sexta-feira, 29 de abril de 2022

Premonição

O vento assobiava e atirava as folhas mortas pelos ares. Manchas vermelhas e castanhas riscavam os céus de chumbo proclamando a morte do verão. Ecos de guerra troavam ao longe em fulgurantes clarões no horizonte enquanto uma voz angelical entoava um cântico triste, perdido na distância.

A pouca distância, o descomunal templo gótico de fachadas graníticas erguia-se estranhamente sobre alicerces de tijolos barrentos que ameaçavam desmoronar.

Desorientado, caminhei para a igreja e olhei os meus pés descalços com cortes e feridas de muito palmilhar. Calquei cada um dos degraus de pedra onde deixei ensanguentadas impressões, indicando o caminho a quem seguisse.

As imensas portas estavam abertas de par em par e eu cruzei a galilé para ver o ar entre as colunatas dominado pelas folhas e pelo pó esvoaçantes que maculavam o espaço sagrado. Dos vitrais, muitos metros acima, desciam focos de brilhantes poeiras que acabavam repousando em estranhas formas sobre o soalho gasto e arrombado.

Caminhei sobre as tábuas onde sabia terem caminhado milhares de fiéis antes de mim, onde marcharam garbosos cavaleiros e reis. As capelas laterais, quer do lado da Epístola, quer do lado do Evangelho, estavam vazias e nuas, como se os seus ocupantes se tivessem mudado para outras paragens menos agrestes ou estivessem simplesmente cansados da sua eterna vigília. A igreja vazia e só oprimia o meu coração e fazia-me sentir a solidão e a ausência da fé. Temia que, naquele dia de eclipse, se eclipsasse também tudo aquilo em que acreditava.

Chegado ao transepto, vi os púlpitos abandonados e decadentes, cobertos de trepadeiras que desciam descontroladas para o chão, esquecidos dos tempos em que se pregava a palavra do Senhor.

No presbitério a situação não era melhor. O espaço estava cheio de informes pedaços de pedra e alvenaria, produto da derrocada da orgulhosa cúpula que em tempos a cobrira. Via-se o céu de chumbo pelo enorme buraco do teto e o disco solar, que conseguia romper entre as nuvens, estava mordido na quase totalidade pela sombra da Terra, anunciando dias negros.

Também o altar estava vazio de imagens e decorações; apenas a imagem do Crucificado pendia da parede como uma ameaça sobre quem se atrevesse a aproximar. À esquerda havia um trono dourado vazio. A Férula estava encostada num dos braços e a Mitra com as Ínfulas abandonada no assento. Aguardavam o dono, ou estavam esquecidas, naqueles tempos sem Deus, com a igreja em ruínas, as guerras à porta e o próprio sol ferido de morte?

Apercebi-me só então que, acima das minhas canelas magoadas, tinha a bainha da batina rasgada e a sobrepeliz suja e esgaçada. Também a mozeta escarlate estava rasgada e desalinhada e o solidéu desaparecera da minha cabeça. Confuso, ajoelhei frente ao altar e rezei entre lágrimas, temendo que fosse aquele o fim dos tempos há tanto anunciado. No chão a meu lado jazia um bordão com uma tira de tecido branco amarrada onde estavam escritas as palavras: “Peregrinus requiescit”[1]. Rezei com ainda mais fervor, sabendo que aqueles tempos, aqueles nos quais o Trono estava vazio, eram os mais perigosos. As portas dos infernos podiam abrir-se sem que o Sucessor de Pedro cá estivesse para as encerrar com as chaves que o Pescador lhe confiara.

Pedi iluminação ao Senhor e implorei a Maria, mãe santíssima, que intercedesse por nós junto do Omnipotente.

Quando tornei a abrir os olhos, havia diante de mim um esbelto e reluzente anjo envergando uma túnica de um branco imaculado. Mostrava-me um livro de couro envelhecido, e uma tira de seda vermelha que marcava uma página onde se lia a seguinte frase:

“Depois do peregrino eslavo, virá o bávaro que sonhou a paz entre a guerra do mundo, mas o seu reino será curto.”

Uma fita de seda azul marcava outra página que folheei e li:

“Depois do bávaro, virá do novo mundo a humildade e o amor do povo.”

Maravilhado com tais profecias, tentei virar outra folha e o anjo segurou-me a mão, dizendo que não podia saber mais, mas a sua voz era como muitas trombetas que me encheram de terror.

Acordei, assustado e confuso, sentado no meu lugar no conclave. Conseguira adormecer durante o discurso de um dos meus irmãos cardeais. Um dos que estava mais próximo, apercebendo-se da minha falta, sorriu-me.

Estava triste, mas depois deste sonho, enchia-me agora de confiança. Depois do medo da desorientação e da dor, com o desaparecimento do já saudoso João Paulo II, a sua falta seria colmada em breve com um novo sumo-pontífice. Olhei os resultados da primeira votação: Ratzinger…, sim, tudo se encaixava, esteve preso pelos nazis e cumpriu trabalhos forçados, sendo depois enviado para um campo de concentração pelos "libertadores". Seria ele o próximo, ainda que por pouco tempo.

Não acabaria aí, porém, apesar de todas as profecias de desgraças e apocalipses; depois dele teremos outro Papa e depois… só o próprio Deus o sabe.

 


[1] Latim — O peregrino descansa

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segunda-feira, 25 de abril de 2022

Publicação de “A Caixa do Mal”



Já se encontra à venda o meu novo livro intitulado “A Caixa do Mal” com o subtítulo “Um Amor Novo, Uma Maldição Antiga.

 Trata-se do segundo volume da série “A Maldição dos Montenegro”, iniciada em 2016 com “Lágrimas no Rio”. No primeiro volume, toda a ação passava-se na aldeia fictícia de São Cristóvão do Covelo em 1830, mas este segundo volume desloca-se geográfica e temporalmente para a cidade do Porto em 1827.

É aqui que vamos conhecer Fernando Sarmento, um seminarista a estudar na cidade e que, fruto de algumas traquinices, acaba por se apaixonar por Carlota, a filha de um destacado comerciante.

Este romance tinha tudo para ser feliz, não fosse o caso de Sarmento ter ficado na posse de um dos objetos malditos que deram à costa em Lisboa no fatídico dia 1 de novembro de 1755.

Venha conhecer o Porto de há 100 anos, percorra as ruas e frequente os cafés com os personagens deste livro, sentindo os ventos de guerra que se anunciam, enquanto se extremam posições entre Liberais e Absolutistas.

CapaV2

 

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