segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Começar de novo

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




O veículo preto de alta cilindrada abandonou a autoestrada e abordou a via secundária, quase sem perder velocidade. Ao volante, Simão olhava, de minuto a minuto, para o relógio do tablier que lhe dizia que estava atrasado.
Os seus mais de quarenta anos não tinham feito muitos estragos no rosto pálido, apenas acinzentado na área da barba. Fios de prata espalhavam-se, aqui e ali, pelo cabelo curto castanho. Os inseparáveis óculos escuros emprestavam-lhe um ar distante, mas ao mesmo tempo concentrado na condução.
Conduzia veloz pela estrada estreita, ultrapassando os veículos mais lentos, sempre que possível. O vento que entrava pela janela aberta refrescava-lhe o rosto, fazendo-o sentir-se mais calmo.
Por fim chegou ao seu destino.
Percorreu, perdendo velocidade, a avenida que conduzia à praia, até parar ao lado do Mercedes cinza escuro que estava estacionado.
Abriu o vidro do passageiro e sorriu para a condutora - uma mulher aproximadamente da mesma idade, atraente, de cabelo castanho claro e rosto moreno - antes de, lentamente, retomar a marcha e estacionar mais à frente.
Caminhou, em passos largos, para junto da mulher que já o esperava ao pé da sua própria viatura.
-        Sara, minha querida, há tanto tempo! – Foi numa pose estudada que a envolveu num abraço pela cintura, enquanto lhe procurava os lábios para um beijo.
Como se já esperasse, ela rodou o rosto expondo a face ao beijo, mas deixou-se envolver.
-        Simão, estás na mesma, os anos não te pesaram… nem te alteraram as maneiras.
-        Ai não que não pesam! – Continuou abraçado a ela de rosto muito próximo. – Cada dia que passa é mais difícil ser eu. – Brincou divertido. – Tu sim, cada dia que passa estás mais bonita e esse ar de mulher madura cai-te como uma luva.
Sorrindo, Sara rodou, suavemente, para fora do abraço e segurou-o pelas mãos. Frente a frente, tentava ver-lhe os olhos através das lentes escuras:
-        A verdade é que também tinha saudades tuas, mas, não sei se foi boa ideia marcar encontro aqui no mesmo sítio onde nos encontrávamos há mais de dez anos atrás.
-        Não imaginas a minha alegria, quando vi a tua foto no Facebook. Não queria acreditar que eras tu. Tantos anos sem notícias… Porque não falaste?
-        Digamos que não nos separamos os melhores amigos deste mundo. – O rosto dela tornou-se sério. - Portaste-te muito mal comigo, a última coisa que queria era ver-te... ou ouvir-te.
-        E agora? Já me perdoaste? – Os lábios desapareceram numa linha horizontal fina. – Depois de tanto tempo?
-        Digamos que… aconteceu muita coisa, passou-se realmente muito tempo… digamos que não quero falar nisso.
Um abraço caloroso e um sorriso enorme foi a resposta dele.
-        Calma, calma! – Ela ria, enquanto se libertava do abraço. – Eu não disse “’Tá tudo bem e vamos começar onde terminamos”. Apenas disse que não valia a pena falar no assunto.
-        Não? – Ensaiou uma expressão que era um misto de incredulidade e desfaçatez. – Não custou muito a convencer-te deste encontro.
-        Já te disse que também tinha saudades tuas. Não vou dizer mais nada a esse teu ego insuportável. – Brincou, voltando-lhe as costas e caminhando na direção da esplanada mais próxima. – Vamos ficar aqui a provocar-nos um ao outro no meio da rua?
Dirigiram-se para a esplanada mais próxima, enquanto recordavam episódios engraçados passados naquele local.
O riso dela encheu o ar, trazendo-lhe à memória tantas recordações.
Há dez anos estavam noivos e ele estava completamente apaixonado.
O cabelo claro e curto, os olhos cor de amêndoa e as pequenas rugas que se formavam em volta deles quando ria, emprestavam um ar de miúda a planear, permanentemente, a próxima traquinice. A sua alegria e o seu riso contagiante atraíam-no, como a traça é atraída pela luz. A personalidade cinzenta e calma dele precisava desesperadamente daquele brilho e de toda aquela vida. Necessitava senti-la por perto, ouvi-la rir ainda que não fosse com ele, ouvi-la falar ainda que não para ele.
