sexta-feira, 28 de abril de 2023

Velhos Inimigos

 


Na Madrugada dos Tempos – Parte 9    

Certamente têm razão aqueles que definem a guerra como estado primitivo e natural. Enquanto o homem for um animal, viverá por meio de luta e à custa dos outros, temerá e odiará o próximo. A vida, portanto, é guerra.

Hermann Hesse

Escritor e pintor alemão

(1877-1962)

 

Todos estavam indignados com a audácia dos homens-macaco, principalmente os estrangeiros pelo assassinato dos dois homens. Aquele grupo, que se mantinha mais ou menos segregado da aldeia, já tinha quase tantos elementos como o próprio clã e, se inicialmente eram olhados com desconfiança, já circulavam livremente entre os demais, fazendo trocas e trabalhando onde era preciso.

Erem convocou um conselho para a semiconstruída casa da reunião, como todos lhe chamavam. As paredes não estavam totalmente erguidas, mas já representavam uma barreira eficaz contra o vento gelado. Os grandes troncos, previamente limpos das cascas, estavam enterrados profundamente à distância de dois homens e o espaço entre eles era diligentemente preenchido com camadas bem equilibradas de pedra. O objetivo era erguer aquelas paredes até ao limite dos troncos onde seriam “fechadas” com travessas de madeira, sobre as quais assentaria o telhado de colmo. Seria uma obra única nas redondezas.

Toda a população da aldeia já representava uma pequena multidão que Altan, o filho mais velho do chefe e Civam, um irmão de Zia tentavam silenciar. Foi, porém, a voz forte de Lemi que conseguiu impor respeito e gradualmente todos se calaram. Erem olhou com satisfação o amigo e tio, embora se sentindo preocupado pelo envelhecimento que este inverno estava a produzir nele.

O chefe subiu a uma pedra para poder olhar para todos e para ser visto. A seu lado esquerdo colocaram-se Zia e Civam e ao direito os seus filhos Altan, Tekin e Asil… uma vez mais Naci primava pela ausência.

— Amigos e vizinhos. — Começou ele à laia de apresentação. — Na noite passada sofremos uma grave afronta; mataram e feriram alguns dos nossos e roubaram e destruíram alimentos que nos irão fazer muita falta. — Um coro de vozes iradas e punhos erguidos ameaçadoramente apoiaram as palavras do chefe que fez um gesto a pedir silêncio. — Não nos bastam já as vezes que atacam os nossos grupos de caça, ou roubam as peças que perseguimos, como agora invadem as nossas próprias casas. — Novas vozes indignadas. — Por muito que me custe, tenho de vos pedir novamente para arriscar a vida pela nossa sobrevivência. Temos de voltar à gruta do nosso inimigo.

— Mas desta vez, temos de acabar o serviço de vez! — Gritou Naci da entrada do edifício. — A nossa covardia colocou-nos nesta situação; morreram alguns de nós no ataque, mas não devíamos ter desistido! Devíamos ter voltado, nem que fosse com todo o nosso clã, nem que morresse metade de nós, mas teríamos acabado com eles de uma vez por todas! — Havia alguns murmúrios de aprovação na audiência. — Em vez disso, andamos a arrastar pedras pelas montanhas e vales.

— O apoio dos deuses é o mais importante! — Gritou Zia, incapaz de se conter, sobrepondo-se ao coro de vários elementos da audiência que também se indignavam pelas palavras heréticas do filho do chefe. — Sem os deuses nada somos! Que podemos nós contra Tarhun[1], quando atroa os céus e destrói grandes árvores ou queima florestas inteiras? Que podemos nós contra Swol que tanto nos traz o suave calor quando a noite deixa de ser maior que o dia, como abrasa o ar e seca os chãos quando o dia é maior que a noite?

— Temos de eliminar a ameaça, sim. — Interveio Erem para conciliar as partes. — Temos de a eliminar de vez, mas agora invocaremos o apoio dos deuses antes de ir. Quero que todos quantos podem lutar se armem e se preparem para a viagem, ficam apenas os velhos, os doentes e as mulheres com crianças. Lemi organizará os grupos e escolherá alguns guerreiros que ficarão com ele a guardar a aldeia. Partiremos amanhã à primeira luz. Não pode ir ninguém ferido, nem doente, lembrem-se que está muito frio e as neves estão altas. Vai ser uma caminhada muito difícil. Quero aqui aproveitar — olhou na direção dos estrangeiros — para pedir a ajuda dos nossos vizinhos, para que nos cedam os guerreiros que puderem para combater esta ameaça.

