quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

A Última Habitante de Vale Santeiro

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




Faustina acordou com um estremeção. O quarto onde se encontrava estava na penumbra; ainda a noite ia alta. Quase não se conseguia mexer, com a enormidade de mantas que tinha em cima de si, mas, cada vez que acordava, sentia o frio que lhe mordia o corpo. Teve sede e, com dificuldade arrastou os 92 anos que lhe pesavam nos ossos e desceu da cama alta, para as alpercatas que a esperavam no chão de soalho.

Era uma mulher magra e engelhada, envergando a camisa de dormir puída, mas grossa, sobre umas calças de pijama azuis, já coçadas. A cabeleira alva caía-lhe sobre as costas, confundindo-se com a camisa. Embrulhou os ombros com uma das mantas, que levantou com esforço.

Tateou a parede junto à cabeceira da cama de ferro para pegar o pau que lhe servia de bengala. Não acendeu a vela no criado-mudo e serviu-se da escassa luminosidade que chegava da cozinha, para ver o caminho. Arrastou-se, mais do que caminhou, pela porta estreita, contrariando as fortes tonturas que a atormentavam.

A espaçosa divisão tinha mais luz que o quarto; escoava-se pelas aberturas das enormes telhas de ardósia que se divisavam acima do travejamento despido do teto e pelas generosas frestas da porta da habitação. Uma robusta mesa de madeira maciça e alguns bancos, ocupavam um dos lados, onde sobressaía um imponente escano, vestígios dos tempos em que aquela era uma casa cheia. No lar[1], brilhavam algumas brasas envergonhadas, vascas da fogueira do dia anterior. O vento assobiava pelas frestas e a velha cortina que tapava a única janela, oscilava com a corrente de ar.

Apertando a manta em volta do pescoço e sempre tremendo de frio, Faustina contraiu o rosto enrugado ao beber a água gelada do púcaro de alumínio. Uma coluna de vapor soltou-se do seu hálito.

Hesitante, caminhou até à porta e abriu a metade superior, sendo brindada com vários flocos de neve que esvoaçaram para dentro.
As escadas e a rua da aldeia, eram um tapete branco. As casas em frente estavam decoradas com alvos mantos, nas estruturas destelhadas e derruídas e as janelas eram negros olhos que a fitavam, inertes. O silêncio absoluto só era perturbado pelo tilintar dos vários espanta-espíritos, pendurados na borda do telhado e pelo vento e o sussurrar permanente dos pinhais em volta. Para além das casas, distorcido pelos farrapos de algodão esvoaçante, o imponente Marão velava sobre o casario e a paisagem, numa vigília que começara no princípio dos tempos.

Tremendo descontroladamente, a comprimir as gengivas, quase desdentadas, para que não batam, cerrou a porta e apressou-se a regressar à cama.

Uma cabrita baliu na loja[2], sentindo o caminhar da proprietária.

Encolheu-se de novo debaixo da montanha de roupas e apertou, o mais que pode, os joelhos esquálidos contra o peito, enquanto se agitava em tremores. Sentia o bafo fervente nas mãos, contrastando com o frio que sentia. Estava doente!

Tossiu convulsivamente. Não se recordava a última vez que esteve doente, mas já começara a suspeitar com o frio que sentia e as tonturas que a assombravam há vários dias. Se pensasse bem, também já vinha a notar fraqueza e falta de apetite há mais de uma semana e nestes últimos três dias, piorara a olhos vistos. Tossiu novamente, terminando com vómitos e os olhos cheios de lágrimas… vomitar o quê, se há dois dias que estava só a água?

