terça-feira, 28 de junho de 2016

Salvo

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


** Publicado no blogue "Memórias e Outras Coisas" http://5l-henrique.blogspot.pt/2016/09/salvo-conto-de-manuel-amaro-mendonca.html
** Incluído no livro "Daqueles Além Marão"



Mariano Bento olhou o céu, de agitadas nuvens escuras, enquanto apressava o passo. Calcorreava o caminho que ia de Alijó a Sanfins, naqueles últimos dias do mês de setembro. Pela arreata, levava a sua mula cor de carvão, a Sedosa, com abundante carregamento de tecidos que lhe encomendaram entregar.
Bem que Acindina, sua mulher, lhe disse várias vezes que não saísse hoje, que se avizinhava tempestade, mas ele podia lá deixar que ela lhe desse ordens? Ainda para mais, à frente do Manel do Telheiro e do Quim de Ribatua? Excomungada mulher, que tem sempre que dar uma opinião, mesmo que ninguém lha pedisse. Ele próprio estava para recusar fazer o trabalho naquele dia… agora estava ali, a meio caminho entre um sítio e o outro, com o céu a fazer caretas cada vez mais medonhas, o vento a uivar e o eco longínquo, mas ameaçador, dos trovões. Ele até nem era ganancioso, embora o dinheiro que ganhará com este transporte lhe faça falta.
Se bem se recordava do trajeto, não estava longe, bastaria passar o maciço do monte da Senhora da Piedade, e Sanfins seria logo a seguir.
Do alto do caminho ascendente, olhou com pena os casebres, a poucas centenas de metros do sopé do monte. Pensou se não deveria reconsiderar e abrigar-se por lá à espera que o tempo melhorasse. As rabanadas de vento, obrigaram-no a segurar o chapéu, cujas abas drapejavam perigosamente.
Já embrenhado na mata de sobreiros e castanheiros, que cobria o imponente monte, o céu parecia escurecer ainda mais e, apesar de serem pouco mais que 17:00h, a luz desvanecia-se e parecia que a noite caíra rapidamente. A Sedosa, quiçá mais inteligente que o dono, a espaços fincava as patas na terra dura do caminho e não se queria mover. Só depois de alguns puxões e a ameaça da chibata, erguida alto sobre os olhos, é que se deixava convencer a dar mais umas passadas.
Também Bento se sentia mais preocupado agora, bem no coração do monte, com os altos ramos a esbracejar furiosamente, para o demover do caminho que tomava. Parou a olhar o céu e uma grossa pinga caiu-lhe sobre a testa. Depois outra e outra. Num instante, uma chuva torrencial abatia-se sem contemplações sobre a dupla, que se arrastava miseravelmente sobre o chão enlameado. Ao longe, escutava-se o toque de um sino empurrado pelo vento. “Deve ser a ermida da senhora da Piedade.” Pensou de si para si enquanto dava nova mirada para trás. Nada se via a não ser o caminho ladeado por árvores que desaparecia no escuro. “Estará muito longe, a ermida? Fica no topo do monte, bem sei, mas com certeza terá um telheiro, ou alguma sorte de abrigo.” Hesitou ao notar um carreiro estreito, ascendente, à sua esquerda. Possivelmente um atalho para a ermida. O monte deve estar cheio deles, para os romeiros e os peregrinos que vêm de toda a região. Entrou no carreiro, puxando a mula atrás de si.
A chuva e o vento não davam tréguas e, para ajudar, as nuvens negras que escureciam o céu, eram iluminadas de tempos a tempos por flashes que se repercutiam em longínquos trovões. A Sedosa estava próximo do pânico absoluto, quando eles desembocaram numa clareira sem saída. O carreiro não levava a lado nenhum, embora o fraco tinir do sino parecesse mais perto. A cavalgadura resfolegava e batia os cascos nervosamente.
A chuva que conseguia passar pelos ramos das árvores, batia com força no rosto, as horas passavam-se e, com as nuvens tão cerradas, em breve seria noite escura. Resolveu voltar ao caminho, de onde não deveria ter saído. Teve que puxar várias vezes a arreata para que o teimoso animal, de olhos esbugalhados e narinas dilatadas, o seguisse. Rápido percebeu que não estava no trilho correto e viu-se numa área com várias paredes em socalcos, possivelmente de um vinha abandonada. Mais à frente, havia um pequeno casebre. Seria o local para se abrigar e se calhar passar a noite.
Como naquele sitio a densidade das árvores era menor, ele conseguiu divisar o teto de nuvens revoltas e foi nesse momento que um enorme raio cruzou o céu. Por longos segundos, tudo ficou iluminado com uma luz branca cegante, logo diluída nas trevas. No mesmo minuto um portentoso trovão estrondeou na montanha, ensurdecendo a dupla. Foi demais para a pobre mula que, com um apavorado coice, projetou Bento num tombo rodopiante, pelas velhas paredes cheias de cotos de vinhas mortas, antes de fugir desenfreada.
Não sabe quanto tempo esteve ali caído, mas despertou, cheio de dores no corpo e na cabeça, com um ruído estranho. Já era noite e a chuva parara. Sentou-se, dolorosamente e escutou uma vez mais o som que o despertara, um rosnar ameaçador; um lobo, com os pelos do dorso eriçados, enfrentava-o a poucos metros. Conseguia ainda divisar o brilho dos olhos de mais uns quantos.
Percebeu que a sua hora chegara. Mesmo que conseguisse salvar-se contra um deles, não tinha qualquer hipótese contra a alcateia. Involuntariamente, vendo os restantes quatro predadores abandonando as sombras, uma prece saiu espontânea dos seus lábios trementes:
-    Oh minha Senhora da Piedade, acudi a este pecador nesta hora de aflição, não deixeis que morra aqui nos dentes destas feras.
Ergueu-se cautelosamente, empunhando um bocado de uma videira e procurou colocar-se de forma a dificultar o salto que o mais próximo dos animais preparava.
De repente, a atitude dos lobos pareceu alterar-se e, mesmo o mais próximo, passou de uma posição de ataque para outra de hesitação. Por fim, resolveu virar costas ao seu “jantar” e desatou a fugir, seguido de perto pelo resto da alcateia.
