Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
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As culturas sobrevivem enquanto se mantiverem produtivas, enquanto forem sujeito de mudança e elas próprias dialogarem e se mestiçarem com outras culturas.Mia Couto Escritor e Biólogo moçambicanoNascido em 1955
Quando Mirsulo e Savirio entraram na casa da reunião, perceberam de imediato que não seria uma vulgar refeição aquela para a qual foram convidados.
Erem, por baixo da sua pele de leão, com a imponente cabeça da fera sobre a sua, usava peles novas e luzidias que repousavam sobre os ombros e antebraços, assim como uma túnica branca e limpa. Zia usava uma tiara com penas coloridas de várias aves e uma túnica decorada com riscas de várias cores pintadas à mão. Também os tornozelos, os pulsos e o pescoço ostentavam tiras de couro cuidadosamente entrançado.
Os restantes convivas, sentados no chão, em pedras ou toscos tambores de madeira, postavam-se na forma de um U, em volta da fogueira central, voltados para a entrada. Estavam também ataviados com as peles mais novas e aquilo que acharam de melhor. Apesar da maior parte do fumo se escoar pelo buraco no meio do telhado, havia uma atmosfera nublosa envolta nos aromas da carne que estralejava no fogo.
O barulho das conversas parou de imediato assim que os convidados Hati assomaram à entrada. Traziam as mesmas roupagens que, por si só, distinguiam-se em qualidade das dos seus anfitriões. Uma das jovens netas de Erem indicou os lugares entre o chefe e a companheira para os dois importantes dignitários e outros para Tibaro e os companheiros. Logo ao lado de Lemi e as suas duas esposas.
O chefe estrangeiro, antes de se focar nas pessoas que o esperavam, fez uma rápida apreciação da casa da reunião; paredes mais ou menos direitas, mistas de colunas de madeira e pedras desbastadas, os espaços preenchidos com lamas secas. Dois grandes troncos apoiavam o telhado, também composto por traves grosseiras e colmo.
De imediato, vários jovens de ambos os sexos, netos de Erem e Lemi, começaram a apresentar aos convidados travessas de madeira com tiras de carnes secas, carnes grelhadas ou mesmo cruas. Outras travessas traziam pequenos abrunhos e figos secos.
Todos continuavam calados, de olhos fixos nos convidados.
Ciente da atenção que recebia, Mirsulo sentou-se e sorriu para Erem e Zia, antes de fazer um gesto a Savirio para que o imitasse. Seguidamente, pegou uma das tiras de carne e começou a mastigar com satisfação, olhando para a petrificada audiência.
Este pareceu ser o sinal para que todos voltassem à normalidade e as conversas e risos voltaram ao salão como se nunca tivessem sido interrompidos.
Savirio estava contrariado por ser separado de Tibaro, que fora encaminhado para junto de Naci e os restantes filhos do chefe e por ficar junto de Zia que se portava friamente para com ele.
Os dois chefes conversavam sobre a casa da reunião, com Mirsulo a elogiar a força da sua arquitetura e a questionar porque as restantes construções não seguiam os mesmos moldes. Erem explicou-lhe em traços largos a ajuda prestada por Alim e Beki, porém, se a casa da reunião era uma obra para todos, onde todos colaboravam, as casas individuais eram trabalho de cada um e da sua família. Levaria mais tempo a assumir construções melhoradas nas casas mais antigas de Barinak, embora já as houvesse nas zonas recentes.
O chefe Hati não pareceu compreender o que lhe era explicado; para ele era bastante simples; diria a cada família que disponibilizasse um ou dois homens, que trabalhariam por alimentos e construir-lhe-iam uma boa e confortável casa.
Erem olhou-o com estranheza e disse que teria de caçar muitos dias para poder alimentar assim tantas pessoas.
— As pessoas deviam estar agradecidas por viver sob a proteção do déms pótis. — Desta vez até o mal-encarado Savirio interveio. — Tratando-se da casa dele, até poderiam trabalhar sem receber nada. De todas as formas, com o que recebe de todos os caçadores, pescadores e agricultores, tem alimentos mais do que suficientes para ele, a família e os trabalhadores.
— Não, não. — Negou Erem. — Já me falaram desse vosso costume, mas aqui as coisas são diferentes. Cada um trabalha para si e para a sua família. Juntam esforços para melhores resultados e aquilo que lhes é retirado trabalho é para alimentar os doentes, as viúvas e os órfãos.
— O que te impede de tirar mais um pouco? — Sorriu conspicuamente Mirsulo. — Não és tu quem decide?
— Sim, mas… — o chefe de Barinak começava a sentir-se desconfortável —… mando, porque estão todos de acordo que assim seja. Sabem que sou justo e olharei por eles quando precisarem.
— Precisamente. — O curandeiro estava cada vez mais interessado na conversa. — Esse trabalho, essa responsabilidade para com eles deve ser recompensada.
— Os outros podem não aceitar… — Lemi, que se mantivera calado até ali, aparentemente distraído da conversa, virou-se para os convidados. — … na certa revoltavam-se e quereriam escolher outro chefe.
