Xico acordou com o barulho dos tapetes a ser sacudidos. Não se mexeu. Deixou-se ficar encolhido, a ouvir a dona Amélia, a mulher da limpeza, a dar os bons dias à colega do prédio ao lado. Não tardava, viria meter-se com ele. Não se interessou e afundou-se ainda mais nos cobertores, escondendo a cabeça entre os cartões que o protegiam do frio daquela manhã de março.
- Senhor Xico! Ò senhor Xico, acorde! - A estridente voz feminina estava agora junto dele.
- Que foi? - Fingiu-se desentendido, sem sair da proteção dos cobertores.
- Não lhe pedi já que saísse daqui antes das 8:30h? Não tarda nada começa a chegar o pessoal e os clientes e dá mau aspeto estar aí a dormir. Vamos, levante-se! Oh, valha-me Deus, que cheiro! - Ela fez uma expressão de repulsa, assim que o olfato denunciou a “habilidade”. - Voltou a urinar ao pé da porta! Assim não pode ser, vou fazer queixa ao patrão e não vai voltar a dormir aqui!
Ele colocou a cabeça para fora dos cartões. O cabelo negro, despenteado e sujo, formava uma juba em volta do rosto pálido, de barba desgrenhada, que olhou a mulher com cara de poucos amigos.
- Não fui eu! - Desculpou-se. - Não vi quem foi, deve ter sido enquanto estava a dormir. Na certa foi o cão do Zé.
- A urina de cão não cheira assim tão mal! - Amélia, cinquentona maternal, não se deixava enganar com facilidade. - Vocês são uns porcos! Vêm dormir para aqui e ainda deixam tudo sujo e malcheiroso. Já há umas semanas que o tenho deixado dormir aí, mas você não liga, quando lhe digo que tem que se levantar antes de eu chegar. Assim não pode ser!
- Eh pá! Largue-me da mão! - Ele ergueu-se contrariado e começou a dobrar os cartões e os cobertores por entre resmungos.
- Agora não tenho tempo de limpar o átrio todo, antes deles chegarem, está a ver o que me arranja? - Ela continuava. - Já na semana passada, uma das senhoras do escritório, escorregou e por um pouco não caiu, por o chão ainda estar molhado quando eles chegaram. Não se admite, parece que faz pouco das pessoas!
- Já disse que me deixe! - Xico aproximou-se ameaçadoramente da mulher, com o fardo dos parcos pertences debaixo do braço. - Não disse já o que tinha a dizer? Cale-se, raios a partam!
Amélia deu um passo atrás entre o surpreendida e o enojada, com o hálito do homem, que quase encostou os narizes de ambos.
- Ora vejam só! - Ela recuperou rapidamente, assim que ele lhe virou as costas. - Não tem onde cair morto, aqui a dormir pelos umbrais das portas e ainda é malcriado! Não volto a trazer-lhe mais nada para comer.
- Pró diabo que a carregue... - Xico resmungou de si para si, enquanto saía, da arcada de acesso aos escritórios, para a rua movimentada. - … os iogurtes estavam fora do prazo e o pão era da véspera.
- E não volte a aparecer aqui! Se o vir por aqui outra vez, chamo a polícia! - Ela continuava a gritar do interior. - Ouviu? A polícia!
Aborrecido, caminhou pelo passeio, a espreitar as montras e parou em frente ao quiosque, a ler os cabeçalhos dos jornais. A data chamou-lhe a atenção; sexta-feira 13 de março. “Tá-se mesmo a ver, começou bem!” resmungou para consigo enquanto pegava num dos diários.
- Ò Xico! - Chamou o homem atrás do balcão. - Já te disse que se queres ler o jornal, tens que o comprar!
- Eh pá! Está bem! Estava só a ver “as gordas”! - Desculpou-se largando o jornal.
Virou as costas e atravessou a rua, preguiçosa e despudoradamente, enquanto ignorava os condutores a reduzir velocidade e buzinar protestos.
Espreitou para a entrada da loja abandonada, onde dormia o “Barbas”. Conseguia ver o rasto de papeis e plásticos abandonados que conduziam ao “covil”, na escuridão.
- Ò Barbas! - Chamou Xico. - Estás aí?
Um grunhido fraco foi a resposta. Avançou, receoso, para a penumbra.