Atónito, Bento não percebia o que estava a acontecer e olhou para trás para descobrir uma jovem e pálida mulher. Os cabelos negros, estavam caídos sobre os ombros, tapados por um longo vestido azul que não deixava ver os pés. Empunhava um varapau com uma mão e uma tocha flamejante na outra. Ele deixou-se cair de joelhos e de rosto em terra. Não podia ser outra, senão a resposta à sua prece!
A mulher segurou-o por um braço e obrigou-o a erguer-se. De perto, era ainda mais bela. Ele tentou balbuciar um aparvalhado agradecimento, mas ela, exibiu um sorriso maravilhoso, que pareceu tornar a noite em dia e pousou um dos seus delicados dedos sobre os seus lábios. Obedientemente, deixou-se guiar até uma gruta formada por um enorme bloco de granito aparentemente suportado por duas contorcidas oliveiras de aspeto centenário. Todas as árvores em redor eram também oliveiras, muito velhas, envoltas em mato e silvas.
A senhora apontou-lhe o fundo da pala e fez um gesto, com as duas mãos debaixo do rosto, indicando que deveria descansar ali. Em seguida, com a tocha que empunhava, acendeu o molho de gravetos à entrada da gruta.
Hesitante, ele obedeceu e contornou a aconchegante fogueira, sentando-se numa fofa capa de folhas secas. Tentou agradecer novamente mas, uma vez mais, aquele sorriso desarmante deixou-o sem fala e ela repetiu o gesto de silêncio completando-o com outro, com a palma da mão voltada para baixo, indicando que esperasse. Depois, voltou-lhe as costas afastando-se silenciosamente ainda com o varapau e a tocha. Ele ficou, imóvel, a ver a luz bruxuleante a desaparecer nas trevas.
O tempo passou-se e ela não voltava. Bento, aquecido pela fogueira, atenuados o medo e as dores da queda, acabou por adormecer na cama de eremita.
Já tinha nascido o sol quando acordou. O céu continuava coberto de nuvens e um nevoeiro denso escapava-se do chão atapetado por séculos de folhas. A fogueira apagara-se e não havia sinal da mulher que o salvara, que não podia ser outra senão a Senhora da Piedade que era venerada na ermida no cume daquela serra.
Ergueu-se, com as pernas trementes, esperando, mas ao mesmo tempo temendo, encontrar a mulher. Percebeu então, aos seus pés, um saco de lona de aspeto bastante usado. Pegou-lhe e abriu-o; tinha um punhado de bolotas de ouro maciço! Ficou estarrecido e pousou o saco onde estava, vendo então que havia um outro em tudo igual, mesmo ao lado. Abriu-o e estava meio de figos, apetitosos figos, que o seu estômago, que não comia nada desde o meio da manhã do dia anterior, reclamou.
Ficou-se sem saber o que fazer, mas, por fim, a fome mandou mais forte. Pegou uma mão cheia de figos, não todos e fechou novamente o saco. Colocou-os no bolso e saiu da gruta a mastigar um deles.
Vagueou em volta mas não viu ninguém, nem vestígios da passagem de quem quer que seja no olival abandonado onde se encontrava. Acabou por achar o caminho de onde se perdera na tarde anterior e tomou a direção que achava ser a de Sanfins. Tinha um aspeto miserável, com o rosto cortado e com sangue seco em vários sítios, nódoas negras e roupas rasgadas. Comeu mais um figo, que pareceu dar-lhe alento e apercebeu-se que estava já a sair da parte mais densa da mata e o caminho iniciava um declive suave no sentido descendente.
Abandonou a proteção das árvores e contemplou o enorme vale que se estendia à sua frente, meio encoberto pelo nevoeiro baixo. Mais ao fundo, no caminho que o levaria à povoação, viu dois homens que traziam pela arreata a sua mula Sedosa.
Quase correu para junto dos homens.
-    Oh, Deus seja louvado! - Exclamou, felicíssimo a afagar o focinho do animal. - Encontraram a minha Sedosa! - Muito obrigado aos senhores!
-    Deus dê um santo dia a vosmecê! - Saudou o homem mais velho com um sorriso. - Porque a noite não deve ter sido nada boa, da forma como está “embuldrigado”!
-    Eu não disse “ca” mula vinha da serra, pai? - Perguntou o mais novo.
-    Oh, sim, espantou-se ontem à tarde, com a trovoada! - Explicou Bento. - “Amandou-me” com um coice aqui do lado, que é de admirar não me ter “arrebentado” as costelas!
-    Ontem, pela noitinha, demos por ela a pastar lá à porta, percebemos que devia haver alguém em trabalhos, mas a serra não é um bom lugar para se andar à noite. - Continuou o mais novo. - Guardamos para ver o que se passava agora pela manhã.
-    Ainda bem que o bom Deus olhou por vosmecê. Andam coisas muito estranhas por esta serra à noite, ninguém gosta de ser apanhado por lá! - Afirmou o mais velho.
-    Pois vosmecês não querem saber que ia sendo comido por lobos?
O homem mais velho benzeu-se enquanto o mais novo arregalou os olhos e perguntou:
-    Atacaram vosmecê? E morderam-no?
-    Não, Deus seja louvado! Pedi ajuda à Senhora da Piedade e não querem saber que uma mulher com um varapau e um archote correu com os lobos?
Os dois estranhos olharam-se com expressões de incredulidade.
-    Juro! Não sou nenhum “aldrúbias”, nem “borrachão”! - Exclamou Bento.
-    E… apareceu a Nossa Senhora? - O mais velho fez uma careta.
-    Pois, quando ela apareceu, também pensei que sim. Era muito bonita, com cabelos compridos e um vestido azul. Mas ela não me deixou ajoelhar e levou-me para uma pala para descansar. Ao fim e ao cabo, “tiranto” aparecer não sei de onde, não fez nenhum milagre, os lobos fugiram foi da tocha que trazia!
-    Levou-o para uma pala, diz? - Perguntou o mais novo com uma expressão de desconfiança.
-    Sim! - Bento foi convicto. - Achou-me no meio de umas vinhas velhas e levou-me para uma pala ao pé de um olival abandonado.