Mas eram para ele os risos e eram dele as carícias e os beijos que ela dava. Eram felizes e iam casar em breve.
Ele, divorciado há alguns anos, vivia sozinho num apartamento próximo do centro da cidade e ela, que se foi deixando encantar durante cinco anos, vivia com os pais numa casa nos arredores.
Não havia um interesse muito grande, da parte dele, no casamento, mas foi uma evolução mais ou menos provocada pela pressão dos pais dela e pelo passar dos anos. Sentindo-se já nos trinta, Sara achava que o tempo estava a passar demasiado depressa sem que nada acontecesse. Simão, por seu lado, estava comodamente a apreciar a sua segunda vida de solteiro com todas as coisas boas que isso pode trazer.
Por fim, acabaram por marcar a data do casamento e foi quando faltavam apenas dois meses  que o escândalo se deu; uma colega de trabalho de Simão deu-se a conhecer e revelou que mantinha encontros regulares com ele e, inclusivamente, já tinha passado várias noites no apartamento.
De nada adiantou ele pedir-lhe desculpa e dizer que já era história do passado e que só a ela, Sara, ele tinha pedido em casamento e que isso tinha que valer alguma coisa.
Sara foi irredutível, até porque sabia bem que o primeiro casamento dele também se tinha desfeito por um caso de infidelidade... com ela.
Simão não conseguia  viver uma simples relação a dois. Para ele, a vida não eram duas linhas retas paralelas, mas sim três, ou mais, entrelaçadas.
Claro que estas “psicologias” baratas não ocupavam o seu pensamento; ele não conseguia (nem tentava) justificar para si próprio o seu comportamento, até porque  não procurava os “problemas”, eles pareciam atravessar-se-lhe no caminho.
Agora, dez anos depois, esperava estar mais preparado para ter uma vida normal.
A conversa acabou por retornar ao assunto que os levou à separação:
-        Ainda não te perdoei o que fizeste. - Sara tornou-se séria.
-        No entanto estás aqui...
-        Sim. Também eu passei por um casamento que não deu certo e, desta vez, quem ia cometendo a traição era eu. Por isso, acho que compreendo um pouco toda a envolvência que pode levar a deixar entrar uma segunda pessoa na nossa intimidade.
-        Sério? - O sorriso tinha desaparecido dos seus lábios e ela sentia o olhar insistente, por trás das lentes escuras.
-        Não penses que aceito a ideia! - Retorquiu rapidamente. – Apenas compreendo os caminhos que podem levar a isso.
-        Nunca vou perceber esses teus ciúmes. Foi por eu ter optado  ficar contigo que acabei o casamento com a Luísa.
-        Não. -  Corrigiu ela. – Foi por andares comigo que o teu casamento  acabou. Quando já não foi possível esconder mais.
-        Essa é a tua maneira de ver as coisas. Eu poderia ter salvo o casamento, se não quisesse ficar contigo... bastava dizer que tu eras simplesmente uma distração e não a mulher da minha vida, como disse.
-        O que lhe disseste não sei... Sei o que me disseste quando sucedeu a Mariana e não me convenceste.
Enquanto o empregado trouxe os pedidos, fez-se um silêncio comprometedor que se prolongou após a sua saída.
-        Mas precisamos de voltar a bater na mesma tecla? - Perguntou, ele, tentando evitar o assunto.
-        Nunca vamos poder evitar  falar de uma pedra gigantesca a pesar na nossa relação. - Sara estava irredutível.
-        E que queres fazer a esse respeito?
-        Não consigo entender essa dualidade constante. Tens uma mulher e arranjas outra; e quando terminas com uma é só para encontrar uma outra... porquê? O que te impele a isso? Não estavas feliz comigo? Não vivíamos juntos, apenas porque não querias; querias manter o apartamento disponível para a outra... ou outras, sei lá!
