sexta-feira, 29 de março de 2024

Os Refugiados

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

 
Na Madrugada dos Tempos - Parte 20

 

A guerra é uma parteira: das entranhas do mundo faz emergir um outro mundo.

Não o faz por cólera nem por qualquer sentimento.

É a sua profissão: mergulha as mãos no Tempo,

com a altivez de um peixe que pensa que ele é que faz despontar o mar.

Mia Couto

Escritor e Biólogo moçambicano

Nascido em 1955

 

Mirsulo e a sua comitiva partiram há algumas semanas, levando consigo o ferido Tibaro, agora em franca recuperação.

Para Barinak fora um encontro muito produtivo. Apesar de não terem conseguido saber como fazer o tão desejado cobre, obtiveram um bom acordo com o sal, que seria trocado por pontas de lança e de seta. Além disso, de modo a conseguir trazer mais sal de cada viagem, Mirsulo iria entregar dois burros já domados e levou com ele um homem que iria aprender a lidar com os animais. Seriam pagos com a primeira entrega de oito cestas de um cotovelo de largo e dois de fundo, cheias de sal.

É verdade que socorreram um estranho e fizeram tudo para o ajudar, sem esperar nada em troca, mas essa era a lei de quem habita grandes espaços desertos. A vida é escassa e preciosa, por isso, os humanos devem ajudar-se reciprocamente e, mesmo na caça, só matar aquilo que se planeja comer.

Mergulhado nestes pensamentos, Erem ajudava a abrir a cova para mais um monólito, que chegaria dentro de dois dias. Já se avistava, numa colina a norte, o grupo de dez diligentes homens e mulheres que o fazia rolar sobre troncos. Seria o oitavo, de um total de vinte e quatro. O chefe do clã mudava assim o tema das suas preocupações; a ideia inicial era ter dez monólitos quando fizessem as festas das fogueiras[1], mas estavam com um atraso de dois. Não era grave, mas o décimo monólito seria o representante da estação e não estaria lá.

A festa das fogueiras era uma ocasião importante; seria escolhido um casal de adolescentes que envergaria respetivamente uma pele de auroque macho e uma de fêmea. O macho, ostentando enormes cornos, dançaria com a fêmea e simulariam o acasalamento. As crianças correriam em volta deles atirando as flores colhidas nos dias anteriores, para a união ser abençoada e produza muitas crias para alimentar os humanos. Ao anoitecer, as fogueiras acender-se-iam em vários pontos da aldeia e os jovens, para mostrar a sua força e coragem, fariam saltos mais ou menos acrobáticos por cima delas. Era uma noite de alegria e felicidade onde se festejava o milagre da vida e da fecundidade… naquela noite seriam concebidas algumas crianças que haveriam de nascer ao aproximar-se o fim do inverno. Naci, que partira entretanto para Hatiweik a fim de ir buscar a sua nova esposa, iria apresentá-la a Barinak nessa altura, buscando a bênção de Swol.

Pelo canto do olho, o chefe do clã viu um dos miúdos do grupo de Tailan aproximar-se em corrida.

— Erem! — A voz esganiçava fez-se ouvir ainda antes de parar a corrida. — Estão a chegar… — estava ofegante —… estão a chegar…

— Quem está a chegar? — Ele fingiu um ar aborrecido. — Fala, rapaz!

 — Muita gente… — o miúdo ainda não conseguira recuperar o fôlego —… vem aí muita gente… com trouxas e animais… muitos! Estão a ir para a casa da reunião.

Sem perceber que tipo de invasão seria aquela, Erem meteu-se ao caminho em passos largos, o que resultou num abandono geral do trabalho; todos o seguiram, mortos de curiosidade.

