quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Forjando Alianças

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


Na Madrugada dos Tempos - Parte 19


Para vencer - material ou imaterialmente - três coisas definíveis são precisas: saber trabalhar, aproveitar oportunidades, e criar relações. O resto pertence ao elemento indefinível, mas real, a que, à falta de melhor nome, se chama sorte.

Fernando Pessoa (1888-1935)

Escritor português

 

Mirsulo estava feliz. Aqueles homens e mulheres, apesar de culturalmente mais atrasados, recebiam-nos como irmãos e, principalmente, salvaram a vida do primogénito. É verdade que tinha muitos filhos das suas quatro esposas, mas Tibaro, além de mais velho, sempre fora o seu favorito. Era aquele que lhe recordava ele próprio, quando era mais jovem.

Olhou Erem de perfil, enquanto este contava uma peripécia de caça a Savirio. Era um rosto de linhas firmes, nariz forte e queixo bem delineado. Os seus olhos castanhos olhavam diretamente nos do seu interlocutor, sem se desviarem. Gostou daquele homem assim que o viu; alguém que se preparava para se defender de um grupo de jovens guerreiros armados com um bando de velhos, mulheres e crianças…, mas alguém que se defenderia mesmo assim, nunca se renderia sem luta. Naci, o filho, era sem dúvida da mesma cepa, embora talvez um pouco mais impetuoso.

— Tenho uma oferta para te fazer. — Mirsulo interrompeu Erem, que o olhou com curiosidade. — Salvaste o meu filho, um estranho, sem esperar nada em troca. Quero oferecer-te uma filha! Desejo que o teu filho Naci, sei que não tem mulher, tome como esposa Tuana, uma das minhas filhas. Será muito bom ter um neto com o sangue de tal bravo.

Se Savirio o olhou com incredulidade, Erem olhou com satisfação.

Foi o curandeiro quem primeiro reagiu à proposta: —Uma das tuas filhas? Para viver no meio… deles?

— Sim. — O chefe hati estava decidido e encarou o seu companheiro de viagem com uma expressão que o silenciou. — Mandarei um dos meus construtores para construir uma casa digna da filha de Mirsulo. — Depois tornou o olhar para o chefe de Barinak. — Isto, se concordares.

— Será uma grande alegria receber a tua filha, que será como se a minha fosse. — Afirmou Erem alegremente. — O teu construtor terá muitos ajudantes.

— Quero também propor-te outra troca. — Mirsulo estava imparável. — Vejo, pela variedade de carnes salgadas que me apresentas, que tens acesso a abundância de sal; que queres trocar por alguns cestos de tempos em tempos?

— O sal que temos vem da grande água a dois dias daqui. — Esclareceu Erem simplesmente. — Os comerciantes que o tiram da água trocam a qualquer um.

— Sim, eu sei. — O chefe hati sorriu. — Mas fica a dois dias de viagem para ti, para mim são mais de quatro e outros tantos de volta. Antes, íamos a uma mina de sal a menos de três dias para Ner [1]de Hatiweik. Há algumas luas, um grande bando de nómadas apossou-se da aldeia e da mina e não negoceiam, ou simplesmente pedem coisas impossíveis. Se trocasses sal comigo, os meus carregadores fariam apenas dois dias de viagem. Que quererias em troca?

Erem fitou o rosto largo e sincero do seu homólogo enquanto pensava se deveria pedir já o que lhe interessava, ou se começaria por outra coisa qualquer. Após uns segundos, como impaciente que era, resolveu ir logo diretamente ao assunto: — Quero saber como se consegue isto. — Apontou a reluzente placa de cobre, decorada com gravações, que Mirsulo trazia ao peito.

Savirio olhou com espanto para Erem e depois para o seu chefe, com a expressão: “Eu não te disse?”

O chefe dos hati olhou para a placa enquanto a acariciava pensativamente. Depois, num gesto rápido, tirou a tira de couro com que a suspendia ao pescoço. Sob o olhar atento do seu curandeiro e, exibindo um sorriso nervoso, colocou-a em Erem que ficou visivelmente agradado.

Lemi bateu as palmas com satisfação pelo gesto.

— Salvaste o meu filho! — Reafirmou Mirsulo gravemente. — És meu irmão! — Agora diz-me, irmão, queres o quê exatamente? Estes adornos? — Exibiu as pulseiras que subiam em espiral pelos braços em grossos fios.