O Barbas jazia num emaranhado de cobertores, arfante e tremendo de frio. Cabelo e barba completamente brancos, rosto talhado em madeira, assente num corpo esquelético, ninguém sabia que idade tinha… nem ele. O ancião ergueu uma mão, que mais parecia uma garra, pedindo ajuda em gemidos arfados.
Xico baixou-se ao lado dele e pousou-lhe a mão na testa:
- Eh, pá, que estás a “arder”!
- Chama… chama o médico! - Conseguiu finalmente articular o velho.
- Espera, já volto!
Correu de volta ao quiosque e dirigiu-se ao homem do balcão:
- Senhor João! Chame uma ambulância para o Barbas, acho que ele está muito mal!
- Raios partam! - Resmungou o homem, pegando no telefone. - Agora passa a vida nisto! Depois eu que me amanhe com os gajos da assistência social a vir aqui dar-me novidades e fazer-me perguntas! Julgam que o velho é meu pai, ou o caraças!
- Depois mande-os lá dentro, eu vou só buscar as minhas coisas e vou à minha vida.
- Tu é que devias ficar com ele e dar as informações!
- Sim, sim, - Ripostou Xico jocosamente. - Deus lhe agradecerá, se não for neste mundo, ao menos no outro.
- Vai à m…! - João irritou-se.
Atravessou de novo a rua e voltou ao recanto infeto onde o “colega” jazia. Agora parecia dormir, estaria morto? Tornou a pousar-lhe a mão na testa e um gemido fraco respondeu-lhe.
Olhou em volta, pelos objetos espalhados em redor do moribundo. Os pertences de uma vida, que mais não eram do que montes de roupas, cartões, garrafas de plástico e velhos eletrodomésticos com variados graus de destruição. Pegou no casaco e começou a revirar-lhe os bolsos; um maço de cigarros com dois cigarros inteiros, uma nota de cinco euros e quatro botões de plástico de tamanhos variados. Deitou os botões ao chão e guardou a nota e os cigarros. Apalpou-lhe o rolo que fazia de travesseiro, de onde tirou um saco de pano com umas dúzias de moedas e remexeu-lhe nos bolsos das calças onde achou um pequeno papel. Procurando a luz, acabou por identificar que se tratava de uma aposta do Euromilhões; 3, 5, 13, 16, 31, 32 e as estrelas 3 e 5. “A coisa promete” - Comentou para consigo. - “Nasci a 3 de maio e tenho aqui a data duas vezes; hoje é dia 13 e este ano passo de 31 para 32 anos. Este talão tem tudo para ser premiado.” Guardou-o no bolso do casaco, pegou nas sua próprias tralhas e saiu do covil, depois de deitar um último olhar ao velho, que respirava de forma entrecortada.
Caminhou pela rua que era a sua casa e, chegado ao “prédio dos cafés”, como lhe chamava, pousou as tralhas junto a uma das colunas da extensa colunata que albergava diversas esplanadas. Sempre com atenção aos empregados, passou pelo meio das mesas, surrupiando um palito de torrada ou um pastel trincado que alguém deixara abandonado. Sempre que o empregado reparava nele, desviava o seu caminho e dirigia-se rapidamente para fora da área da esplanada, antes que o expulsassem.
Na última das esplanadas, o empregado acabava de entrar no café e ele pôde explorar as mesas com mais cuidado. Numa delas, estavam quatro moedas de euro, que desapareceram imediatamente nos bolsos do vagabundo. Uma mulher, sentada na mesa em frente, deitou-lhe um olhar desaprovador e ele, aproximando-se, fez um sinal ameaçador de silêncio, antes de se ir embora apressado.
Já de novo com os seus pertences, chegou a um portão de madeira, semi derrubado, que empurrou. Entrou no que restava de uma antiga “ilha”, com um pátio enorme, totalmente rodeado por casas que agora não eram mais do que portas e janelas escancaradas por onde espreitavam silvados. Era a “casa” que partilhava com o Manel Passarão, desde que este fugira do Hospital Magalhães Lemos.