-        Que te posso dizer? Felicidade?... Amor?... Eu amo-te, sempre te amei; ok, também amei a Luísa em seu devido tempo, casei com ela não foi? Já a Mariana era apenas alguém que, como eu, gostava de passar algum tempo bem passado .
-        É isso que tu achas? Achas que para ela era isso também?
-        Que sabes tu? - A voz dele perdeu intensidade. - Nunca a enganei. Ela sabia que estava noivo de ti e que íamos casar. Sabia que, entre mim e ela, nada mais havia, do que duas pessoas que se completavam na cama.
-        Não sentias nada por ela?
-        Sentir? Claro que sentia. Sentia muito carinho, quase se pode chamar amor, não era sexo gratuito. Com os homens não funciona como com as mulheres, que basta abrir as pernas e fechar os olhos.
-        Agora estás a ser grosseiro, propositadamente.
-        É verdade! Tenho de  amar uma mulher para poder fazer amor com ela.
-        Amar? Esse teu coração é demasiado grande! - Ela não conseguiu suster um sorriso.
-        O meu coração? - Ele tirou os óculos para  poder olhá-la nos olhos. – O meu coração é como uma catedral gótica; uma nave sombria e imensa com muitas capelas dedicadas cada uma a seu santo. Mas só um altar-mor dedicado ao verdadeiro amor, a ti.
-        Tu és mesmo impossível! - Soltou uma gargalhada divertida. - Como é que podemos reatar com essa tua atitude? –Perguntou, parando de rir e passando-lhe, carinhosamente, a mão pelo rosto.
-        Tentando. - Segurou-lhe a mão e beijou-lhe a palma durante uns segundos, mais que os necessários, antes dela a recolher rapidamente.
-        Não sei... Sinto que ainda me vais fazer sofrer muito...
-        A minha intenção nunca foi fazer-te sofrer... mas tens de  compreender que na vida não há finais do estilo: “E viveram felizes para sempre”. O gajo que inventou essa frase devia ser chicoteado por induzir as crianças na busca de algo que não existe.
-        Claro que eu sei.
-        A relações são como a vida; cheias de altos e baixos, interferências, inerências e ingerências. Múltiplos caminhos e outras tantas decisões. Mas, principalmente, sem o final feliz que tantas vezes se nos mete na cabeça.
-        Eh..,, o que para aí vai!... Tanta filosofia!
Ele pegou-lhe nas mãos e manteve-as entre as suas, enquanto continuava:
-        O amor é que é, ou não,  forte para sobreviver às adversidades e perdoar as faltas. Dizes que não me perdoaste, mas o teu amor é tão forte como o meu e já perdoaste a minha falta como eu já perdoei, desde o primeiro dia, tudo o que me disseste. - Concluiu beijando-lhe as mãos.
-        Sim, se calhar perdoei, mas não me esquecerei nunca.
-        Ok, com isso eu posso viver.
-         
O som do riso na voz dele era algo que ela adorava ouvir.  Fechou os olhos, por uns segundos, apreciando aqueles momentos e saboreando o calor do sol no rosto... quando sentiu os lábios dele sobre os seus.
Não resistiu e entregou-se ao beijo. Àquele beijo que a devorava, cheio de promessas e desejo, e de que ela tinha tantas saudades.
Deixaram o dinheiro em cima da mesa e caminharam, de mãos dadas, para o areal.
Apreciaram o sol e conversaram, durante algum tempo, sobre o tempo  em que estiveram afastados.  Já os últimos raios de sol tentavam, em vão, romper do mar quando voltaram ao tempo presente.
Estavam ambos felicíssimos e  Simão, tomando-lhe o rosto entre as mãos, convidou:
-        Sabes onde vamos jantar? Ao “Perna de Porco”. Lembras-te do velho João? De vez em quando, ainda me pergunta por ti. Vamos fazer-lhe uma surpresa e aparecer por lá.
-        Vamos! - Sara sorriu ao recordar o velho e carinhoso empregado do restaurante, que os tratava tão bem e ficava muito contente quando os via.
-        Vens no meu carro e, depois, vimos buscar o teu?
-        Não, não! Não quero deixar aqui o carro. Eu vou lá ter.