— Para que te servem os homens que te são leais? — Mirsulo fez a pergunta a Erem, voltando-se depois para Lemi. — A própria família? Não terias o seu apoio?
— Aqui somos todos irmãos perante Swol! — Sentenciou Zia subitamente. — Fazer o que pedes é viver como as pulgas e os piolhos; a comer o que os outros produzem com o seu esforço!
— A mulher não devia falar sem que lhe fosse pedido! — Indignou-se Savirio, tomando a posição de uma criança amuada.
— Também nisso somos diferentes, Mirsulo de Hatiweik. — Indignou-se a Xamã, ignorando o curandeiro. — Swol criou o homem e a mulher diferentes, mas como duas partes da mesma coisa. As duas faces do mesmo rosto, as duas mãos ou os dois pés do mesmo corpo!
— Mas a boca é só uma! — Replicou Savirio. — Devias calar-te e não entrar na conversa dos homens!
Zia levantou-se intempestivamente.
— Calem-se… ambos! — Erem alterou-se, carrancudo. — Não quero discussões neste dia de festa.
A cacofonia de conversas cruzadas parou subitamente, quase em simultâneo, sob a ordem seca do chefe de Barinak. Todos se olharam confundidos e os elementos dos Hati trocaram olhares de avaliação e suspeição com os seus anfitriões. A tensão na sala subiu repentinamente e todos se perguntaram se aquele que estava sentado ao seu lado era um amigo ou inimigo.
— Savirio…! — Rosnou Mirsulo entre dentes, desagradado. — Deixa-me ser eu a falar.
— Não recebemos bem os nossos convidados. — Erem admoestou Zia num tom mais suave, apesar do seu rosto crispado. — Vamos perdoar-lhes a diferença de ideias e evitar discussões.
— Quando um convidado nos vem insultar na nossa própria casa… — ia continuar a xamã.
— Zia… — o chefe não terminou a frase, mas o seu rosto triste dizia tudo.
Ela virou-lhes as costas e saiu intempestivamente, percorrendo a sala em passos largos sob os olhares interrogativos de todos.
Savirio abriu a boca para dizer algo, mas o simples olhar furioso de Mirsulo fê-lo fechá-la sem emitir um som e retornar ao seu mutismo amuado.
Erem deitou um olhar rápido a todos os convivas; bastaria uma palavra sua e a sala transformar-se-ia num campo de batalha. Ergueu-se com um sorriso e fez um gesto na direção da entrada. Seis homens e mulheres fizeram a sua aparição, três deles ressoando peles esticadas sobre molduras de madeira, dois saltavam e gritavam enquanto abanavam cabaças cheias com pequenos seixos e outro soprava notas agudas através de um osso furado.
Com tão intempestiva entrada, a audiência logo esqueceu o pequeno incidente e batia as palmas e soltava gritos de incentivo. O entusiasmo aumentou e houve exclamações de espanto quando um grupo de vários guerreiros entrou em corrida e começou a executar um conjunto de saltos e cabriolas em volta e por cima da fogueira.
O chefe e o curandeiro Hati assistiram em silêncio às acrobacias e presenciaram o drama traumático de dois indivíduos cobertos de peles, onde quase só se viam os olhos, a “matar” um e depois outro dos dançarinos e fugirem com vários objetos. Seguidamente os restantes perseguiram-nos, sempre em redor da fogueira e travaram uma acrobática luta que resultou na derrota dos “peludos”. Os vencedores colocaram um pé sobre os vencidos e soltaram urros de vitória ecoados pela vibrante assistência e um crescendo da cacofonia dos instrumentos musicais.
Tão depressa os dançarinos saíram em corrida, como entrou outro, a cabeça coberta com um espantoso crânio de auroque, que foi ameaçando a assistência com roncos e os afiados chifres. Três dançarinos, com tiras de tecido em volta da cabeça e envergando túnicas, simularam o ataque ao “animal” que os derrubou e os fez correr em volta da fogueira.
Outros três, vestidos conforme as tradições de Barinak, fingiram-se surpreendidos pela refrega e envolveram-se na “luta”. Um dos que envergava túnica fez-se de morto, assim como um dos outros. Os dois grupos uniram-se, dançaram juntos, perante o espanto do “auroque”, até que, juntos, ergueram um dos homens de Barinak que simulou uma estocada mortal sobre a fera.
A besta caiu como morta para gáudio da assistência que irrompeu em aplausos e gritos de “Naci, Naci, Naci” enquanto os dançarinos saiam transportando o crânio de auroque numa procissão vitoriosa.
Os instrumentos musicais aumentavam o ruído ensurdecedor da assistência em crescendo, até que se calaram subitamente, deixando apenas alguns aplausos tardios e murmúrios excitados e felizes.
Os agravos do início da cerimónia foram apagados da memória de todos, inspirados pelas imagens dos dois povos a lutar para eliminar uma ameaça comum.
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