Destacou-se entre o grupo um homem chamado Tailan, visto pela maioria como o porta-voz. Era dos mais velhos, o rosto alongado e enrugado de muitos sóis, o cabelo comprido preso num rabo de cavalo e a barba mantida curta. Envergava uma camisola de lã escura por baixo de um capote de peles de lobo.

— Apoiaremos de bom grado, grande chefe! — Respondeu ele na sua voz forte e de sotaque carregado. — Mas quero também pedir uma graça, a ti e a todos os que em Barinak[2] nos têm acolhido tão bem; gostaríamos de também poder enterrar os nossos mortos no santuário que estamos a ajudar a construir. Os mortos desta noite… — O homem calou-se à medida que vozes indignadas se faziam ouvir na audiência.

— Esperem! — Mandou Erem. — Acalmem-se, vá! — Insistiu o chefe sobre os descontentes. — Por que o não hão de merecer eles? Não trabalham lá como nós? Não colaboram em todas as atividades do clã como todos os outros? Mesmo nas construções na aldeia, que já não lhes diria respeito? — O descontentamento reduzia-se a alguns resmungos. — Bem sei que são estrangeiros, não são descendentes do grande clã de Birol, mas partilham connosco as dificuldades. Proponho que enterrem os seus mortos no santuário, sim, mas, tal como vivem nos limites da aldeia, os enterramentos serão em volta do círculo e não dentro. O círculo interior fica reservado aos elementos do nosso clã.

Tailan curvou a cabeça em agradecimento, ignorando alguns elementos da audiência que insistiam em manter a discriminação mais acentuada.

— Daqui vamos todos para o santuário — Zia tomou a palavra com autoridade, dando por encerrada a discussão —, sacrificaremos uma cabra e um cabrito. Farei a leitura das entranhas da velha para a aldeia e da nova para o nosso futuro. Invocaremos o favor dos deuses na nossa jornada e, com ajuda deles, desta vez venceremos.

Foi uma grande comunidade que se juntou no santuário onde havia agora cinco monólitos. As condições climatéricas limitavam muito o tempo de trabalho e a pedra com o tamanho necessário e as características exigidas por Zia ou Nehir encontrava-se cada vez mais distante. Por vezes faziam grandes caminhadas para ver um megálito referenciado por um dos caçadores, para chegar à conclusão que não era do material certo, não tinha tamanho ou estava quebrado. Agora optavam por duas equipas chefiadas por uma das mulheres que localizavam as pedras e deixavam lá aqueles que a iriam desbastar para a tornar mais leve e transportável. Só depois se iniciaria o transporte. Tudo tomava mais tempo; encontrar os objetos, a distância e os obstáculos naturais.

Erem, Zia e Nehir compareceram no santuário envergando as vestes e símbolos dos seus altos cargos. Ele trazia a cabeça e a pele de leão, que eram a majestade e o poder sobre os outros e a lança, que representava, ao mesmo tempo, a ferramenta que alimentava o clã e a arma que o defendia. Zia e Nehir envergavam alvos casacos de peles de carneiro que lhes desciam até aos joelhos com as golas e punhos de pele de coelho matizados de branco e cinzento. A mãe estava coroada com o cocar de penas de corvo e pomba cinzenta e a filha com outro de pomba branca, distinguindo os seus estatutos de sacerdotisa/oráculo e o acólito. 

Ainda havia murmúrios descontentes quando Zia executou as mortes rituais junto à fogueira no centro do círculo e invocou os deuses para que vissem o sacrifício que faziam. Aqueles animais eram preciosos e podiam, no espaço de poucas semanas, serem essenciais para evitar a morte pela fome de alguns deles, no entanto, faziam aquela oferenda para que as divindades percebessem que lhes davam mais importância do que à sua própria subsistência.