De mão dada, como duas crianças, correram para os veículos. Ao passar junto do seu, Simão brincou apontando a matrícula:
-        Vês?  Até a chapa do carro diz que estamos destinados; 01-SS-04, ou seja, “Primeiro Simão e Sara desde 2004” que foi o ano em que nos conhecemos.
Ambos deram uma gargalhada. De seguida Sara dirigiu-se para o seu veículo e Simão arrancou primeiro, em grande velocidade.
Tomou a estrada que conduzia ao centro da cidade e afastou-se, rapidamente, da praia.
No primeiro semáforo em que parou, pegou o telemóvel e começou a digitar um número. O sinal verde indicou que poderia prosseguir a marcha e, de telefone no ouvido, arrancou enquanto aguardava que o atendessem.
Sara, na sua viatura, atendeu a chamada com o sistema de alta-voz:
-        Sim? Algum problema?
-        Não, não há problema nenhum. - O sorriso de Simão era percetível na sua voz. – Eu é que não sei mais o que te dizer para te mostrar como estou feliz.
-        Não precisas de dizer nada. – Ela também sorriu, enquanto parava para dar espaço a um carro que estacionava, antes de continuar. - Eu também estou muito feliz.
-        Mas é que  quase me parece mentira... – Lutou com o telemóvel para o manter entre o ouvido e o ombro. –... depois de tanto tempo.
-        Vá, deita atenção ao que estás a fazer e já falamos. - Ela sorria enquanto desligava.
-        Mas espera, ouve... - o telemóvel escorregou, caiu sobre o assento do passageiro e ressaltou para o chão do automóvel. Ele baixou-se para o apanhar.
Sara sempre foi muito cautelosa a conduzir, respeitando a sinalização e as distâncias de segurança; por isso, conseguiu parar a tempo, evitando bater no veículo que seguia à sua frente quando este parou bruscamente.
Conseguia ver, para a frente dele, a fila de automóveis parados. Um engarrafamento, mesmo o que precisava.
Esperou, pacientemente, mais de vinte minutos e depois ligou a Simão.
O telemóvel chamava e ninguém atendia. “Ficou sem bateria, queres ver?” comentou para si.
Os vinte minutos transformaram-se em quarenta e depois numa hora. Simão não atendia. “Se ficou sem bateria vai ficar cansado de esperar... vai achar que desisti.” Estava a começar a ficar preocupada. “Até pode estar aqui nesta fila, também.”
Ia sair do automóvel para ver se o via, quando os veículos começaram a movimentar-se;  ela prendeu o cinto e retomou a marcha.
Cerca de um quilómetro à frente, ao chegar a um cruzamento, um polícia estava a encaminhar o trânsito pedindo celeridade. O chão estava cheio de vidros e, ao acabar de atravessar o cruzamento, viu o para-choques frontal de um veículo preto encostado na borda do passeio. A matrícula estava perfeitamente legível: 01-SS-04.
Parou imediatamente à frente e foi intercetada por uma mulher polícia quando saiu do carro:
-        Pare! Volte para a viatura, não pode parar aqui!
-        Não posso, foi o carro do meu namorado, onde está ele? - Ao mesmo tempo conseguiu ver, do outro lado da rua em cima do passeio, o veículo de Simão com a frente toda destruída. - Onde está ele? Onde está o Simão?
-        O condutor daquele automóvel foi transportado para o hospital.
-        Estava muito ferido? -  Faltava-lhe o ar e sentia-se como que às voltas num  carrossel.
-        Não sei, não vi. Quando cheguei, já estava dentro da ambulância. - A agente sentiu-se comovida com a expressão de angústia e os olhos rasos de lágrimas. – Agora, por favor, retire daqui a viatura.
Sem dar resposta e com  as pernas a tremer, sentou-se ao volante arrancando, rapidamente, para o espaço que a polícia lhe designou, na fila de trânsito.
Chegada ao hospital, correu para a receção da urgência e, muito nervosa e  hesitante, pediu informações. Após uns segundos, a funcionária informou:
-        O senhor Simão Andrade está neste momento a dar entrada no bloco operatório. É familiar?