Se calhar devia ter aceite a oferta do jovem caçador, que ali passara antes do nevão, para a levar à vila, ao médico. Sorriu de si para si, enquanto se encolhia mais para baixo dos lençóis gelados. Os caçadores eram uma boa companhia, apareciam, conversavam um pouco, dividiam a merenda com ela ou comiam um pouco do pouco que ela por lá tinha e havia sempre uma garrafita de vinho, um bocado de presunto, ou salpicão para dividir com eles, trazidos pelo bom senhor Fonseca. O carteiro, agora reformado, nunca deixou de a visitar, mesmo depois de já não ter obrigação de trazer cartas, porque ao fim e ao cabo, já nem carteiro lá ia. Era uma excelente pessoa e trazia-lhe os bens essenciais, pagos com os dinheiritos que fazia a vender uns ovos, frangos e um ou outro cabrito aos caçadores ou caminheiros que por ali passavam.

Contentava-se com pouco, não precisava de muito dinheiro. Mesmo o vinho durava-lhe muito tempo, não bebia todos os dias e a carne, comia pouca, eram mais os legumezitos que conseguia arrancar da horta nas traseiras, mais ou menos abrigada dos frios da serra. Estes dias, porém, não conseguira sequer levar as cabritas, nem dar de comer às galinhas. "Pobrezinhas, devem estar a estranhar não me verem." Uma lágrima correu do canto do olho.

Também a GNR a visitava, de tempos em tempos e trazia as coisas que ela pedia, na ronda seguinte. Normalmente o cabo Gonçalves, de poucas falas, mas bom rapaz e a guarda Salomé, uma menina muito querida, que a tratava por avó Tina, vinham bater-lhe à porta e perguntar se estava tudo bem. Eram as únicas quebras de rotina naquele mundo perdido na serra e esquecido por Deus… e pelo Diabo.

O rosto iluminou-se-lhe com a recordação da aldeia cheia de gente, na sua infância e juventude. Parecia que ainda se estava a ver, cântaro na mão, com o vestido aos quadrados, que já fora da sua irmã, a correr descalça pelo empedrado da rua, até à fonte. Ali, pegava-se invariavelmente com a Micas do porqueiro e com a Ana da Chã, mas tinha sempre a ajuda da irmã, a Joaquina e da vizinha Luísa, contra aquelas duas invejosas.

"A querida Luísa… era tão bonita e tão carinhosa. Tive tanta pena quando se casou e foi embora para Angola com o marido. Será que ainda é viva?"

Quando chegava a casa, a mãe gritava com ela porque vinha suja e molhada e o pai, se não estivesse embriagado, defendia-a sempre. Era uma casa cheia, esta mesma casa onde vivia. O pai e a mãe dormiam no quarto, ela e a Joaquina, junto da mesa, mais próximo do lar e os quatro rapazes do outro lado da cozinha. A maior parte das vezes, porém, eles preferiam dormir no palheiro onde ficava o burro, que era mais quente.

E as festas que se faziam naquele povo… havia sempre o "ti" João com o harmónio, o Celestino ferreiro, com a gaita de foles e o "Zé tolinho" com o tambor; faziam uma algazarra tal, que ecoava nos montes, invocando as povoações em redor. O Tino ferreiro era uma estrela, não só ali, como pelos povos em redor. Ficava-se hipnotizado a ouvir as músicas que tocava, algumas de sua autoria. Mas era um maroto: habituado a apertar os foles, estava sempre de mão lampeira para apertar peito macio ou rabo rijo. Uma vez, também ela lhe sentiu o aperto numa festa e só não lhe acertou uma valente "tapona", porque o facínora, treinado que estava nestas andanças, afastou-se rapidamente, com um sorriso traquina. Ao fim e ao cabo, a sensação de ofensa durava pouco, face àquele rosto bem-talhado e sorriso desarmante. Mas com a gaita de foles era um Deus na terra e com os companheiros, punha a dançar o maior pé-de-chumbo. Dançavam-se as modas com alegria e em tais rodopios, que por vezes até caíam no chão empedrado do largo da fonte.

Foi naquela mesma fonte, no meio da aldeia, que percebeu o olhar do António Joaquim, filho do sapateiro de São Miguel das Chãs. Ela sempre se portou com ele como uma potra selvagem, com "coices" e empurrões, cada vez que ele se aproximava, mas como ele não desistia, casaram num tórrido dia do estio do ano de 1946.