-    A pala da moira! - Exclamaram o velho e o novo em uníssono!
-    Moira? Qual moira?
-    Como era a mulher que viu vosmecê? - Interrogou o velho.
-    Muito branca, cabelos pretos e um vestido comprido azul! Levou-me para uma pala onde tinha um saco de figos.
-    Figos! - Riu-se o mais novo. - Não há figueiras umas boas léguas em redor!
-    Que demónio… - Bento perdeu a paciência e mergulhou a mão no bolso. - Vejam, ainda aqui trago alguns! - Mas a mão estava preta de carvão e o que ele segurava eram apenas algumas pedras pretas que atirou para o chão. - Que m** é esta?!?
Os dois estranhos soltaram uma gargalhada.
-    “Caçoais” de mim?!? Estou a dizer-vos! Foi uma mulher que vive na serra que me ajudou! Ainda há pouco comi um dos figos que estavam na pala!
-    Escute, amigo! - O mais velho parou de rir e explicou. - Não vive ninguém nesse monte! Lá para cima, há umas vinhas e olivais muito “intigos” que dizem que eram dum rei mouro que aí vivia com a filha e que foram mortos pelos cristãos. As ruínas do castelo, nunca ninguém as achou, embora se diga que a ermida foi construída nas suas fundações. O que é certo, é que acontecem coisas muito estranhas nesse monte e é por isso que ninguém gosta de andar por lá, se o puder evitar. Contam-se histórias de gente que achou muito ouro, mas nunca conseguiu sair do monte...
-    Mas eu...
-    … por isso, bom homem, - Continuou o velho. - se está vivo, de saúde e recuperou os seus pertences também, dê Graças a Deus e deixe o que aconteceu entre vosmecê e Ele. Por mim, fico “sastisfeito” que esteja “bô” e que possa seguir a sua vida. Se precisar de alguma coisa, pergunte pelo Quim Moleiro, vivemos mesmo ali à entrada de Sanfins.
E com isto, sem aguardar resposta, deixaram-no com a mula e afastaram-se a conversar um com o outro.
Obrigado… - Bento agradeceu, quase distraidamente, enquanto olhava para o chão, para o local onde atirara as pedras negras, que antes eram figos… e que agora eram bolotas de oiro.
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segunda-feira, 6 de junho de 2016

Montês

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


Era o fim de uma tarde quente de agosto, quando Benedito chegou a Santiago. Estava coberto de pó, com as roupas remendadas, as socas de madeira penduradas num varapau que trazia ao ombro e os pés descalços. Ninguém tinha dúvidas que umas boas léguas endureciam aquelas solas calejadas que pousava ritmicamente na calçada. O seu tamanho, uma cabeça acima da média, chamava a atenção e as pessoas que se cruzavam com ele não conseguiam deixar de deitar um segundo olhar, assim que o tinham pelas costas. Pelo seu rosto de tez morena e de barba rala, via-se que era ainda um jovem na casa do vinte e poucos anos.
Foi olhando com curiosidade os edifícios de vários tamanhos que ladeavam a rua que ligava Viana do Castelo ao Porto. Na passagem pelo terreiro arborizado de uma feira, onde dezenas de tendas e barracos e carroças, mais ou menos alinhados, aguardavam o dia seguinte, viu que alguns comerciantes afadigavam-se ainda a terminar a montagem dos estabelecimentos.
–    Santas tardes! - Saudou Benedito a um vendedor de tecidos que bufava ao puxar as cordas que prendiam a lona que cobria a carroça.
O homem parou de puxar para olhar o recém chegado, medinodo-o de alto abaixo.
–    Sim? - Perguntou desconfiado. - Que queres, rapaz?
–    Vosmecê precisa de ajuda com a tenda… em troca de umas poucas moedas…
–    Não, não, não! Some-te! Não quero ninguém aqui a rondar! Vai pedir para outro lado! - O homem voltou-lhe as costas.
–    Mas eu não ando a pedir. - Benedito insistiu, ofendido. - Só quero que me dê dinheiro em troca de trabalho.
–    Já te disse que não te quero aqui, “labrosca, chispa”! - O comerciante, bastante encorpado, largou a corda e pegou num varapau ao mesmo tempo que se voltava para ele.
Benedito olhou o homem de alto a baixo, mas não empunhou o seu próprio varapau, embora lhe passasse pela cabeça dar uma ensinadela ao mal educado. Acabou por encolher os ombros e virar-lhe as costas. Decididamente, não tinha sorte com os comerciantes; ou eram estúpidos e malcriados, como este, ou simples ladrões, como outros que bem conhecia…
O estômago roncou de fome e ele tirou uma moeda do bolso, a sua única moeda. Vinte reis, um mísero vintém, toda a sua fortuna! Mirou-a de ambos os lados; não chegava para nada, pouco mais que um litro de vinho, mas para comer que era bom,,. Devolveu-a ao bolso e abandonou o terreiro da feira onde a mistura de cheiros a pão, sardinhas e bacalhau assados começava a ser dolorosa.
Caminhou pela rua, uma enorme reta que se estendia por cerca de meia légua antes de desaparecer numa curva suave. As casas iam sendo menos imponentes à medida que se afastava do largo e as pessoas começavam a ser cada vez menos, apressadas, com a aproximação da hora da ceia. Um pachorrento carro puxado por bois, transportava quatro barulhentos rapazolas que conversavam e riam alto. Mais à frente, outro carro, mais pequeno e puxado por um burro esquálido, transportava cântaros. Um homem, de boina basca e fartas barbas, entregava um dos cântaros numa casa.
–    Compre-me uma sardinha, vizinho! - A voz feminina, trémula, mas estridente, fê-lo estremecer. Uma velha, num corredor estreito entre as casas à sua direita, abanava duas sardinhas pousadas nas brasas. - Só tenho estas duas… - Desculpou-se ela.
Ele olhou a velha, tão maltrapilha como ele e conseguiu divisar ao fundo do corredor as tábuas de um barraco. O cheiro das sardinhas impôs-se através do estômago que roncava.
–    Quanto custa? - Perguntou olhando a velha nos olhos.
–    Dézreis! - Ela salivou ao mesmo tempo que respondeu. - As duas!