-        Quê? - Tudo o  que ela lhe dizia chegava de muito longe e estava com muita dificuldade em perceber. - Não, não, sou uma amiga. Ele está muito mal?
-        Não lhe sei responder. Essa informação terá que ser dada pelo médico. Aguarde na sala de espera, por favor, senhora... - A rececionista procurava olhá-la nos olhos.
-        Sim, eu aguardo. Depois dizem-me  alguma coisa?
-        Eu ainda vou estar mais três horas de serviço; enquanto eu estiver aqui, vou perguntando e se houver novidades informo... senhora...? Não ouvi o seu nome. - A jovem insistiu.
-        Sara Ferreira. - Ela enfrentou, finalmente, o olhar curioso da rececionista. - Obrigada. Vou estar ali, naquele banco.
Durante cerca de uma hora, Sara assistiu ao entrar e sair de doentes e acompanhantes, espreitando, de quando em vez, a rececionista que parecia absorta no seu trabalho.
De repente, entrou esbaforida uma jovem de longos cabelos ruivos, que se dirigiu à rececionista com quem trocou algumas palavras agitadas. De seguida, ambas se voltaram na direção dela e a recém-chegada aproximou-se:
-        Boa tarde. - A voz era suave e cautelosa – É amiga do Simão? Estava com ele no carro?
-        Não. Realmente não estava. – Respondeu, após uns segundos de hesitação. - Vinha a passar e reconheci o carro acidentado. Depois disseram-me que o tinham trazido para aqui.
-        Ah!... Estou a ver. - A jovem parecia aliviada e estendeu a mão. – Desculpe, não me apresentei, sou Sofia, a noiva do Simão.
-        Noiva? Ah!... percebo. - Esperava que a sua desilusão não fosse muito óbvia. - Não sabia que ele estava noivo... mas também não o vejo há muito tempo... já agora, chamo-me Sara.
-        Na verdade, só estamos noivos há cerca de um mês, mas namoramos há dois anos.
Criou-se um silêncio comprometedor, enquanto Sara analisava a jovem sem saber muito bem o que lhe dizer.
-        Ali a minha irmã, - Continuou, indicando a rececionista com o queixo – avisou-me mal reconheceu o nome dele e depois disse-me que estava aqui uma amiga também...- Olhou-a nos olhos. – Simão sempre teve um gosto excelente para as amigas... todas muito bonitas.
Voltaram a ficar ambas em silêncio, cotovelos pousados sobre os joelhos, olhando o chão.
Por fim, a rececionista chegou ao pé delas:
-        Sofia, acabei de saber, ele saiu do bloco e está bem. Teve uma perfuração de pulmão, mas está tratado e livre de perigo. Já está no recobro. Queres ir vê-lo?
Ambas se ergueram de um salto e miraram-se, mutuamente, por uns segundos:
-        Vamos vê-lo? -  Convidou Sofia, com um sorriso tímido.
Sara continuou a fitá-la e não conseguiu deixar de corresponder ao sorriso:
-        Não... acho que não. Obrigada. Basta-me saber que está bem... e em boa companhia. Agora já posso ir embora.
-        Mas não quer mesmo vê-lo? Falar-lhe?
-        Não. Uma vez mais, obrigada.
-        Mas... quer que lhe diga alguma coisa? Que lhe diga que esteve cá a saber dele?
Sara fez um sorriso triste e respondeu:
-        Diga-lhe apenas que ele tem razão. Não há finais felizes.
Dito isto, voltou as costas às duas jovens e afastou-se num passo ritmado, decidido e firme.
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domingo, 1 de fevereiro de 2015

Rute - 5ª e última parte - Desenlace



No exterior chovia copiosamente. A água caía verticalmente sobre os mortais que corriam, em vão, em busca de abrigo no seu percurso para fazer aquelas coisas que acham importantes.
Ele não corria. Leu a morada borratada num papel encharcado e começou a caminhar, lentamente, depois de deitar fora o pano e colocar a arma no bolso da gabardina.
Ninguém atendia na morada que Aníbal lhe dera, mas o Lância Flavia branco estava no parque de estacionamento em frente. Não podiam estar longe.