Xico nem sempre vivera assim. Em tempos tivera um emprego, logo depois de sair da tropa, numa empresa de segurança. Foi a sua atração pelas coisas que não lhe pertenciam, que causou a sua perdição. Foi despedido, apanhou uns meses de cadeia e, o pouco que tinha conseguido juntar, evaporou-se num ápice. Nem pensar em procurar pela mãe, na longínqua aldeia beirã, de quem já não sabia há anos. Na certa trata-lo-ia mal e ainda lhe atiraria com o que tivesse à mão. As tendências para “amigo do alheio” herdara-as do pai, falecido quando ainda era criança, e não da mãe, que era pobre, mas honesta. Agora vivia por aqui e por ali, deitando a mão ao que podia e, a verdade, é que se habituara rápido a não ter que dar satisfações a ninguém e a não ter horários para fazer fosse o que fosse. A chatice, eram a fome e o frio que o mordiam demasiadas vezes…
Abancou-se na única casa que não tinha silvados e mostrava aspeto de ser ocupada por alguém. Havia uma miserável desculpa para cama, na forma de um amontoado de cobertores por cima de um colchão velho e várias pilhas de tralha encostadas às paredes. Depositou as suas coisas a um canto, depois de arrastar um enorme saco de plástico cheio de latas de refrigerantes vazias.
Preparava-se para sair novamente quando ouviu o latido nervoso de um cão. Logo de seguida, entrou pela porta arruinada que dava acesso ao pátio, um homem enorme “arrastando”, na ponta de uma corda, um cão que se debatia. Era o Manel Passarão e mais um dos seus eternos cães renitentes, que ele insistia em levar para todo o lado, mesmo contra a vontade do canídeo. O apelido de Passarão era obra do Xico, porque o homem passava a vida a dar de comer às pombas e a correr à volta do pátio a bater “as asas”. À medida que o tempo foi passando, tornou-se mais calmo e a sua fixação voltou-se para os cães vadios que apanhava e tornava seus. Era um “gigante” acriançado, de quem todos abusavam, até se juntar a Xico. Este nunca fez nada muito importante para o defender, mas a sua presença parecia bastar, principalmente depois de, de forma gradual e mais ou menos violenta, ter expulsado todos os outros “inquilinos” da ilha abandonada.
Assim, que notou o visitante, Manel fez um movimento, como se fosse a sair novamente do pátio, mas então reconheceu-o:
- És tu, Xico?
- Não, é o Papa! - Respondeu o visado, sem um sorriso.
- Que foi que te fiz? Porque estás a falar comigo assim? - O homem, com a barba crescida de vários dias, fez beicinho.
- Deixa-te de “xonices”, “Passarão”! Já sabes que não quero cá pieguices, não achas que és demasiado grande para isso?
- Julguei que eras meu amigo...
- Se não fosse teu amigo, já te tinha espetado um chuto nesse teu traseiro descomunal, para te pôr daqui para fora!
Amuado, Manel arrastou o cão, que lutava com a corda, até um ferro onde o amarrou.
- Estiveram aqui o Vesgo e o Pinguinhas à tua procura! - Anunciou sem se levantar, enquanto se debatia para fazer um nó. - Bateram-me por tua causa!
- Porque achas que tive que desaparecer estes dias todos?
- O Vesgo disse que, se te apanhasse a roubar carros naquela rua outra vez, te desancava.
- Ele que se vá encher de pulgas! Um carro com o vidro aberto, que é que ele queria?!? Está chateado é por não ter visto primeiro! Quantos carros não “gamou” já e deitou as culpas aos outros. Recebe as moedas por arrumar os carros numa rua e vai roubar os carros noutra. É um bom filho da ….
- Queriam que lhes dissesse onde andavas.
- Ainda bem, que não sabias, vês?
Manel não respondeu e sentou-se no chão, olhando-o, sentido.
- Tens alguma coisa para comer? - Xico mudou a conversa.
- Tenho umas latas de sardinhas e uns pães, que me deu a velha que ajudei a levar as compras. - O homem ergueu-se de um salto, feliz de novo. - E uns iogurtes que me deram na ajuda de rua!
- Vai lá buscar, estou com uma “larica” que “nem é bom”! Vai lá, enquanto eu faço uma fogueira, a ver se espantamos o frio.
O “Passarão” desapareceu a correr no interior do casebre e regressou uns minutos depois, com um saco de papel, com uma tábua por bandeja, que pousou na pedra que muitas vezes lhes serviu de mesa. Depois correu novamente e reapareceu com duas garrafas verdes, que exibiu, triunfante:
- Xico! Topa-me lá esta maravilha!
- Gaita, homem! Que é isso? - Espantou-se o visado.