A noite descia rapidamente sobre o povoado e refletia-se apenas em pequenos espaços deixados entre as nuvens escuras que praticamente cobriam o céu. A luz bruxuleante das chamas projetava a sombra da sacerdotisa nas pedras: um gigante com enormes chifres que parecia querer libertar-se para avançar sobre os crentes. Também o som ressoava de forma impressionante nos monólitos, os que estavam mais perto, sentiam a vibração que deles provinha e as palavras do oráculo ressaltavam e pareciam ficar suspensas no ar. Zia invocava a presença de Swol que não os abandonasse e regressasse rápido com o calor, a caça e as colheitas, de Mensis para que lhes iluminasse a noite e os caçadores não se perdessem no caminho e de Tarhun para que os conduzisse à vitória sobre os inimigos. Enquanto isso, retirava as entranhas dos animais sacrificados para potes de barro que lhe eram estendidos por Nehir.

O chefe do clã colocou-se no meio das duas mulheres e aproximou-se da sacerdotisa para receber a premonição. Nehir marcou-lhe o peito com uma sanguinolenta mão aberta sobre o coração e Zia riscou-lhe o rosto com três dedos sangrentos em cada face antes de lhe segredar o que vira nas entranhas dos animais. Ele olhou-a com profundidade antes de confirmar com um aceno de cabeça que aceitava a previsão que podia ser divulgada ao povo.

Voltaram-se os três de costas para o altar sacrificial, de mãos dadas, os rostos negros e dourados pela luz da fogueira transformados em máscaras divinas, prestes a revelar a vontade dos deuses.

Swol, — gritou Zia, acima dos murmúrios que se silenciaram de imediato —, abraça os seus filhos e recomenda paciência para regressar em força e abundância. Mensis, diz; as noites serão calmas e, embora as nuvens de neve por vezes ensombrem os céus, ela estará lá para velar por nós. Tarhun dá-nos a sua bênção para levar a vingança aos nossos inimigos. A luta será difícil, mas o nosso clã prevalecerá!

Gritos de alegria e vitória ecoaram entre os crentes que se felicitavam mutuamente por tão auspicioso augúrio. Mas logo Zia tornou a erguer as mãos para impor o silêncio.

— Amanhã será um dia muito comprido e difícil. — Anunciou ela assim que todos se calaram, erguendo um dos potes de barro utilizados na cerimónia. — Aqui estão o sangue da cabra e do cabrito; o velho e o novo misturados e inseparáveis, como sempre deve ser.  — Com um ramo de oliveira aspergiu pingos carmins sobre os crentes. — Todos devem molhar as mãos nele e marcar as faces com três dedos, que dá a força de três homens e as roupas com a mão aberta que dá a coragem do nosso povo. Depois vamos descansar nos braços de Mensis e acordaremos ao som das cornetas de Tarhun.



[1] Deus do trovão, da caça e da guerra

[2] Santuário

8 - O Mundo Pula e Avança
Parte 8 – O Mundo Pula e Avança

10 - Olho por Olho
Parte 10 – Olho por Olho

Na Madrugada dos Tempos
Introdução – Na Madrugada dos Tempos

 

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sábado, 1 de abril de 2023

O Dia d’Os Hóspedes

Capa do livro “Os Meus Hóspedes”
de Fernando Ventura Morgado
 
Foi no passado dia 1 de abril, sim, é verdade, no dia das mentiras, que fui assistir à apresentação do livro "Os Meus Hóspedes" do meu grande amigo Fernando Ventura Morgado e mais uma produção das Produções Debaixo dos Céus.
A capa, com o design da produtora, usufruiu de uma das belas fotografias tiradas pela companheira e musa inspiradora do nosso escritor, a doce Fernanda Morgado.
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Fernanda Morgado
O evento aconteceu na bonita Vila de Alijó que, para quem não sabe, fica no extremo nordeste do distrito de Vila Real e grande parte do seu território está dentro da Região Demarcada do Douro,  além de ser berço do célebre Moscatel de Favaios, produzido  principalmente na freguesia que lhe empresta o nome.
 