A chuva parara há uns minutos atrás, mas os trovões ouviam-se cada vez mais perto e as nuvens acima avisavam que não estavam ainda satisfeitas.
Agora, doía-lhe a cabeça fortemente e a visão, através dos óculos cheios de pingas, parecia um túnel comprido e desfocado.
Encaminhou-se para o veículo decidido a esperar e sentou-se num dos pequenos e encharcados muretes de separação dos veículos. Todo ele era água a escorrer. Com as mãos apertou a cabeça tentando aliviar o sofrimento.
Ao fim de algum tempo, ergueu-se do assento incómodo. Doíam-lhe as pernas nas calças encharcadas e a água tinha conseguido penetrar através da gabardina, ensopando-lhe as costas.
Um relâmpago surgiu, seguido de imediato dum trovão e a chuva recomeçou a cair.
O seu coração batia cada vez mais forte com a pressão da expetativa e o nervosismo da situação… E a cabeça... oh, como lhe doía a cabeça! Latejava, fortemente, como se lhe batessem com um malho.
– Lá vêm eles. – Conseguia já divisar do outro lado da rua o casal que saía de uma esquina, escondido debaixo dum guarda-chuva rosa.
Tirou os óculos e tentou limpá-los com um lenço completamente encharcado que deixou cair… Maldita dor de cabeça!.
Baixou-se para apanhar o bocado de tecido e o mundo explodiu num ferro em brasa que lhe perfurou o crânio e revolteava o cérebro com requintes de sadismo. Um mar de vermelho inundou-lhe a visão como uma cortina que desce e apagou-se completamente…
A dor que o ferrava no rosto tornava-se cada vez mais insistente, obrigando-o a voltar à realidade.
Estava deitado sobre a face no asfalto duro, sujo e molhado. Toda a existência era um universo molhado e uma dor de cabeça do tamanho dele… Tudo estava confuso e ligeiramente turvo, oscilante, mas começando a acalmar. Mas a dor…
– O que é que me acertou? – Perguntava-se, enquanto lutava com o braço esquerdo para o retirar debaixo do corpo.
O membro não queria obedecer e parecia completamente adormecido… Uma onda de pânico começava a invadi-lo, estará partido? Mas não havia dor nele, apenas um formigueiro e uma ausência de sensações.
Sentou-se com esforço… A perna também… A esquerda não parecia funcionar… Pouco a pouco, a enormidade do conhecimento começou a avassalá-lo:
– Estou a ter um ataque? Por Deus, não agora!
Com a mão direita apalpou os óculos. Não se partiram. Em seguida o rosto. Não havia dúvidas, o canto da boca, do lado esquerdo, estava descaído e também quase sem sensação, mesmo por baixo do que parecia ser uma enorme área arranhada consequência da queda.
O seu coração batia desalmadamente e também a vista esquerda estava a falhar.
– Se não me acalmo, apago-me de vez. – Gemeu - Não agora, por favor meu Deus, não agora!.
Arrastou-se para perto do carro e encostou-lhe as costas, arfando, mas tentando recuperar uma respiração normal.
Começou a erguer-se, fazendo força contra o veículo. Afinal a perna esquerda não estava completamente inútil, mas o braço…
O casal estava cada vez mais próximo e a mulher fazia já um olhar de estranheza, na sua direção, ao espreitar por baixo do guarda-chuva.
Ele já estava quase completamente recomposto quando eles estacaram à sua frente:
– João? – Ela reconheceu-o com um misto de medo e dúvida na sua voz – Que fazes aqui? Que é que te aconteceu? Estás doente?
O seu acompanhante, alto, barba e cabelo comprido, envergando uma camisola castanha e grossa, de gosto duvidoso, olhava-o com curiosidade.
– Estarás mesmo preocupada comigo? – Grasnou com as palavras a saíram com dificuldade, pronunciadas por uma língua e uma boca agora preguiçosas.
– A tua cara… A tua boca… - Haveria a ilusão de lágrimas em seus olhos? – Que te aconteceu?