- O Ferreira, do supermercado, sabes? Ajudei-o a arrumar umas paletes e caíram umas caixas de vinho. Só se aproveitaram quatro garrafas. Ele disse-me que não dissesse nada, ficou com duas e deu-me outras duas.
- Ora vejam só! - Xico não queria acreditar. - Parece que não te tens dado nada mal, não senhor!
O frugal almoço da velha, desapareceu num ápice. Comeram os iogurtes da assistência e duas metades de Bolas de Berlim roubadas na esplanada. Depois deixaram-se ficar ali, a fumar os cigarros roubados ao Barbas e a acabar as garrafas do supermercado.
O discurso de Xico tornava-se mais inflamado a cada golo da garrafa que estava quase no fim. Contou ao companheiro, cada vez mais zangado, tudo o que se passara nas últimas duas semanas; os problemas com os outros sem abrigo, para ter onde dormir, as “injustiças” da dona Amélia da limpeza e da pena que sentiu do Barbas… que vai acabar por morrer naquele buraco nojento e ficar vários dias a apodrecer até que alguém dê por ele.
- Porque é que o mundo é assim? Uns com tudo e outros sem nada! - Escorreu a última gota e mirou a garrafa do companheiro, que já se ria por tudo e por nada e que estava ainda meia. - Dá cá essa porcaria, nem para beber serves! - Exigiu, tirando-lha das mãos abruptamente.
- Porque é que és assim? - O outro riu-se apesar da brutalidade. - Se me tivesses pedido eu dava-ta! Também, acho que se beber mais, deito tudo cá para fora.
- Porque é que TU, és assim?!? Pergunto eu! - Xico ergueu-se e atirou a garrafa vazia, que passou próximo da cabeça do companheiro e estilhaçou-se ruidosamente no chão empedrado.
Manel caiu, da pedra onde estava sentado, ao esquivar-se do míssil e ficou de costas no chão a rir-se, para fúria do outro.
- Não passas de um idiota! És um burro, um pateta alegre e todos te dão umas porcarias e tu ficas feliz… sempre! - Xico estava cada vez mais furioso, com os vapores do álcool a embotar-lhe o juízo. - Eu, para conseguir alguma coisa, tenho que trabalhar no duro… ou roubar!
Percebendo finalmente a fúria e frustração que dominava o amigo e, parando de rir, aproximou-se e consolou-o, pousando-lhe a mão no ombro:
- Não importa! O que me derem a mim, também dará para ti. Não somos amigos?
- Deixa-te de m… pá! - Ele sacudiu-lhe o braço com violência. - Não quero a tua piedade! Queres partilhar as coisas, é?!? Esse casaco que tens vestido e está-te apertadíssimo, dá-mo!
O outro olhou tristemente para o casaco antes de comentar:
- Eu gosto deste casaco, foi um doutor do banco que mo deu!
- Raios partam! Vês o que te digo? - Estilhaçou a segunda garrafa, ainda com algum vinho, no chão. - Dá-mo já! Passa para cá essa porcaria.
Como ele demorasse a reagir, Xico partiu para a violência e com alguns socos nos braços obrigou o companheiro a tirar e entregar-lhe o casaco.
Com lágrimas nos olhos, o “Passarão” assistiu ao ar de triunfo do outro, que atirou o seu próprio casaco para o chão enquanto vestia a nova aquisição.
- Então? Que achas? Fica-me bem, não fica? Pareço um artista de cinema! - Xico estava radiante do seu feito.
Sem lhe responder e com lágrimas a correr no rosto bonacheirão, Manel fez o gesto de apanhar o casaco abandonado no chão.
- Eh lá! Que é lá isso? - Xico apanhou-o antes do companheiro. - Este casaco é meu!
- Mas… tu ficaste com o meu… - O rosto dele, onde as lágrimas deixavam duas linhas verticais sulcadas na sujidade, era uma máscara de incredulidade.
- A vida é injusta, colega! Vai catar para aí outro, arranja um papalvo qualquer que te dê! Não te dão tudo? - E com esta pergunta, atirou o velho casaco para a fogueira.
Cedendo ao peso da injustiça, Manel irrompeu num pranto soluçante e correu para o interior do casebre que lhe servia de lar.
Xico, carregado com o efeito do álcool e a excitação da enormidade do que havia feito, saiu para a rua, vagueando sem destino. Levou ainda muito tempo, para que o peso do remorso se fizesse sentir e começasse a pensar que o companheiro não merecia o que lhe fez.