–    Vosmecê parece-me que tem fome também… - Ele sorriu.
–    Oh, se tenho meu senhor, mas estou a juntar o dinheiro que posso para pagar ao médico que venha “pori” ver o meu marido. Está doente vai p’ra mais de um mês e não há meio de poder ir trabalhar… já gastamos o pouco que tínhamos aforrado. - O rosto sujo transformou-se numa máscara de dor e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. - Desculpe, senhor, desculpe, leve as sardinhitas, leve. Dê-me lá “désreizitos”.
Pôs a mão ao bolso e olhou, desconsolado, para a moeda de vinte reis. A velha observava-o, com os cabelos prateados e despenteados a saírem do lenço da cabeça. Olhou a velha novamente e perguntou:
–    Tem “praí” uma côdea?
Ela, percebendo pela moeda acobreada que precisava de compensar o valor, revolveu os bolsos do avental sujo e tirou um naco de pão de milho, que exibiu.
–    Tire lá as sardinhas antes que fiquem torresmos e parta esse pão em dois. Ponha uma sardinha em cada. - Comandou ele.
A velha obedeceu em gestos rápidos e, num instante, tinha as duas sardinhas em fatias de pão e estendia a mão vazia, à espera da paga.
Benedito tornou a olhar a moeda com desalento, mas lá a pousou na mão suja da mulher, recebendo em troca os pequenos peixes.
–    Não. - Disse ele. - Dê-me só uma. A outra come-a vosmecê, se calhar precisa mais que eu!
–    Oh, não, meu senhor, não tenho trocado para lhe dar. - A velha recusou com um olhar implorante.
–    Não quero troco! - Explicou o jovem. - Se Deus quiser, lá hei-de arranjar mais umas moedas em qualquer banda. Coma e que lhe saiba bem!
–    Meu senhor! - A mulher não queria acreditar no que ouvia. - Que o bom Deus o cubra de bênçãos! - Ela agarrou a mão dele e tentou beija-la, embora ele a tenha tirado prontamente.
–    Coma, boa senhora, se vosmecê ficar doente também, então ninguém vos pode valer. Coma!
Não se fazendo mais rogada, a mulher “atacou” aquele pequeno consolo para o estômago e, com a boca cheia, prometeu:
–    Não tenho nada, meu senhor, mas o nada que tenho é de vosmecê! Se não encontrar onde dormir, venha aqui! Meu nome é Emerenciana e há-de arranjar-se pelo menos uma enxerga, uma manta e um lugar à lareira, já que a comida não há. Diga-me a sua graça, para saber quem é o meu benfeitor.
–    Obrigado, senhora. Meu nome é Benedito.
Sem mais, ele afastou-se do local, debicando a pequena sardinha, com a ponta dos dedos, para que tardasse a acabar.
Aproximava-se de uma taberna, facilmente reconhecível pelo ramo de loureiro pendurado na porta. Ouviam-se vozes alteradas vindas do interior e, no preciso momento que vai a passar em frente à porta, saiu um vulto “desgovernado”. Chocaram violentamente e rolaram no chão, desamparados. Ato contínuo, saíram da taberna outros dois homens, furiosos, que se atiraram ao que o derrubara. Algumas pessoas assomaram às janelas e portas para apreciarem o “espetáculo”. O próprio taberneiro, um homem gordíssimo, de enormes mãos sapudas,  ficou à porta a assistir, sorrindo e trincando calmamente um palito.
Benedito ergueu-se e olhou incrédulo para toda a assistência. Ninguém “mexia uma palha” para ajudar o desgraçado debaixo de socos e pontapés.
–    EH! - Gritou o jovem, batendo com o varapau numa  lage do chão. - Parem com isso!
Os agressores pararam para o olhar, embora um deles não largasse o pescoço da vítima que continuava no chão. O próprio agredido ficou surpreso.
–    Que queres tu, ò “fraldiqueiro”? - Interrogou o que parecia mais velho, de punhos cerrados. - Não te metas nisto, se não queres que te “moa o canastro”!
–    Pois, coragem não vos falta, dois a bater num… - Benedito desafiou.
–    Querem lá ver o “canalho”… - Com isto, o homem avançou para o rapaz que, num gesto gracioso, rodou o varapau sobre a barriga de uma das pernas do agressor, fazendo-o cair de costas com a cabeça no chão.
–    No lugar de vosmecê, deixava-me ficar “quêdo”! - O jovem avisou, quando o homem se levantou a esfregar a cabeça. - A próxima não vai para as pernas!
O outro agressor bateu com a cabeça da vitima no chão e pôs-se ao lado do companheiro. Benedito agarrou o varapau por uma ponta e pousou a outra extremidade no chão, entre ele e os outros dois, em guarda. O homem mais velho tirou uma faca da cintura e fê-la reluzir ameaçadoramente.
–    Tens a certeza que te queres meter nisto, rapazola? Isto não é da tua conta. - Falou o mais novo exibindo também uma faca.
O agredido, percebendo que a única hipótese era alinhar com o inesperado paladino, correu para junto do jovem e colocou-se a seu lado, empunhando uma pedra. Benedito sorriu-lhe e piscou um olho. O homem, aparentando uns trinta anos, sangrava do nariz e da boca.
Os agressores começaram a afastar-se um do outro, para atacarem simultaneamente dos dois lados, no entanto, o jovem não lhes deu tempo e, no momento seguinte, uma varada estoirou na mão da faca do homem mais velho e outra de imediato na cara do mais novo. Nova varada entre as pernas do primeiro e uma outra nas costas do segundo. Ambos ficaram de joelhos.
–    E agora? - Benedito acenava a ponta do varapau próximo do rosto arroxeado do mais novo. - Alombas com o teu “compincha” e ides “impeçar” a vida para outro lado? Ou tenho que “amandar” mais “barduadas”?
Sem uma palavra, sem sequer levantar os olhos, o mais jovem ajudou o companheiro a erguer-se e começaram a afastar-se. O mais velho tentou ainda apanhar a faca do chão, mas o bordão polido bateu, num aviso, ao lado da arma. O homem deitou um olhar venenoso a Benedito antes de acrescentar para a sua vítima:
–    Isto não fica assim, Tino! “Emos de falar” outra vez, não perdes por esperar!