A igreja, nome pomposo para a pequena capela no centro do povoado, onde se acotovelaram os vizinhos, nos tempos das famílias de muitos filhos, não passava agora de umas paredes ao alto, despojadas há muito dos objetos de culto. Estava bonita, no dia do seu casamento, todo o templo, caiado de novo, tinha os altares decorados com belas flores silvestres e muitos verdes, colaboração de todas as mulheres da aldeia. Até o chão tinha um belo tapete florido, decorado com motivos geométricos ricamente elaborados. Cheia de vergonha, a cabeça coberta com um lenço branco e o rosto corado, estava simples, mas radiosa. Apesar dos pais não lhe poderem comprar um vestido de tule branca, envergava uma alva camisa, finamente bordada, costurada pela "ti" Rosário, que entrava numa saia cinza claro, comprida, que quase tapava os pequenos sapatos pretos, bem engraxados. A seu lado, um sorridente António Joaquim, de chapéu preto de aba direita, fartos bigodes e fato cinza claro, empinava-se nas botas de couro luzidio e dava-lhe o braço, de forma protetora… como eram jovens, mesmo a mais pobre das indumentárias, era trajo de príncipes. E foi assim que se sentiram durante a cerimónia e no circuito que tiveram de fazer, nos dois povoados, de braço dado, para que todos reconhecessem o novo casal.

Faustina foi viver para as Chãs com os sogros, mas ao fim de três anos os irmãos tinham emigrado para o Brasil, um após outro e o tifo levara-lhe o pai e a irmã. Regressou a Vale Santeiro com o marido e dois filhos, mas um deles morreu naquele mesmo ano, com febres muito altas, o outro também as apanhou e durou apenas mais cento e poucos dias. No mesmo ano de 1951, nasceram os gémeos e batizaram-nos António Luís e António José, exigência do marido.

As colheitas da castanha e da azeitona eram sempre motivo de festa; a aldeia enchia-se de romeiros, que vinham de longe trabalhar à jeira nos soutos ou nos olivais. Eram uma boa desculpa para o endiabrado trio musical se juntar às "orquestras" que acompanhavam aquelas hordas e festejar o fim das colheitas com bailes que iam pela noite dentro, assim o permitissem o frio, a chuva, ou mesmo a neve. Para muitos, aquela mão cheia de castanhas assadas e o púcaro de vinho, eram a única maneira de bastar a fome que lhes atormentava as costelas o resto do ano.

A fome e uma profunda crise, ainda efeitos do terrível conflito mundial que acabara há apenas cinco anos, grassava pela totalidade do país, mas por aqueles lados, sempre se arranjava uma hortaliça, uma batata ou uma côdea de pão. O marido, porque estava insatisfeito com o pouco que ganhava de sapateiro, deixou-se levar pela febre da emigração. O sonho do Brasil levou-o para longe dela, com promessas de a mandar buscar… durante a viagem de barco, levou-o o diabo… só o soube dois meses depois.

A vida nunca lhe sorria verdadeiramente, antes parecia rir de escárnio.

Faustina e a mãe trabalharam juntas nos terrenos que o pai comprara com os dinheiros ganhos no volfrâmio, até a matriarca não poder mais. Era até curioso que o pai tivesse ganho a vida a vender minério para alimentar a guerra na Europa em 1943 e avô tivesse perdido a vida nas trincheiras da Flandres em 1917.

A mãe foi-se já velhinha e sem poder levantar-se da cama. Ainda assistiu à partida dos netos gémeos para França, nos anos setenta, fugidos à guerra colonial… a doença da emigração levava mais dois.