Ao aproximar-se da casa da reunião estremeceu. Havia um grande grupo de pessoas, como o rapaz dissera, com trouxas, crianças e animais. Eram principalmente mulheres, mas havia alguns homens entre elas. Sem contar, eram quase tantos quantos os habitantes de Barinak. Não sabia o que dizer e caminhou entre eles, atordoado, olhando-os e sendo olhado com curiosidade.

— Erem! — Uma voz feminina chamou de entre os estranhos. — És tu, Erem?

Procurou a origem da voz e localizou uma mulher, já entrada nos anos, bastante magra e com o rosto tisnado do sol e coberto de rugas. Havia qualquer coisa de familiar nela.

— Erem! — Ela insistiu. — És mesmo tu! Sou Cira!

O nome acertou-lhe como uma pedrada e uma onda de recordações; era sua tia, uma das irmãs de Birol. Correu a abraçá-la e interpelou-a com uma enxurrada de perguntas. Queria saber que estava ali a fazer, onde estava o resto do clã, quem era aquela gente…

Gradualmente, mais dos habitantes de Barinak apareciam e vinham questionar os recém-chegados. Havia estranheza por verem o seu chefe a conversar alegremente com um deles, mas alguns reconheceram a irmã de Birol e saudaram-na mais ou menos efusivamente.

Cira tinha muito que contar. Com lágrimas nos olhos, começou a narrativa:

“Após nos separarmos, seguimos sempre na direção da nascente do lago salgado. Retomamos a vida nómada, Birol estava obcecado em ver a grande catarata, para desagrado de alguns dos nossos que foram abandonando o clã assim que passávamos perto de alguma povoação.

O lago salgado, porém, crescia imenso a cada mudança de lua. Encontrávamos várias aldeias abandonadas e a terras, começando a salgar, estavam repletas de vegetação morta e despovoadas de pessoas e animais. Começamos a passar fome e o meu irmão não queria ouvir as vozes do clã que diziam para nos afastarmos do lago.

Por fim, chegamos a uma área muito extensa de terras encharcadas. Já não tínhamos comida há alguns dias e a água potável estava a acabar, toda a que nos rodeava era salgada ou cheirava mal. Acabamos por perceber que havíamos percorrido uma grande distância a embrenhando-nos num enorme pântano. A passagem que usamos foi-se estreitando até chegar a um sítio sem saída. A única solução era recuar, virados para Ner[2] até conseguirmos uma passagem que nos tirasse dali.

Birol já estava com febre e sentindo-se fraco há algum tempo. A fome e a sede que passamos naquela armadilha mortal acabaram com ele e com mais uns quantos dos mais fracos. Quando finalmente encontramos uma passagem, estávamos reduzidos a metade dos que começaram e mais mortos que vivos. Logo a seguir encontramos uma nascente de água doce e foi a nossa salvação.

Estávamos desvairados e perdidos, sem saber o que fazer. Retomamos a caminhada seguindo as estrelas-guias até encontrar uma povoação. Mas eles não nos quiseram lá. Tinham um muro de troncos em volta das casas e só nos deixavam montar as tendas no exterior. Podíamos entrar durante o dia, mas ao anoitecer tínhamos de sair.

Aí aconteceu a divisão; o meu irmão mais novo, Okan, revoltado por termos sido guiados numa caminhada para a morte, não quis mover-se mais; perdera a mulher e dois filhos, restava-lhe apenas uma menina. Ficaria ali, o povo da aldeia acabaria por os aceitar. A prima Ezgi e a maioria escolheu continuar para poente. Eu e o meu filho Demir e a mulher, Gizem, decidimos que voltaríamos para trás à tua procura. O Clã do Rio Brilhante, depois de tantos invernos a crescer e a tornar-se um dos maiores, destruiu-se completamente. O crescimento do lago salgado e a insistência louca do meu irmão reduziu-nos a nada.