Os dois meliantes afastam-se, a amparar-se mutuamente, mas toda a audiência se manteve. Era muita a curiosidade por este forasteiro que se desenvencilhara daqueles dois com tanta facilidade.
–    Meu grande amigo! - O chamado Tino estendeu a mão num cumprimento. - Foi o bom Deus que pôs vosmecê no meu caminho! Meu nome é Faustino e, a partir desta hora, um seu criado para sempre!
–    Não podia deixar dois “manhuços” baterem num “home”! - O jovem riu-se, mostrando os dentes grandes, mas certos, enquanto permitia que a sua mão fosse apertada e sacudida com energia. - Chamo-me Benedito.
–    Um homem honrado e corajoso, ao contrário deste bando de badamecos! - Faustino abarcou, num gesto amplo a audiência, expectante. - Ainda há gente boa neste mundo sem Deus!
Vários insultos, em voz mais ou menos alta, acompanharam o bater de portas e janelas da assistência que se cansara de repente do espetáculo.
–    É por isso que depois “comes nas ventas”! - Sentenciou a voz forte e arranhada de bagaço do taberneiro.
–    Também tu, João! - Faustino acusou, voltando-se para o taberneiro. - Não fizeste nada para me ajudar, bandalho!
–    Olha lá…! - Admoestou o visado. - Não sei o que fizeste àqueles dois… coisa boa não foi! De resto, o que me interessa é que não “esborracem” as mobílias cá dentro. - E com esta declaração regressou ao estabelecimento.
–    Este pedaço de asno… - Faustino desabafou, incrédulo, para Benedito. - Que posso fazer pelo meu amigo? Posso pagar um copo da zurrapa que o João chama vinho? É o mínimo que posso fazer!
–    Obrigado, mas não há nada a pagar! - O jovem fez um sorriso desconsolado ao ver, a pequena sardinha e o pão esborrachados no chão. - Pena foi a minha ceia…
–    Oh meu bom amigo! - Faustino seguiu o olhar do seu salvador e exibiu um largo sorriso com os dentes ensanguentados. - Ninguém poderá dizer que eu não reconheço os amigos! Venha comigo, vamos aqui merendar alguma coisa. Por favor, é um gosto que me faz!
Embora hesitante, o jovem deixou-se empurrar para o interior da taberna pelo outro, que antes de entrar recolheu as duas facas abandonadas no chão.
O estabelecimento, se assim se podia chamar, não passava de uma divisão de paredes escuras, sem janelas, com duas mesas de bancos corridos e um balcão sebento atrás do qual se escudava a figura enorme do João taberneiro. A única luz, era proveniente das portas, uma de cada lado e quatro velas num candelabro metálico de cor indefinida. O cheiro a vinho e fritos enchia todo o ambiente.
–    João! - Ordenou Faustino com importância. - “Traze daí” meia dúzia daquelas coisas a que chamas iscas de bacalhau sem vergonha nenhuma. E bota cá um caneco do teu tinto “augado”. Este meu amigo tem que ter uma ceia de digna de um rei.
–    Está-me cá a parecer que as pancadas fizeram-te mal à mioleira. Não te chegaram as que “comeste” já e tás a pedir que te ponha lá fora com um chuto nos fundilhos? - Rosnou o taberneiro antes de gritar para a porta das traseiras. - Piedade! “Traze-me” cá um prato de iscas!
Com isto, o enorme homem tirou uma caneca de madeira debaixo do balcão e desapareceu pela porta das traseiras. Pelo mesmo sitio, surgiu uma jovem de cabelos compridos escuros transportando um prato de iscas.
–    Vou “verter águas”. - Anunciou Faustino levantando-se e dirigindo-se também para as traseiras. - Vá comendo! Força!.
A rapariga aproximou-se da mesa e pousou dois canecos de barro e um prato de madeira com seis “patelas” de massa frita.
–    Você foi muito valente! - A jovem voltou os olhos castanhos e brilhantes para o sorridente Benedito, enquanto a sua voz melodiosa formulava o aviso. - Aqueles homens são gente rija… e perigosos. Trabalham na casa dos leões, tenha cuidado com eles.
–    Piedade! - Gritou o taberneiro regressado ao estabelecimento. - Chispa daqui! Já te disse que não te quero de volta dos clientes!
Tão depressa como apareceu, assim desapareceu a rapariga sem dar tempo a qualquer resposta. João bateu com força, com a caneca de barro vermelho, no tampo da mesa, fazendo saltar vários respingos de vinho enquanto fitava o jovem com ar zangado.
–    Eh João, deixa o rapaz! - Pediu Faustino ao reocupar o seu lugar à mesa. - Não vês que ele é novo aqui?
–    Pois é novo, é! - O homem continuava a fita-lo ameaçadoramente. - Com varapau ou não, eu que o veja a rondar a minha filha, que lhe parto as pernas.
–    Eu não fiz nada! Não sei porque está “praí assim inraivado”. - Exclamou Benedito, sem se deixar intimidar.
João voltou-lhes as costas e afastou-se, bufando, para trás do balcão.
–    Cuidado com o João “chebola” no que toca à filha. - Segredou Faustino. - A mulher fugiu-lhe há uns anos e deixou-o com ela. Já deu aí umas tareias por causa de se meterem com a cachopa.
–    Que estais aí a “cuscar”? - Tornou o vozeirão. - Comam e bebam, paguem e chispem daqui!
–    Queres uma das facas daqueles paspalhos? - Ignorando o taberneiro, Faustino pôs as facas em cima da mesa, enquanto pegava numa das iscas e a mordia com vontade.
–    Não. Acho que não. - Benedito recusou, depois de pegar numa delas e a pousar outra vez. - Não gosto de facas. Já não é a primeira vez que vêm para mim com elas e acabam sempre com a cabeça partida. Por maiores que sejam! - Com esta afirmação, espreitou para o balcão sobre a cabeça do companheiro. João continuava a olha-los ameaçadoramente.
–    E tu, João? Quanto me dás pelas facas? - Faustino voltou-se para trás.
–    Eu bem digo que as pancadas te fizeram mal. Achas que te ficava com essa bosta? Não quero problemas com aqueles dois! Tu não és boa rês, mas aqueles, não sei se não serão pior. Aí o teu amigo “montês” que se cuide. - Respondeu o visado.