O primeiro ano custou-lhe imenso. Com quarenta e cinco anos, a casa vazia, o trabalho todo para ela. Faltavam-lhe as brincadeiras dos rapazes, até mesmo as vezes que lhes ralhava porque iam para a taberna até tarde. Noutras ocasiões, irritava-se porque riam e falavam alto, na cozinha, a gastar petróleo no candeeiro e sem a deixar dormir. De manhã, acordava-os ainda mais cedo, para os castigar, mas aquelas almas lá se levantavam. Resmungavam, mas obedeciam.

Com o tempo, as memórias deles já não passavam de palavras escritas em missivas curtas, lidas num tom monocórdico pelo senhor Fonseca carteiro. Estavam bem, casaram e tinham filhos, netos que ela só conheceu com cerca de dez anos. Por volta dos anos oitenta… vieram passar umas férias, mas não se demoraram, o objetivo eram as praias do Algarve. Traziam mulheres francesas e os filhos não diziam palavra de português. Não gostaram de ver o Fernando, o irmão do António Joaquim a viver com ela, ainda para mais sem casar. "Que queriam eles?" Pensou franzindo o sobrolho, mas mantendo os olhos cerrados. "Tantos anos sem quererem saber, nunca lhes respondi, senão às primeiras cartas. Nunca aquelas almas vieram saber se estava bem, ou precisava de alguma coisa." Já quando se foram para França "a salto[3]", foi ela quem pagou ao "passador" e deu-lhes as poucas economias que tinha. Ficou em grandes dificuldades, mas mesmo assim, achavam-se no direito de dizer que tinham vergonha pelo falatório que havia na aldeia, por causa dela e do tio deles. Trocaram palavras amargas, para uma despedida. Ela estava contente por vê-los escapar à guerra, que já vitimara dois jovens da aldeia, mas lamentava ver os filhos ir para longe, além da falta que lhe iriam fazer aqueles dois pares de fortes braços.

Era à porta da taberna do "ti" Acácio, que Faustina encontrava Fernando, ao fim do dia, após o trabalho. Ela fazia de propósito para ir à água na hora em que o sabia por lá… e ele fazia questão de sair à porta, assim que a via assomar à boca da rua, com o cântaro debaixo do braço. As mulheres e as raparigas riam maliciosamente ou sussurravam umas com as outras quando passavam, mas eles ignoravam-nas, ou nem se apercebiam da sua passagem. Ela era já viúva e não via, ou não queria ver, mal nenhum em falar com o cunhado. Ele, "quase" viúvo, tinha ali a oportunidade de ter junto de si um rosto bonito e alegre.

Mesmo Fernando só lhe fez companhia por cerca de quinze anos. Juntara-se com ela, apenas quando ele enviuvou também. Embora conversassem muito desde a partida do irmão, sempre tentou respeitar Maria do Carmo, a mulher dele, que estava de cama há anos, não a abandonando nem pondo outra mulher no lugar que lhe pertencia. Maria do Carmo foi outra infeliz; desejava ardentemente ter filhos e por três vezes sofreu partos pavorosos, que deram em crianças deformadas e, felizmente, mortas. O último foi de tal forma difícil, que tiveram de mandar vir o médico da vila. Salvou-lhe a vida, mas não conseguiu salvar-lhe o juízo.

Fernando e Faustina acabaram por se consolar um ao outro. Encontravam-se às escondidas, às vezes na calada da noite, no palheiro dela, ou noutro lugar qualquer mais recatado, mas inevitavelmente acabaram por ser vistos… e falados. A viuvez dele, a partida dos filhos dela e a velhice da mãe, foram a combinação perfeita para se juntarem definitivamente em casa dela. Foi um suporte essencial, quando a mãe dela partiu deste mundo. Viveram bons tempos, ele foi uma companhia serena e carinhosa, até o coração lhe ter “pregado uma partida” aos sessenta e um anos. E Faustina tornou a ficar só.