Depois disso temos caminhado por essa terra imensa até que, no inverno passado, parámos numa povoação chamada Annakos a poente daqui. Já tínhamos ouvido falar de Barinak por caçadores e pastores, que ficava a poucos dias de distância e do seu amado chefe. Embora não soubéssemos o nome, já suspeitávamos de quem se tratava. Mais uns dias e empreenderíamos a viagem para cá. Aconteceu que, uma tribo nómada de Ner atacou a povoação, matou muita gente e roubaram tudo o que puderam levar. Perdemos Demir nesse ataque e acho que toda a população se dispersou, deixando Annakos vazia.

Pela minha parte, se tinha de fugir, que fosse para junto do meu sobrinho e da minha família. Esta gente que me acompanha sabia da minha intenção e resolveu seguir-me. Também eles vieram ao som das histórias do santuário que aqui se constrói e que protege este povo.”

Erem olhou o aspeto desolado daquele grupo, com carinho, mas, ao mesmo tempo preocupação. Era um número muito grande de bocas a alimentar.

Alim chegou, espantado com a quantidade de pessoas que ali via reunidas. Foram chamá-lo que estava junto de Lemi, de quem se tornara muito amigo. Este último não viera porque estava cada vez mais debilitado e já não andava. Tailan apareceu quase a seguir, acompanhado pelos cerca de cinco outros homens que atualmente o seguiam para todo o lado. Falava-se em lutas entre os “estrangeiros” de Barinak, a liderança dele era contestada.

— São nómadas? — Perguntou Alim diretamente a Erem.

— Não. — Respondeu o chefe do clã sem hesitar. — A maioria vem de Annakos, já estive lá, numa das minhas últimas caçadas. — Foram atacados e a aldeia foi destruída.

— Querem ficar aqui? — Tailan mostrou-se desagradado. — Não podemos aceitar tanta gente. Vejam só; quase só mulheres e crianças! Não podemos alimentar tanta gente.

Humilde e pacientemente, o grupo de refugiados mantinha-se praticamente em silêncio. Continuavam sentados no chão, agarrados aos seus pertences, olhando com esperança para os três homens que decidiriam o seu futuro.

— Algumas crianças já são crescidas, já trabalham. A maioria das mulheres são jovens, de certeza que poderão alimentar-se. Trazem alguns homens e alguns animais… — Alim observou, aproveitando o que de bom se conseguiria obter.

— Teremos de ver o que podemos fazer. — Disse Erem pensativamente.

Zia e Nehir aproximaram-se, também surpreendidas com aquela quantidade de estranhos de uma só vez. Ambas reconheceram a velha Cira e logo se abraçaram e beijaram-se, chorando de alegria com o reencontro. A curandeira, no entanto, começou de imediato a verificar entre os refugiados os que estavam feridos ou doentes.

— Mas… — Tailan estava espantado. — Estão mesmo a pensar em aceitá-los? Que faremos a tantas bocas?

— São bocas, mas também são braços e cabeças. — Erem olhou diretamente o amigo. — Estranho que sejas quem mais reclama, quando, também tu, foste um estranho em Barinak.

Ele não gostou de ser recordado e virou o rosto, contrariado, vendo chegar Fikri e Remzi, os filhos de Lemi, chamados da equipa que arrastava o monólito. Sabia serem críticos daqueles que continuavam a chamar estrangeiros e apelou à sua opinião: — Fikri, o teu primo pensa receber esta gente em Barinak. Que te parece?

O visado e o irmão olharam demoradamente para o grupo, aparentando não ter reconhecido a tia, pois eram muito novos quando saíram do Clã do Rio Brilhante. Quando os olhos de Fikri tornaram para o membro do conselho que o questionava, já a habilidade diplomática herdada de Lemi se sobrepunha à sua habitual impulsividade; percebera o conflito e que tinha de tomar uma posição. Ou estava do lado do primo, ou daquele homem, que detestava e admirava ao mesmo tempo.