Começava a anoitecer e ele por uma rua secundária, olhava atentamente para o interior dos estabelecimentos e para os carros estacionados. Por fim, a sua busca foi recompensada; um casaco abandonado no assento traseiro de um automóvel… fechado. Olhou em volta para se certificar que não estava ninguém por perto e tirou de uma bota um pequeno martelo plástico com uma ponta de metal, que “palmara” num autocarro há muitos anos atrás. Partiu o vidro traseiro e desatou a correr com o casaco debaixo do braço.
Já longe, remexeu os bolsos, achou um molho de chaves e uma carteira, que atirou para o cesto dos papeis, depois de a aliviar de umas quantas notas que continha. “Está feito, - Pensou. - está aqui um casaco catita para o “Passarão” e dinheiro para o jantar… bem, ele não precisa de jantar, está bem gordo…
Saiu do beco e entrou numa pequena tasca em frente.
- Que andas aqui a fazer, Xico? - O homem careca e baixo, mas entroncado, materializou-se ao pé dele, assim que se sentou numa das poucas mesas vagas. - Não vens armar confusão, pois não? Tens dinheiro, ou ponho-te já lá fora?
- Eh, senhor Fernando! Que antipatia! - O outro fingiu-se ofendido. Claro que tenho dinheiro, senão, não entraria neste estabelecimento de luxo.
- Bem, vais para a rua! - O outro concluiu, arregaçando as mangas.
- Não, espere! Estava a brincar! Tenho dinheiro, veja. - Exibiu as notas. - Só venho comer uma “sandocha” de presunto e beber um “tintito”.
- Já apanhaste algum desprevenido não foi? - Fernando sabia quem era aquele que estava ali sentado e não resistiu a comentar antes de dar meia volta para ir aviar o pedido. Alguns dos clientes olharam o recém chegado com sobranceria.
Duas bem aviadas sandes de presunto e quatro copos de maduro tinto depois, já todos os vestígios de remorsos estavam diluídos. Recostou-se, o mais cómodo que conseguiu, na cadeira de madeira, a ver as notícias que passavam no telejornal. Foi então confrontado com os resultados do concurso do Euromilhões. A tremer, assistiu à exibição de cada um dos “seus” números; lá estavam o 13 da sexta em que se encontravam, o 3 e o 5 da sua data de nascimento, o 31 e o 32 da sua idade… estava rico!!!! Febrilmente, começou a vasculhar os bolsos em busca do talão que furtou ao Barbas, cada vez mais ansioso. Até que, de repente, recordou-se! Estava no bolso do casaco que atirou para a fogueira!
- Demónios dos infernos!!!! - Gritou, assustando toda a gente na atarracada taberna. - P… de sorte a minha! Sacanas malditos, deram-me a sorte quando sabiam que não podia ser minha!!!! Ah, malditos! Só podem estar a gozar comigo!
Continuou as imprecações atirando com tudo o que estava em cima da mesa para o chão e derrubando as cadeiras vazias à sua volta.
- Já sabia que ias acabar por dar problemas, meu animal! - Gritou-lhe Fernando agarrando-o pelos colarinhos. - Põe-te lá fora imediatamente e se tornas a por “as patas” aqui, dou-te uma tareia que nunca mais te levantas!
O pequeno, mas robusto homem, arrastou literalmente Xico para a porta onde o chutou para a rua.
- Espera, não! - Protestou o vagabundo sem qualquer resultado. - Não percebe? Foi sem querer! Desculpe! E o meu dinheiro que estava na mesa? E o meu casaco?
A resposta foi dada por dois casacos que saíram a voar pela porta contra a cara do infeliz que acabava de se levantar.
- Queres o dinheiro, filho da p…? - Gritou-lhe o taberneiro de dentro do estabelecimento. - Vens cá amanhã, quando te passar a borracheira, depois vemos quanto sobra da porcaria toda que partiste aqui!
- Não posso acreditar! - Gemeu Xico quase a chorar, enquanto vestia o seu casaco e dobrava o que levaria para o “Passarão”. - Que filha da p… de sexta feira 13. Tive a fortuna na mão e deitei-a ao lume… tive algum dinheiro e o cabrão do taberneiro ficou com ele… maldita sexta feira 13…
- Está ali, senhor guarda! - Ouviu a voz atrás dele. - Ainda tem o meu casaco debaixo do braço!