Não quis mais homem nenhum. Não que houvesse algum por aqueles lados, pelo menos viúvo, mas não queria mais partilhar a sua vida com alguém que a abandonasse novamente.
Os filhos retornaram por volta de 1990. Ou que alguém lhes chamasse a atenção, ou que os remorsos os mordessem, apareceram de surpresa, apenas os dois, para “saberem como ela estava e se precisava de alguma coisa”. António Luís, sempre mais falador, manteve uma conversa variada, contando a forma como viviam em França e que o irmão, agora divorciado, vivia temporariamente com eles. Mas António José notava-se comprometido, como se estivesse ali contra a vontade. Por fim, a conversa acabou por cair na aldeia, cada vez mais deserta e no facto de ela estar sozinha há tantos anos. “O melhor mesmo” dizia Luís “era vender as territas e a casa e ir para o lar da vila, onde não lhe faltaria nada.” Até trazia já os impressos para assinar e tudo. Tinha pressa para ir ter com o resto da família, que o aguardava no Algarve. Claro que acabaram aos gritos em casa e expulsos pela matriarca… Nunca mais voltaram. Ela sabia que não deveria ter atirado a pedra, que partiu o vidro da porta do carro do filho, mas depois de atirada, já não havia nada a fazer. “Eles que fossem lá para as porcas das francesas e se enchessem do bom e do melhor que havia naquela terra para onde os mandou, com todos os tostões ganhos com o suor do seu rosto. Não precisava deles, nem de ninguém.” Gritava a miúde com quem lhe puxava tal conversa.

Os vizinhos foram desaparecendo, um após outro. Com mais ou menos dificuldades, acompanhou alguns até à última morada e despediu-se de outros, que foram para o lar de idosos ou para o hospital e já não regressaram.

Por fim, o padre já não vinha dizer a missa à aldeia e tinham de ir às Chãs, que pouca mais gente tinha. Depois, já nem lá. O sacerdote só aparecia para os funerais e o coveiro tinham de o mandar vir da vila. O templo estava fechado, mas não deixaram que levassem as imagens, quando o padre as mandou buscar; pertenciam ao povo e não à igreja! Faustina ainda conheceu, já muito velho, o neto do santeiro que esculpiu a Senhora da Piedade, que era tão bonita.

Mantiveram o culto como podiam. A “ti” Sabina, a única que sabia ler, recitava trechos da bíblia e partes do missal todos os dias à noite, enquanto os diabetes não a cegaram, depois já só rezavam o terço. Eram as cerimónias que tinham para alimentar a fé, que não parecia esmorecer. Uma vez por mês, lavavam o chão de soalho e tiravam as teias de aranha dos santos, mas as pinturas e reparações eram demasiada exigência para as fracas posses físicas e monetárias da população. As paredes brancas estavam sujas e descascadas. Já tinha a aldeia só para si e não deixava de ir rezar o terço, por hábito, no salão sombrio e solitário que fechava cuidadosamente ao fim do dia. Uma noite, o telhado ruiu com estrondo e ela só o soube pela manhã, pois teve medo de sair à rua para ver o que tinha acontecido… chorou e teve pena de não estar lá dentro, a rezar, na hora em que aconteceu.

Há quanto tempo estava sozinha? Dez? Quinze anos? Já quando faleceu o Fernando, Vale Santeiro só tinha oito habitantes… havia menos pessoas do que cães e mesmo esses foram desaparecendo.

Lembrava-se perfeitamente quando a filha da Maria do Céu veio para a levar para Lisboa, para junto dela, só restavam elas as duas…. Insistiu tanto com Faustina para que fosse para a vila, para o lar de terceira idade… “Foi a única vez que gritei com ela, pobrezinha, que já estava tão fraquinha." Suspirou. "Ainda me escreveu umas vezes, depois deixou de escrever. Mais tarde, a filha mandou dizer que ela tinha morrido. Eramos as últimas pessoas de Vale Santeiro… e agora só resto eu." Lágrimas molharam o travesseiro.

Não sabia se tinha estado a sonhar se acordada, a sensação era de estar a dormir há décadas. Os lábios estavam secos e gretados. Doíam-lhe. Afastou as mantas e arrancou o corpo à cama, puxado a gemidos.

