sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Decisão Difícil

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Na Madrugada dos Tempos – Parte 14


Só quem nunca pensou chegou alguma vez a uma conclusão. Pensar é hesitar. Os homens de ação nunca pensam.

Fernando Pessoa (1888-1935)

Escritor português

 

Naci tomou a dianteira em direção ao pai, logo seguido por todos os outros, a mole de curiosos que se reunia em volta deles, abriu alas para que chegassem ao chefe.

Erem abraçou brevemente o filho e ouviu com atenção o relato nervoso do que acontecera, enquanto verificava que quase todos ostentavam ferimentos, a maioria ligeiros.

Nehir e Zia observaram o jovem que jazia desacordado na padiola a respirar curta e aflitivamente; tinha, como os outros, o cabelo escuro entrançado e decorado com esferas brilhantes, sobrancelhas espessas e o rosto pálido alongado, atravessado por um ferimento que sangrava abundantemente. Envergava uma túnica comprida castanha que lhe chegava aos joelhos e ostentava uma placa reluzente, marcada com traços, ao pescoço. Os pés e as pernas estavam envoltos em várias tiras de couro que seguravam uma mais grossa que lhe protegia a sola dos pés. A curandeira indicou que o levassem para a tenda dela, enquanto a mãe, ajudada por outras mulheres, começou a cuidar dos feridos menos graves.

Erem olhou com desconfiança para os seis altos e silenciosos guerreiros que seguiram o ferido para a tenda. Todos traziam o cabelo igual, com pequenas variantes, vestiam túnicas semelhantes e calçavam sandálias… tudo manufaturado com grande perfeição. Nem os melhores artesãos do clã conseguiriam reproduzir qualquer daquelas peças.

Naci fez tenção de os seguir, mas o pai tocou-lhe no braço e pediu-lhe que explicasse o que acontecera e quem eram os estranhos. Juntou-se de imediato grande parte do clã para escutar.

— Temos dois belos auroques para ir buscar. — Cemil aproximou-se também, sorrindo para o irmão, havia uma nódoa negra na face direita e um corte na testa que eram as suas mais recentes “medalhas” e os dentes avermelhados exibiam um espaço negro onde haviam desaparecido alguns. — Vamos é ter de os dividir com os nossos novos amigos.

— Mas que são eles? — Era evidente a suspeição de todos, verbalizada por Lemi, que, entretanto, se juntara para saber as novidades.

— Dizem que o seu povo se chama Hati e vivem numa grande povoação toda construída em pedra. Para nós, são o povo das cascatas que se localiza a cerca de dois dias subindo o rio. — Esclareceu Cemil limpando um fio de sangue que lhe escorria para a barba. — O povoado chama-se Hatiweik falam como nós, mas há muitas palavras que não entendemos.

— Estávamos escondidos a vigiar uma enorme manada de auroques, havia uma fêmea mais pequena que se distanciava lentamente dos outros. — Começou a contar Naci. — Esperávamos que estivesse longe o suficiente para o apanharmos sem que o resto da manada se apercebesse…

— … quando aqueles malucos apareceram vindos não sei de onde a atacar o animal que nós vigiávamos. — Continuou Cemil rindo com a sua boca vermelha. — Claro que um enorme macho, que estava por perto, investiu sobre eles assim que se mostraram.

— Num instante, a presa, os estrangeiros e o terrível macho corriam todos na nossa direção. — Naci arregalou os olhos e ergueu as mãos simulando as hastes do auroque.

— Aqui o teu filho, — Cemil colocou o braço sobre o filho do chefe —, sem deixar que o medo o vencesse, ergueu-se da vegetação e atirou a lança certeira sobre o pescoço da nossa presa. O pior é que já estavam todos em cima de nós e eu demorei muito a levantar-me.

— Foi uma enorme confusão. — Confirmou Naci rindo-se com vontade. — Assustaram-se todos connosco e o macho, que vinha logo atrás, começou a distribuir cornadas em todas as direções.