— Porque está o nobre Tailan preocupado com mais estrangeiros a chegar aqui? — Ele colocou o braço sobre o ombro do irmão mais novo para que este não se manifestasse. — Todos sabem a minha opinião, não ma pediram quando vos aceitaram, mas também não era necessário, porque Erem é o nosso chefe e confiamos nas suas decisões. — Exibiu um pequeno sorriso para o primo. — Além de tudo, apesar de eu não gostar, os estrangeiros em Barinak têm sido muito úteis.

— Veremos o que dirá Naci quando regressar. — Respondeu Tailan com azedume.

— O meu filho, foi buscar a sua nova esposa fora do clã. — Ripostou Erem. — De resto, também pessoas do teu povo procuraram homem ou mulher entre nós e os nossos entre os vossos. Não defendias tu a união?

O rosto de Tailan fechou-se contrariado e cruzou os braços sobre o peito. Sempre fora um homem impressionante, que respirava energia e liderança. Agora, permanentemente seguido pelos seus protetores, estava habituado a que a sua vontade se impusesse sem necessidade de se justificar.

— Entre os nossos povos, sim. — Ele respondeu lentamente, sopesando cada uma das suas palavras. — Entre aqueles que vivem, nascem e crescem em Barinak.

Zia aproximou-se, entretanto, sentindo a tensão que se formava. Mesmo que inconscientemente, Tailan e o seu séquito estavam perfeitamente agrupados frente a frente com os vários elementos do Clã do Leão das Montanhas.

— Verás, que será bom para todos. — Erem deu um passo em frente e pousou conciliadoramente a sua mão sobre o braço de Tailan. — Não vês aqui novas esposas para os nossos homens? Crianças que em pouco tempo serão caçadores, pastores, pescadores? Mais braços para ajudar a construir o santuário. Em breve não se distinguirão de nós.

— O que eu vejo, — o chefe dos estrangeiros replicou com uma careta e sem perder a pose defensiva —, é uma grande quantidade de bocas a alimentar e um grupo perseguido por inimigos. Sabe se virão atrás deles? Eu não os quero junto de mim. — Com esta sentença, virou costas e afastou-se rudemente, seguido pelo séquito de guarda-costas.

Erem olhou para Zia, que se mantivera calada todo o tempo e depois tornou para o grupo que se afastava. Tailan, porém, ainda tinha mais um aviso e interrompeu brevemente a marcha para o fazer: -- Devias estar preocupado era em preparar para te defenderes, em vez de construir um santuário e estar a receber quem não se pode defender sozinho.



[1] Correspondia aproximadamente à primavera

[2] Norte

         
    

Anterior A seguir
19 - Forjando Alianças
21 - Os Esponsais
Introdução

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1 comments:

Fernando Morgado disse...

Neste capítulo, sobressai a antiga necessidade dos povos em se deslocarem; ou para descobrir novas terras, ou para conseguir novos conhecimentos, ou, também, para se comungarem com outros povos. Mas fica também evidente que os povos, desde sempre, se deslocam em consequência das guerras, das epidemias, das intempéries, da fome, da saúde, das injustiças e das prepotências. Tal como hoje; e assim será sempre.
Estas migrações criam receios e cuidados acrescidos aos povos de acolhimento. Naquele tempo havia muito desconhecimento, ao contrário de hoje, em que há muito conhecimento. Contudo, foram estas clivagens, estas transformações exponenciais, estes momentos históricos que fizeram evoluir o Mundo, ou seja, que formaram o Mundo dos nossos dias.
O Manuel Amaro continua a abrir caminhos para o nosso conhecimento, janelas de clarividência no tempo antes do nosso tempo. Só posso, como sempre, adjectivar esta história de excelente, principalmente para quem nunca se inscreveu no conhecimento da vida primitiva, embora se releve que tudo muda, tudo se transforma, mas, com novas roupagens civilizacionais, tudo se mantém.
Parabéns, amigo Amaro. És especial.

E...acabou!?

Fernando Morgado

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