O Homem do Douro

A estátua do Homem do Douro numa montagem extraída do Facebook do município

E que foi o meu amigo Morgado, um miragaiense, tripeiro dos quatro costados, fazer para o “Reino Maravilhoso”, distrito natal do grande e saudoso Miguel Torga? É fácil; como homem de paixões que é, apaixonou-se pela região e não mais parou sem conhecer melhor aquela terra e escrever sobre ela e as suas gentes. Fez lá vários amigos, claro, há alguém que consiga resistir ao sorriso, humildade e entusiasmo do Fernando Ventura Morgado? Como poderia ser de outra forma? Também os portuenses são homens do Douro, dos seus limites pois sim, daquele local onde o majestoso rio se liberta de paredes abruptas e dos montes rochosos e vai conhecer o mar. São portanto durienses também, os habitantes da Invicta, filhos e netos dos outros, daqueles que como o rio, um dia desaguaram para a última cidade antes do mar. Esse rio que lhes corre nas veias, como se sangue fosse, é um laço de irmandade que faz com que se reconheçam e se sintam irmãos.
Foi assim que o “duriense da foz” retornou às origens dos seus antepassados, “durienses transmontanos” para escrever mais um romance de amor, onde consta que um tal de Blamy e uma Joana se conheceram e se relacionaram tendo como pano de fundo a magnífica paisagem transmontana. Não foram sequer esquecidos os cheiros e os sabores das uvas e dos néctares que aqui se produzem. Para saberem mais do que isto terão de ler este excelente romance... talvez depois disso também desejem ir conhecer Casal de Loivos, onde parte da ação decorre.
Mas o que me traz aqui é a apresentação que aconteceu no passado dia um, onde o Fernando Morgado apresentou à sociedade a sua mais recente criação.
“Os Meus Hóspedes” tiveram o apoio da Câmara Municipal, representada nas pessoas da Vereadora da Cultura a Dra. Mafalda Mendes e a diretora da biblioteca, Dra. Otília Magalhães, que muito amavelmente cedeu as elegantes instalações da Biblioteca Municipal.
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Da esquerda para a direita:
Otília Magalhães, Fernando Morgado, Mafalda Mendes
 
Depois de uma pequena abordagem ao livro e à obra de Fernando Morgado por parte da revisora e amiga, Suzete Fraga, autora do livro “Almas Feridas” (Euedito/Sui Generis 2016), houve direito a uma impressionante leitura de um pequeno excerto do livro por Ana Cristina que, além de funcionária da biblioteca é Monitora de Expressão Dramática e dinamizadora da cultura popular.

 

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Suzete Fraga

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Ana Cristina
 
 
Foi também uma oportunidade para se juntarem, quase de surpresa, os fundadores do grupo de escritores Pentautores do qual o nosso Fernando Morgado é praticamente um membro honorário por direito próprio. Este grupo já produziu várias obras conjuntas de contos, como “Heranças”, “Histórias da Chuva e do Vento” ou “Deusas, Fadas e Bruxas”, entre outras.
Logotipo

Os Pentautores

Clique nas imagens para saber mais sobre eles

Suzete Fraga

Suzete Fraga

Carlos Arinto

Carlos Arinto

Manuel Amaro Mendonça

Manuel Amaro Mendonça

JorgeSantos

Jorge Santos

Toda a sessão decorreu de forma mais ou menos espontânea e informal, enquanto o autor descreveu as suas “aventuras” em terras de Alijó e dos muitos amigos que fez, com especial referência ao senhor Albano Pereira, de Casal de Loivos, ex-autarca dessa freguesia e do Pinhão, a quem atribui grande mérito na produção deste romance e ao senhor Faustino e a esposa Leonilde, proprietários da Quinta do Jalloto, em Casal de Loivos, a quem teceu rasgados elogios de hospitalidade e simpatia.
Numa sala bem composta, a apresentação acabou por derivar nos problemas que afligem o mundo das letras, numa enorme revolução motivada pelos meios eletrónicos e nas novas gerações, no seu desinteresse pelos livros e pela escrita, completamente rendidos aos telemóveis, tablets e computadores.
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No fim houve livros e autógrafos para quem quis, além de um pequeno lanche fornecido pela Câmara Municipal, onde não podia faltar o incontornável Moscatel de Favaios.
 
Livros

 

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Foi um dia maravilhoso e enriquecedor que tenho a certeza agradou a todos quantos nele participaram e, com toda a propriedade, encheu o Fernando Morgado de orgulho.
Um dia a reter na memória e a inscrever na carreira deste “jovem” escritor.

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Veja o vídeo de apresentação no Youtube:

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Fotos: 

  • Fernanda Morgado
  • Jorge Santos
  • Manuel Amaro Mendonça

Imagens várias retiradas do sítio do Município de Alijó

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