Cambaleou até ao balde onde fazia as necessidades e destapou-o, sendo agredida de imediato pelo cheiro intenso. Desceu as calças com dificuldade e quando se baixava, sentiu uma violenta náusea, acompanhada de um formigueiro nas mãos e nos pés.
Acordou com as pernas e os braços rígidos de frio. Estava deitada no chão, os membros entorpecidos quase não lhe obedeciam e um zumbido ensurdecedor inundava-lhe o cérebro. Gatinhou, gemendo e chorando de dores até à cama, que era uma estrutura de ferro demasiado alta para ser alcançada, mas a esperança da tonelada de mantas e o colchão de palha eram forte apelo.

Não sabia se estava a dormir, se acordada, estava de novo debaixo das mantas. Ouvia ao longe, trazido pelo sopro do vento, as melodias tristes que tocava o Tino ferreiro, ecoando nas encostas agrestes da serra. Vozes falavam de longe num tom baixo. Parecia-lhe a voz do senhor Fonseca carteiro, que conversava com alguém: "…tive que ir até às Chãs, que aqui não há rede…". Tentou organizar as ideias e forçar-se a perceber o que estava a acontecer, enquanto ele continuava: "… coitadinhas, já não comiam nem bebiam há uns dias. Pus-lhes ração e água…"

 Avó Faustina, como está a senhora? — Agora era a voz de Salomé, a GNR que a visitava frequentemente, que lhe chegava de muito longe. — Está tão quente! Tem febre? Que magra que está, não se tem alimentado bem!

 Não sei o que se passa. — Respondeu numa voz sumida, sem abrir os olhos, por entre os arrepios de frio. Não sabia ainda se falava com um sonho. — Tenho tido muito frio e passo o tempo debaixo das mantas. Nem fome tenho. Não sei há quanto tempo não saio com as cabras… tem havido muita neve.

 Não acendeu o lume… — A guarda censurou com meiguice.

 Ainda acendi um destes dias, mas a lenha está a acabar e não me sinto com forças para ir buscar mais. Debaixo das mantas não está tanto frio. — A velhota respondeu, tirando os olhos e espreitando debaixo do monte de cobertas, apercebendo-se pela primeira vez da luz azulada que piscava, iluminando todo o compartimento a espaços. — Será que me podia trazer um braçadito de galhos? E dar umas “coivitas” às galinhas? As pobrezinhas bem chamam…

 A senhora precisa de ajuda e vamos levá-la para um sítio quentinho, com uma cama fofinha, onde terá mais gente para conversar. — Salomé continuou carinhosamente, quase a falar-lhe em segredo. — Não precisa de sair com as cabras, nem de andar “atrás das galinhas” nem da lenha. Vai ter sempre alguém para cuidar da senhora, está bem? Vai passar o Natal com muitos amigos novos.

Só aí Faustina se apercebeu do outro guarda e três jovens de bata branca e até do senhor Fonseca carteiro, que aguardavam atrás, iluminados pela silenciosa e faiscante luz azulada.

— Ora, vejam tanta gente. — Gemeu na voz fraca. — E eu não tenho quase nada. Deve haver para aí um "cibito[4]" de presunto e pão. Talvez um tantinho de vinho…

Salomé sorriu-lhe e beijou-lhe a mão descarnada antes de dar passagem aos jovens de bata branca, que, com palavras carinhosas, mudaram-na da cama com todo o cuidado, para a maca que trouxeram. Em seguida, levaram-na pelo quarto e depois a cozinha, que foram a existência dela por tantos anos.

Cá fora, o mundo era cinzento e as nuvens pesadas continuavam a navegar o céu, deixando escapar, aqui e além, uma nesga da promessa do sol forte, que se escondia mais acima.
Ao ser colocada na ambulância, sabia que não veria mais as cabrinhas, nem as galinhas, que eram a sua companhia de todos os dias. Não tornaria a ver os cumes do Marão tão de perto, nem voltaria a sentir o ar fresco da madrugada a bater-lhe no rosto, antes dos calores das tardes de verão.