–    Montês? - Resmungou Benedito com a boca cheia da terceira isca.
–    Sim, montês! Ou julgas que não conheço o falar dos do lado de lá dos montes? - João mostrou os dentes amarelos num riso que mais parecia um esgar. - Ou vais dizer que não és “praí” de Vila Real ou assim?
–    Ou assim! - Confirmou ironicamente depois de engolir de um trago um caneco de vinho e antes de atacar nova isca.
–    És montanhês? Ena! - Exclamou Faustino olhando o rapaz e fitando depois o prato quase vazio. - Credo, em cruz, homem, que estás cá com uma “larica”…
Piedade entrou com uma vassoura de palha e começou a varrer o chão em volta do pai e alargando-se para fora do balcão lenta e disfarçadamente.
–    Já saí da terra há quase um ano. - Benedito explicou depois de novo copo. - Tenho andado a trabalhar aqui e além para ganhar uns cobres. Quero ir para o Porto!
–    Oras. - Faustino fez uma expressão de desprezo. - Que queres lá ir tu “cheirar”?
–    Vou arranjar um trabalho para ganhar algum e ver se tenho uma vida com menos maus tratos e mais dinheiro! - A última isca desapareceu do prato, e do mundo, em três trincadelas.
–    Vais para o Porto arranjar menos maus tratos e mais dinheiro? - João soltou uma gargalhada. - Mais depressa vais parar a uma valeta morto de fome ou por uma facada de outro ainda mais miserável que tu!
–    Morto de fome já eu ando! - Lambeu os dedos e bebeu outro copo. - “Inda” juntei uns “guitos” durante a viagem, mas ali em Penafiel, trabalhei umas semanas para um correeiro em troca de uns cobres e um desconto numas botas. O “moncoso”, filho de uma p** “rodelheira”, assim que se viu servido, recebeu o dinheiro das botas e expulsou-me de lá debaixo de pau. Dele e dos filhos.
–    Eu não disse?!? - O taberneiro riu-se.
–    E não vingaste a afronta? - Faustino mostrou-se zangado.
–    Como podia? Fui fazer queixa ao regedor e ele disse-me que fosse embora, que os estranhos não eram bem-vindos por ali. Se continuasse, punha-me nos calabouços!
–    Filho de uma égua! - João continuava a rir-se apesar de revoltado. - Os cabrões dos regedores são todos iguais! Deixa-te ficar por cá rapaz. Amanhã é feira grande aí, no Souto. Arranjas trabalho por lá de certeza!
–    Já estive lá. Falei com um tendeiro e ele foi uma boa besta!
–    Os tendeiros? Claro que são umas bestas… e os taberneiros, então? - Faustino soltou uma risada.
–    Bem, rapaz, ouve o meu conselho! - Disse João, ignorando a provocação. - Não dou muitos, por isso até devias pagar por ele; amanhã é a “feira dos moços” e estão por aí os capatazes e os patrões das quintas daqui da região atrás de moços para trabalhar. Podes arranjar-te por aí! Se fores bom trabalhador, podes ter futuro e escapar de ser um pedinte a vida toda, ou um “bardamerda” como esse que tens aí ao pé.
–    É isso que queres fazer da vida? - Perguntou Faustino. - Cavar, vindimar e chafurdar na m** das vacas? Vem comigo que eu vou fazer-te uma proposta.
Piedade, que já tinha dado duas voltas a varrer o mesmo espaço, estava agora por trás de Faustino e, de olhos esbugalhados, acenou negativamente de forma rápida e o mais disfarçada que conseguiu. Benedito olhou curiosamente para ela e depois para o seu companheiro.
–    E agora, deixem aí cinquenta reis e ponham-se a andar! - João ordenou. - Vou ver se como alguma coisa também eu. Piedade! Já “pra” dentro!
–    Meio tostão?!? Queres ganha-lo todo num dia,  judeu? Arre… - Gemeu Faustino erguendo-se e pondo as moedas na mesa.
–    Arre tu, sua alimária! Chispem daqui, antes que vos encha o lombo de pauladas!
Benedito foi o primeiro a sair. Faustino e João trocavam imprecações bem dispostas dentro da taberna. Ele ouviu que o chamavam de uma pequena grade rente ao chão. Reconheceu o rosto de Piedade.
–    Que me queres rapariga? - Perguntou ele olhando de soslaio para a porta. - Queres arranjar-me algum “refustedo” com o teu pai?
–    Não! - Sussurrou ela da pequena janela da cave da casa. - É só para te avisar, não confies nesse Faustino! Ele é um bandido!
–    Bandido?
–    Sim, é assaltante! Tem um bando! Tenho que ir! Se o meu pai me “pilha” aqui… - E com isto desapareceu no escuro.
O jovem ergueu-se no preciso momento em que o companheiro passava a porta e ele pôs-se a olhar o céu, distraidamente. A luz do dia principiava a esmorecer, mas  o céu vermelho dizia-lhe que amanhã teriam outro dia de muito calor.
–    Meu caro amigo Benedito. - Faustino pôs-lhe uma mão nas costas. - Agora vamos conversar sobre o seu futuro.
Embora desconfiado, o jovem deixou-se guiar pela rua enquanto o companheiro expunha os perigos da cidade, as dificuldades em arranjar trabalho e a vida dura e sem futuro que era a de “moço de lavoura”.
Abandonaram a rua principal por uma pequena viela que terminava num muro derrubado. Sem hesitar, Faustino saltou sobre as pedras e desembocou numa área livre de casas. Caminhou pelo trilho calcado na erva alta que conduzia a um grupo de edifícios em ruínas. Fez-lhe sinal que o seguisse.
Entraram no que restava de um palheiro. O telhado ainda segurava a maior parte da chuva, se a houvesse e o chão estava atapetado por palha amarela e bem seca. Ao fundo havia grande quantidade de fardos ainda intactos.
–    Acho que não tens onde dormir esta noite, pois não? - Perguntou Faustino, abrindo os braços para lhe mostrar toda a envolvente. - Queres melhor estalagem? E de graça?
–    É aqui que vives?
