choque –
Que se passa? Está a sentir-se bem?
- Sim, estou bem, obrigado. Foi só uma
tontura.
- Venha comigo, vamos até à Igreja que está
mais fresco e sair deste sol que nos abrasa a cabeça.
Caminharam lado a lado com o velho sacerdote
apoiando o braço de António.
Dentro do pequeno templo estava realmente
mais fresco e sentados em frente ao altar, ele contou todos os pormenores do
seu encontro na noite passada com a doce Susana e da forma abrupta como
terminou.
O abade confirmou que a pobre jovem muitas
vezes tinha chorado junto a ele com o sofrimento que passava nas mãos da sogra
e consequentemente do seu próprio marido.
- Uma noite de Setembro, – Os olhos do padre
vidrados no vazio pareciam reviver a tragédia – os gritos das pessoas
acordaram-me e, quando cheguei à rua, a imensa casa onde eles viviam era uma
gigantesca tocha, como se o próprio demónio atiçasse as brasa para manter um
lume forte.
Ficou imóvel e pensativo durante uns
segundos: - Quando os bombeiros chegaram já nada podiam fazer. Era impossível
tirar fosse quem fosse daquele inferno e limitaram-se a apagar o fogo. Só no
outro dia se resgataram três corpos completamente carbonizados dos escombros.
- É incrível.
- Diz-se que um dos cadáveres, o da sogra,
tinha uma faca espetada e achavam que o fogo fora provocado.
- Foi a Susana?
- Suspeita-se que sim. Mas os mortos não
falam.
- Normalmente não. – Alertou António.
- Sim, meu filho. – Concordou o padre. –
Normalmente não.
O jovem levantou-se bruscamente: - Quero ver
a campa.
Entraram pela mesma porta de ferro que ele
usara anteriormente e caminharam pelo meio das sepulturas, contornaram o anjo
com a asa partida e o sacerdote apontou a campa em frente com um enorme Serafim
de armadura Romana empunhando uma espada em chamas ao longo da perna direita.
Sobre a campa havia três placas de mármore e,
numa delas, o rosto inconfundível de Susana: Susana Moreira – N.13.05.1977 F.
28.09.2005
- Fez ontem um ano. - Concluiu o padre – A
ideia do Serafim foi da irmã. Disse que queria um anjo que representasse a
vingança do sofrimento que ela viveu.
- Foi aqui que estivemos anteontem…
Precisamente nesta campa.
- Há ainda muitas coisas na terra que não
sabemos explicar…
- Ela era maravilhosa, senhor padre.
- Vem, meu filho, vamo-nos daqui. Deixa
descansar os mortos. Deixa o reino deles em paz e dedica-te ao dos vivos que é
aquele onde pertences.
Seguiram até ao carro em passo arrastado com
António sustendo uma dor do tamanho do mundo sobre as suas costas.
Abriu a porta, sentou-se e lamentou:
- Porque tem que ser assim? Porque me
apareceu justamente a mim?
- Quem pode saber? Talvez a sua alma vagueie
por aí sem sossego porque tirou a sua própria vida e a de outros. Talvez porque
procure ainda o amor a que acha que tem direito… E conseguiu regressar
temporariamente no aniversário da sua morte.
- Não é justo! – Lamentou-se antes de
agradecer tristemente ao padre e fechar a porta.
O velho sacerdote ficou imóvel vendo o
veiculo afastar-se e sentindo a mágoa e dor que transportava dentro de si e que
se espalhava em volta como algo invisível mas sensível.
As últimas casas da vila ficavam já para trás
quando António, regressando a casa, ainda subjugado por uma dor intensa, tomou
uma decisão:
- Vou voltar Susana! Dentro de um ano estarei
aqui novamente. Hei-de voltar aqui todos os anos da minha vida até conseguir
encontrar-te uma vez mais.
FIM