— Preciso de armas melhores. — Respondeu Erem, aliviado por poder falar francamente. — Temos sido atacados e roubados por estranhos que trazem armas como as vossas; as lanças espetam-se melhor e as facas não se partem e são mais compridas.

— Obter o cobre não é fácil. — Explicou o chefe hati. — É precisa grande magia para roubar o sangue de fogo das pedras.

— Magia? — Lemi e Erem surpreenderam-se.

— Sim, claro, como acham que conseguiria fazer uma coisa tão dura como pedra? — Savirio adiantou-se. — Só os mágicos é que atiram pedras para o fogo e transformam-nas no sangue da terra. Um líquido grosso que corre em brasa e queima tudo em que tocar.

— Também temos sido atacados aqui e ali por esses bandidos. — Informou Mirsulo, desviando a conversa. — Não se atrevem muito próximo de Hatiweik porque sabem que está bem protegida atrás dos muros. Mas atacam as casas dos agricultores que existem em volta, matam, roubam e destroem tudo. São os mesmos que se apoderaram das minas de sal. Os meus espiões dizem que vieram de Ner, são muito numerosos e não param de chegar mais.

— Deveríamos tê-los atacado quando se apoderaram das minas e eram menos. — Censurou Savirio. — Conforme te recomendaram o teu filho e os chefes guerreiros.

— Mesmo quando eram menos, — Mirsulo não ficou contente com a censura do curandeiro —, continuavam a ser muitos e morreriam muitos dos nossos para os destruir. Os nossos homens estão habituados a exigir tributos a comerciantes reticentes, castigar ladrões e a expulsar desordeiros. Lutar contra guerreiros armados e acostumados à guerra    será muito diferente.

— Antes o problema era difícil, agora é praticamente impossível… — insistiu Savirio.

— Chega! — Ordenou o chefe hati estendendo a mão com a palma para baixo na direção do seu subordinado. — Se se tratasse de um simples bando de salteadores já estavam eliminados. Mas são um número muito grande de guerreiros, que correm nas costas de cavalos, armados com lanças e flechas.

— Cavalos? — Lemi arregalou os olhos? — Como conseguem subir nas costas dos cavalos?

— Também não sabemos. — Mirsulo mostrou-se desanimado. — Sempre usamos burros como animais de carga, alguns deixam-se montar, principalmente aqueles que nascem dos que apanhamos selvagens. Mas os cavalos, é quase impossível apanhá-los com vida, quanto mais montá-los.

— A solução é unir forças. — Sugeriu Lemi, calando-se de imediato e desculpando-se com um olhar a Erem.

— Estariam prontos a lutar ao nosso lado? — Mirsulo mostrou-se interessado. — Há outros povoados nossos amigos… realmente, se nos uníssemos todos…

— Teria de falar com todo o meu povo. — Erem fez uma expressão de desagrado. — Não poderia simplesmente dizer-lhes para caminharem para a morte.

— Ou para a vitória. — Acrescentou Savirio.

Fez-se um silêncio pesado entre eles enquanto cada um se refugiava nos seus próprios pensamentos.

Erem interrompeu as meditações: — Mas quanto ao cobre. Que temos de fazer para o conseguir?

— Em troca do sal… — começou Mirsulo fazendo uma expressão pensativa —…, poderemos dar-vos pontas de seta e de lança. O problema é que não há tanto cobre como possas pensar. Não são quaisquer pedras que os mágicos querem, têm de ter uma cor e um aspeto que eles exigem. Temos de escavar muito para encontrá-las, outras vezes, são trazidas por comerciantes provenientes de Hewsos[2], mas não dizem de onde vieram exatamente.

Zia, ultrapassado o aborrecimento, regressou ao convívio e sentou-se pesadamente ao lado de Savirio, para desagrado deste. Erem dedicou-lhe um sorriso triste a que ela correspondeu.

— Os teus mágicos poderiam ensinar-nos quais as pedras a procurar… — sugeriu Lemi, espreitando por cima da cabeça de Zia.

O curandeiro hati voltou a deitar um olhar de alarme ao seu chefe.

— Estamos a falar sobre o cobre. — Erem informou a mulher. — Mirsulo diz-nos que são mágicos que produzem o cobre, queimando umas pedras.