–    Por agora, sim. Quando me “carregar”, mudo de poiso. - Exibiu a dentadura onde se notavam algumas cáries.
–    Então… se não trabalhas… onde arranjas o dinheiro? - Benedito fez a pergunta fulcral.
–    Primeiro vou apresentar-te os meus amigos. - A estas palavras, dois homens saíram detrás dos fardos de palha. Um, tão alto como  Benedito, embora mais gordo e outro um pouco mais baixo e magro, de cabelos loiros e barbicha fina. - Aquela bisarma que ali está, é o Zé Racha-fragas, é um às no varapau, como tu, e o outro, é o Manel Setepilas. - Com este epíteto soltou uma gargalhada. - Se tens irmã, mulher ou mãe por perto, cuida-te! Aqui o Manel não lhe escapa uma!
–    Quem é a visita? - Quis saber a voz forte do Zé.
–    É o meu novo amigo; Benedito, o Montês! - Apresentou Faustino.
–    Montês? -  Manel riu-se. - Como as cabras?
–    Não, como os montanheses! - Faustino apertou o braço a Benedito ao ver a expressão de desagrado dele. - Este homem salvou-me de uma boa “malha” hoje. Haviam de o ver a usar o varapau! Pôs o João Maltês e o Chico Viana em respeito e mandou-os embora com o rabo entre as pernas. O Chico ficou com uma boa “roxa” nas ventas e o Maltês… bem. a Rita vai sentir-lhe a falta hoje. - Soltou uma sonora gargalhada. - E tudo, porque vocês, suas bestas, não vieram à tasca do “Chebola”.
–    Fizeram-te uma espera? - Quis saber Zé. - Eu disse-te que temos que apertar o gasganete àqueles dois. Ou tratar-lhes da saúde de uma vez por todas!
–    Bem! - Atalhou Faustino. - Já não interessa! Veremos o caso deles noutro dia. Agora, eu trouxe o nosso novo amigo para dormir aqui, que não tem onde ficar esta noite.
Os outros dois olharam-se, duvidosos.
A noite estava quente. Faustino veio, para longe da palha, fumar um cigarro à porta do palheiro. O roncar ritmado dos companheiros acompanhou-o. Benedito estava cá fora, deitado numas pedras, a olhar a lua pálida que iluminava como dia. Aproximou-se do jovem enquanto enrolava o tabaco na mortalha. Ofereceu-lho, mas ele recusou. Colocou-o na boca e acendeu-o tirando uma longa e fumacenta passa.
–    A pensar na vida? - Sorriu-lhe numa baforada.
–    Sim! A pensar no que fiz dela. Deixei os meus pais e os meus irmãos, porque estava cansado de trabalhar como um galego. O meu pai só queria trabalho, ou a resposta era o coiro do cinto. Trabalhávamos de sol a sol na serração, ou perdidos nos montes a pastar as cabras, a mungi-las, a ir de porta em porta a vender o leite.
–    Vida dura…
–    Sim, é certo, mas nunca passei fome na vida… até ao dia em que saí de casa. Desde então, trabalho na mesma como um galego e ainda me roubam o pouco que ganho. Até os ciganos têm melhor vida…
–    Era por isso que estava a pensar em falar contigo…
–    … a tal proposta. - Benedito sentou-se de frente para ele.
Faustino ocupou um dos lados da pedra mas não enfrentou o olhar do companheiro. Ficou a olhar a lua a expelir fumo lentamente.
–    Sim, a proposta. Já reparaste que, apesar do desprezo que tenho pelo trabalho, tenho dinheiro? Algum, pelo menos?
–    Mas todas as pessoas honradas têm de trabalhar. - Benedito soou ácido.
–    Não é desprezo pelo trabalho, também eu já fui assalariado, é pelas pessoas para quem se trabalha. Pelos malditos que sugam o nosso suor! Tratam-nos como escravos e o pouco que pagam, acham sempre que é demais. Mas os comerciantes, esses são os piores! Sanguessugas que vão chupar todos os tostões e vinténs que conseguires ganhar. No fim, dão-te um chuto nos fundilhos e chamam-te miserável.
–    Por isso – Abreviou Benedito. - não trabalhas. Mas “quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem”. Como ganhas a vida então?
–    Fazendo aquilo que nos fazem a nós, sempre que podem. Vamos atrás dos tendeiros que circulam entre as feiras e “aliviamo-los” um pouco da sua carga.
Ficaram ambos calados. Um morcego voava repetidamente à volta do telhado do palheiro, o grilar de dezenas de grilos ecoava na noite sublinhando o silêncio dos dois.
–    És um salteador! - Concluiu o jovem.
–    Sim, pelo menos durante algum tempo… até ganhar o suficiente para ter uma vida melhor.
–    Vives num palheiro em ruínas.
–    Será apenas mais algum tempo. Já tenho uma boa maquia guardada, em breve posso deixar-me desta vida e arranjar mulher e casa!
–    A tua proposta é essa? Uma vida de salteador?
–    Pensa assim; agora não tens um vintém… ofereço-te maneira de amanhã à noite teres quinhentos, quem sabe, mil reis!
–    Mil reis! - Benedito escandalizou-se. - Quem tem esse dinheiro?
–    Para teres esse dinheiro, só terias que nos acompanhar amanhã, depois da feira. Ficarás  sem fala com os sacos de moedas de cobre e prata que alguns tendeiros trazem com eles.
Benedito tornou a ficar em silêncio a perguntar à lua, se era esse o seu destino. Se o seu futuro estava embuçado numa esquina sombria à espera de um almocreve incauto. Ergueu-se e olhou uma vez mais para Faustino, de cima para baixo.
–    É uma decisão muito complicada para se tomar assim. Graças a ti, tenho o estômago forrado como já não tinha há uns dias. Estou-te muito agradecido, mas não tenho a certeza de ser essa a vida que quero. Ainda que por pouco tempo. Além do trabalho e das porradas, os meus pais ensinaram-me uma honradez muito diferente dessa que aí me falas. Vou descansar um pouco enquanto penso.