Não mais veria as ruas desertas de Vale Santeiro, nem poderia reviver a sua vida, em cada uma daquelas esquinas arruinadas, ou lembrar bons momentos debaixo de muitos telhados que já não existem, dos amigos que já se foram há muito.

Fechou os olhos e, forçando um sorriso, enclavinhou as mãos sobre o peito, como que guardando em si aquelas recordações.
E deixou-se levar.



[1] Lareira, conforme é utilizado em grande parte da região transmontana.
[2] Grande parte das casas transmontanas possui um piso inferior à habitação que era usado para arrumações, criar os porcos e outros animais. Era útil para os poderem alimentar sem sair da casa e ao mesmo tempo geravam calor.
[3] As saídas do país eram fortemente controladas durante o regime salazarista e principalmente durante a guerra colonial. A forma de passar as fronteiras, para os civis e principalmente os jovens em idade militar, era clandestinamente, com ajuda de "passadores" envolvidos em autênticas redes de tráfico humano.
[4] De cibo, pequena quantidade de alimento.

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13 comments:

José Luís Marques disse...

Excelente narrativa. Gostei imenso. Parabéns.

Marcelo disse...

Gostei muito, parabéns

Lô (Maria Eloina Avila). disse...

Parabéns! Sucesso!

Joel Cleto disse...

Excelente. Um retrato do país profundo... e real. Obrigado

Unknown disse...

Bonita narrativa. Acontece com muita gente situações destas no nosso Portugal infelizmente. Adorei ler obrigada pela partilha.

Adriano Ferreira disse...

A descrição é tão pormenorizada que até parece que nascemos na aldeia da ''tia ''Faustina. Vemos as ruas da aldeia, a horta nas traseiras, o interior e até o cheiro da casa.Depois de ler as primeiras linhas já não sou capaz de interromper a leitura. Parabéns.

Hilario Gomes disse...

Este país real está a morrer.

Simont falkgonç disse...

Digo como o Adriano Ferreira. Uma descrição tão viva, que faz do leitor um habitante da aldeia , conhecedor de todos os cantos, de todos os seus costumes e das suas gentes, que se "vêem", que se tornam reais no decurso do texto. E faz-me lembrar os lugares de Fernão Pinto e de Garabatos, a poucos quilómetros de Miranda do Douro, que conheci com vários moradores e ... agora ... já quase nem casas há, ... há já bastantes anos.

M.L.M disse...

Li e reli o teu conto está muito real infelizmente é muito verdadeiro e não me admira nada a relutância desta senhora em não crer abandonar a sua casinha mas esta é a realidade chegamos a uma altura da vida que temos que nos render ás evidências.Os meus parabéns tudo que escreves prende a nossa atenção.

Um grande abraço.Maria Luísa.

Everson Scheurich disse...

Parabens. Outra obra maestra. Fiquei com frio - muito frio - triste e encantado com o texto. Muito bem! E ainda por cima, aprendemos palavras novas, que sao velhas...
Um abraco e saudacoes!

Ester Gama disse...

Parabéns! Muito intenso, muito verdadeiro, triste realidade de um Portugal a duas velocidades e de costas voltadas
Abraço
Ester

Unknown disse...

Muito bom!
Como vivi na província em menina, quer na Beira Alta quer em Trás dos Montes, conheci pessoas com histórias e vivências similares, embora sem este grau de isolamento. Traz-me recordações e sentimentos desses tempos.
E gostei muito da gíria usada.
Excelente conto.
Obrigada.

M.L.M disse...

Li novamente o teu conto tão real e natural tão atual que dá pena ver essas aldeias abandonadas, é pena que quem quer lá ficar tenha depois de sair contra a vontade mas ainda bem que foram a tempo de tirar de casa esta senhora para um lugar bem melhor e a tempo.

muitas prosperidades. M. L. M.

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