— Nunca ouvi falar dessa magia. — Entendida no assunto, a xamã emitiu a sua opinião. — O poder dos deuses é pedido em muitas ocasiões, nem sempre conseguido. Que fazem essas pedras queimadas?

— Transformam-se no sangue da terra! Vermelho, fumegante e queima tudo em que toca. Quando arrefece fica duro como a pedra. — Explicou Savirio, com ar de superioridade.

— E qual o deus que abençoa essa transformação? — Questionou ela assumindo a mesma postura.

— Mas que queres saber tu, mulher, destes assuntos de homens? — A agressividade do curandeiro regressara.

— Não me vais voltar a fazer sair da minha própria casa! — Rosnou Zia entre dentes, mas suficientemente alto para que os mais próximos ouvissem. —Tal como o sol e a lua, também o homem e a mulher foram criados diferentes e iguais no Primeiro Amanhecer! Se Da Pater é o deus pai, Da Mater é mãe, irmã e esposa! A mulher não está abaixo do homem, mas a seu lado! — Os seus olhos pareciam soltar chispas na direção de Savirio. — Eu sou a sacerdotisa de Swol, xamã do Clã do Leão das Montanhas. Sou a voz e a mão do deus. Sou xamã, caçadora, guerreira e mãe, mais do que tu alguma vez serás! És meu convidado e ouço o que dizes, tu deves respeitar a mim e a minha casa!

— Ouço-te, esposa de Erem e xamã! — Mirsulo tomou a dianteira rapidamente, calando Savirio com um gesto. — O curandeiro-maior do meu povo respeitará a tua posição, apesar de seres mulher e isso ser diferente dos nossos costumes. — Depois olhou diretamente para ele. — Se ele não se sentir bem, tem a minha autorização para se retirar. Não te voltará a afrontar.

Savirio corou da cabeça aos pés e olhou o seu chefe de soslaio por várias vezes sem conseguir evitar de resmungar baixinho o seu descontentamento.

— Para responder às tuas perguntas sobre os deuses que presidem à transformação das pedras — retomou Mirsulo — é Tarunte, claro, deus da guerra do fogo e da vida.

— Tharun é o deus do trovão, da guerra e do fogo, sim. — Respondeu ela, corrigindo o nome. — Mas não o da vida. Da Pater e Da Mater criaram o primeiro homem e a primeira mulher, eles sim, os deuses da vida e puseram-nos à guarda de Swol e Mensis. O Senhor do Dia ilumina-nos e faz crescer as colheitas e os animais e a Senhora da Noite vela sobre a escuridão e guia a fertilidade da mulher que dá os filhos dos Homens.

— Se teu esposo permitir — num ato de apaziguamento, Mirsulo soltou uma das suas pulseiras de cobre em espiral e ofereceu-a diretamente a Zia, depois de um rápido olhar a Erem — recebe este penhor do meu respeito pela xamã e voz dos deuses do Clã do Leão das Montanhas.



[1] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal norte) por oposição ao sol do meio-dia.

[2] Proto Indo-Europeu: Madrugada é uma das deusas do panteão, mas também um dos pontos cardeais que dará origem ao Leste.

 

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18 - Confraternização

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1 comments:

Fernando Morgado disse...

A história do povo de Barinak vai-se moldando com novas ideias e costumes que lhe são afeiçoados pela interligação com outros povos. Como é de preceito, o povo anfitrião faz valer as suas ideias, defende-as com pundonor da sua herança, dos seus princípios, mas vai cedendo perante algumas diferenças que julgam ser as vantagens dos seus convidados. A vontade de aceder a essas hipotéticas superioridades, diferentes e iguais em ambos os lados, leva à necessidade da troca, como reforço da confiança e da amizade. Neste episódio, e mais uma vez, de forma brilhante, o Manuel Amaro aborda o valor da partilha, da entreajuda, da força colectiva, da cedência nas certezas que existiam como irrevogáveis, e avança na narrativa de futuros semeados.
Confesso, ou repito-me, que estou fascinado com esta epopeia, uma história que conta com a elevação do Manuel Amaro enquanto escritor e, por isso, como investigador. É um trabalho de mestre, o que se expõe neste romance, deixem-me repetir – romance -, ainda que se possa identificar como um documento da História antiga da Humanidade.
Venha o 20.

Fernando Morgado

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