–    Também eu estou agradecido pelo que fizeste por mim. Apesar de só nos conhecermos hoje, já consigo perceber que és um homem leal, capaz de dar a vida por um amigo. Por isso te falei desta maneira tão sincera e estou disposto a dividir contigo os frutos que colhermos. Vai dormir, sim, vamos ambos dormir!
Faustino ofereceu-lhe um sorriso triste, antes que ele se voltasse e desaparecesse no escuro do palheiro.
No outro dia de manhã, o sol estava alto quando Benedito se levantou da sua cama de palhas e veio ao exterior lavar a cara num pipo destapado onde caía a água das chuvas. Faustino estava sentado na mesma pedra onde estivera ontem. Poderia dizer-se que passara toda a noite ali.
–    Santa manhã! - Benedito cumprimentou o pensativo companheiro.
–    Bom dia. - Respondeu o outro de forma arrastada.
–    Onde estão os outros?
–    Na feira! Foram logo que nasceu o sol. Antes do dia findar, já o Racha-fragas bebeu umas canecas, partiu outras tantas… algumas na cabeça dos que não se conseguiram esquivar. E o Manel Setepilas também já fez jus ao seu nome com a filha de algum feirante e se calhar com a mulher também. - Fez um sorriso pensativo. - E tu? Vais à feira, também?
–    Sim, vou...
–    … e vais voltar?
–    Não, acho que não. - Benedito olhou Faustino nos olhos. - Agradeço a tua oferta, sinto-me honrado com a tua confiança!
–    Enfim. Se mudares de ideias, sabes onde me encontras. Pega para ti! - Estendeu a mão com três moedas de cem reis. - Não vais à feira sem dinheiro!
–    Porque me dás isso? Não fiz nada por ti, a ajuda, já a pagaste na taberna, foste meu amigo e deixaste-me dormir aqui, em segurança.
–    É por isso mesmo! Por amizade. Sinto que nos conhecemos há muitos anos. E tenho muito prazer em ajudar um amigo, por isso, se te faz feliz, considera-o um empréstimo. Para ganhares esses três tostões numa quinta, precisas “praí” de três dias. Se um dia estiveres a viver bem, podes tornar-me o dinheiro.
Benedito hesitou ainda um pouco, mas acabou por estender a mão e aceitar as três moedas de prata.
Regressou à rua principal e dirigiu-se ao largo onde estivera no dia anterior. Centenas de pessoas caminhavam em ambos os sentidos, roupas novas, ou pouco remendadas, sapatos novos ou socos polidos, via-se bem que era dia de feira! Qualquer um ali, mesmo o mais maltrapilho, estava mais bem vestido que ele. Até as lavadeiras, descalças e com as enormes trouxas de roupa à cabeça, vestiam limpo. Mas agora, com trezentos reis, talvez conseguisse comprar uma roupita melhor.
Caminhou decidido, evitando os dejetos dos bois e dos cavalos que pejavam o chão. Era normal, com o tráfego de cavalos e carros de bois que havia por ali… percebia que já estava bem próximo de uma grande cidade. 
Ao passar na viela da Emerenciana, viu um homem extremamente magro, apoiado num pau, a subir com dificuldade o pequeno degrau da entrada. Observou-o enquanto ele tossia fracamente, sem forças. Engoliu em seco e aproximou-se do homem quando ele recuperava o fôlego.
–    Santa manhã. - Saudou.
–    Santa manhã para vosmecê também. - O velho respondeu apoiando-se na parede.
–    Por acaso vosmecê não será o “home” da senhora Emerenciana?
–    Sim, sou eu. E que lhe quer? Ela está para a feira, a ver se vende uns “ovitos”.
–    Não preciso de falar com ela. - O jovem meteu a mão ao bolso e exibiu um dos tostões de prata. - É para entregar à sua senhora, diga-lhe por favor que os negócios correram bem ao Benedito.
–    Este dinheiro é para ela?!? - A mão do homem tremia ao receber a moeda. - Cem reis?!?
–    Sim senhor! E diga-lhe que a sardinha estava muito boa! Obrigado e as melhoras!
Rejuvenescido, o jovem caminhou a passos largos para a feira, debaixo do olhar incrédulo do velho. Este não conseguia perceber que negócio aquele maltrapilho podia ter com a sua mulher, que rendesse tal dinheiro. Por seu lado, Benedito gostava de poder ajudar mais aquela gente… mas a sua “riqueza” temporária não o permitia.
Passeou pela feira, apreciou as loiças, às centenas, expostas em humildes prateleiras de madeira, ou simplesmente pousadas no chão sobre palha. Viu as frutas, as hortaliças, os peixes, as carnes salgadas ou fumadas, tanta variedade, tanta fartura, o dinheiro que a maior parte das pessoas podia dispor é que era pouco. Escondeu-se, assim que viu Emerenciana com um cesto de ovos debaixo do braço, a sua modéstia não lhe permitia ir vangloriar-se do seu feito.
Chegou às tendas das roupas e estava a apreciar um fato preto, com chapéu braguês de feltro, quando ouviu ralhar uma voz conhecida:
–    Foge-me da frente, excomungado! - Gritava a voz de bagaço nasalada. - “Alevanta-me” aí as cordas das selas do chão, antes que te “arrebente” de porradas! Vitório, seu canastrão!
Como podia esquecer a voz do bandido que o roubou em Penafiel? Olhou para a tenda cercada de peças de couro, que iam desde simples cordões para as botas, até elaboradas selas de montar. Botas, botins e sapatos, coletes e casacos… quantas daquelas peças lhe passaram pelas mãos… até aquelas botas pagas e não entregues. Escondeu-se quando viu um dos filhos, o gordo Vitório, a erguer um  barrote onde estavam expostas várias selas. Eram eles, não restavam dúvidas! Acariciou o varapau pensativamente, assim sem contarem, aviava umas varadas em cada um e fugia dali… mas com certeza alguém haveria de o agarrar… ou correr mais do que ele, descalço. Acabaria por “dar com o lombo no calabouço”.
Abandonou a feira a passos largos e regressou ao palheiro arruinado. Faustino sorriu assim que se apercebeu da chegada do amigo.
–    Já de volta? Já gastaste tudo?
–  Vou aceitar a tua proposta! - Anunciou solenemente. - Mas eu é que escolho os cabrões que vão ser roubados hoje!
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