– Não te preocupaste até agora comigo. – novamente o grasnar –Que te interessa isso agora? Só te quero fazer uma pergunta que me atormenta há muito tempo: Porque é que te aproximaste de mim? Para que vieste estragar a minha vida? Foi só dinheiro? Trocaste simplesmente sexo por notas?
– Olha lá, ó tiozinho, - o homem interveio - não achas que te estás a esticar? Que estás para aí a dizer? Que a minha irmã anda na rua?
João, com as lágrimas disfarçadas pela chuva que caía copiosamente, nem ouviu a interrupção. O braço esquerdo completamente inútil, descido ao longo do corpo e a mão direita no bolso da gabardina transformavam-no numa marioneta torcida:
– Eu amei-te. Dei-te a minha vida, aquilo para que vivi. E tu pegaste no dinheiro, arruinaste a minha honra e foste ter com esta miserável desculpa para homem. Não me podias explicar o que se passava? Eu tentaria entender e talvez até aceitar…
Estas últimas palavras foram sacudidas por um forte empurrão que o atirou ao chão diante da apatia e olhar vazio dela.
– Já te disse para teres tento na língua, velhadas. – A ameaça acompanhava o indivíduo junto com o hálito a cerveja, enquanto o agarrava pelos colarinhos e o trazia de volta à vertical de encontro ao carro.
O estrondo surpreendeu-os a todos.
Ela deixou cair o guarda-chuva. João continuava estático subjugado pelo irmão dela que estava tombado sobre ele com os olhos arregalados de incredulidade.
Finalmente, começou a deslizar e caiu numa pose impossível, dobrando o corpo para trás de rosto para a chuva e olhar vítreo.
Um fio vermelho corria do peito e abandonava o corpo, misturando-se com a água na imensa poça que era o parque.
João  olhou para o buraco fumegante que havia agora na sua gabardina, na zona do bolso direito e empunhou a arma, observando-a de todos os ângulos como se nunca a tivesse visto. 
O grito de Rute ecoou, naquele fim de tarde, no parque deserto, enquanto se atirava ao chão para  abraçar o cadáver:
– Mataste-o imbecil! Mataste um homem que vale por vinte como tu. – O olhar dela soltava chispas enquanto apertava contra o peito o corpo sem vida. – Achas que foste alguma coisa para mim? Foste o mais completo anormal que tive em toda a minha vida, “comi-te” porque precisava do dinheiro e da capa que me proporcionavas para as minhas atividades. De outra forma nunca me aproximaria de ti, atrasado, mongoloide!
– Mas eu amava-te. – As palavras dele soaram mais como um pensamento do que como a sentença de morte que eram. Foram seguidas de dois estampidos da arma que agora estava inequivocamente empunhada na direção da mulher que se encontrava de joelhos.
Os longos cabelos encharcados, agora raiados de encarnado, espalharam-se aos pés dele.
– Oh maldita dor de cabeça!. – O revólver estrondeou no chão e ele afastou-se, arrastando a perna penosamente.
Do outro lado da rua, as janelas abriam-se acudindo ao som dos disparos, enquanto silhuetas nervosas gesticulavam e apontavam.
Sentou-se pesadamente no chão penalizado pelos membros sem ação, mas tentando manter a dignidade e as costas direitas.:
– Insinuante! Entrou na minha vida insinuando-se, fugiu dela insinuando-se… Agora sim, pode vir a polícia, as minhas contas estão saldadas e o crédito está igual ao débito.
Deitou-se no chão encharcado e enrolou-se em posição fetal, debaixo da chuva que continuava a cair copiosamente.
– Se ao menos esta dor de cabeça passasse…
De rosto pousado no chão, divisou ao longe os reflexos azuis emoldurados pelo som estridente das sirenes que acorriam para o local. A água respingava ao nível dos olhos, viu os curiosos que se aproximavam da cena, os veículos da polícia que chegavam, os prédios em volta… 
“Nada disto pode ser verdade”, pensou, “É tudo um enorme pesadelo e em breve tudo voltará ao normal”.
Fechou lentamente os olhos e o seu coração, esgotado e partido, parou de trabalhar.



FIM



Recuar
4ª parte - O fim do mistério
Para o início
Rute - Apresentação







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