— Quando dei por mim, — acrescentou excitadamente Cemil, exibindo mais uma vez a falta de dentes na boca ensanguentada —, voava de cara contra uma pedra.

— Eu levei com um dos Hati em cima. — Continuou o filho do chefe. — Depois o auroque interessou-se por outro deles e ainda lhe deu umas boas pancadas, antes de nós todos juntos acabarmos com ele.

— Ainda bem que os deuses vos trouxeram a salvo a todos. — Erem suspirou de alívio, mas logo acrescentou, batendo nas costas do irmão e rindo: — A uns mais inteiros que outros.

Todos riram com gosto, mas logo o chefe acrescentou: — Falem com Lemi para terem dois grupos a sair às primeiras luzes e trazer as carcaças da vossa excelente caçada. Eu agora verei como está o estrangeiro.

A tenda de Nehir era invulgarmente grande; dava para estar em pé com uma criança às costas e cabiam três homens deitados ao comprido e quatro à largura. As peles de auroque, cozidas umas às outras, eram suportadas por enormes presas de mamute. Fora o primeiro lar de Erem e da família antes do chefe se decidir trocar por uma casa de pedra, mais pequena e logo mais fácil de aquecer. A filha não os quis acompanhar e continuou lá com o irmão Nuri, posteriormente assassinado pelos homens-macaco. Atualmente, aquele era o local onde todos os feridos e doentes recorriam, antes mesmo de ir pedir a Zia que intercedesse junto dos deuses.

Erem, acompanhado de Alim, que chegara, entretanto, informado do que se passara na caçada, aproximaram-se da entrada da tenda. Alguns membros do clã tentavam convencer os dois estrangeiros de que, se alguém podia salvar o seu companheiro, era aquela curandeira. Calaram-se ao avistar os recém-chegados.

O chefe aproveitou para deitar mais uma mirada ao vestuário dos dois jovens que lhe devolveram uma pequena, mas respeitosa inclinação de cabeça, enquanto franqueavam a entrada.

Toda a tenda estava na penumbra, apenas iluminada pela luz vermelha do braseiro ao centro e o pequeno recipiente de argila, com gordura, que ardia na mão da curandeira. O estrangeiro estava deitado no chão, sem a túnica, apenas com um pedaço de tecido embrulhado na cinta.

Nehir, de joelhos, já havia limpado o longo ferimento do rosto do paciente e observava-lhe o pescoço, enquanto ele respirava com dificuldade em inspirações curtas e rápidas. A pele das faces tornava-se azulada e por vezes abria muito os olhos, como um peixe fora de água. Os braços batiam no chão alternadamente e empurrava com os pés, como se quisesse afastar-se de alguma coisa.

A curandeira olhou com preocupação para o pai e depois para o doente.

— Escapa? — Quis saber Erem.

— Não sei. — Ela fez uma careta com os dentes cerrados. — Está muito mal. Não consegue que o ar entre nele e se continuar assim morrerá em pouco tempo.

— Mas não tem furos no peito nem nas costas. — Observou o chefe.

— Pois não. — A filha concordou, tornando a olhar para o estrangeiro que parecia cada vez mais aflito. — Mas tem o pescoço muito vermelho e parece que não o consegue mexer. Acho que o espírito zangado do auroque que eles mataram se agarrou ali e vai sufocá-lo.

Zia entrou na tenda no preciso momento em que estas palavras eram proferidas. Examinou o pescoço do paciente, afastando-lhe as mãos com que se debatia.

— Não podemos fazer uma oração para expulsar o mal? — Sugeriu Erem, torcendo a boca em desagrado. — Um sacrifício com o fígado do animal? O coração?

— Acho que morre antes disso. — Concluiu Zia para os outros dois, antes de se voltar para a filha: — Ainda te lembras, quando estávamos com Birol, de como Nida, a mulher do xamã Gokai salvou o teu tio depois do ataque do urso?

— Eu era pequena, mas lembro-me bem. — Nehir baixou os olhos. — Também já me lembrei disso, mas tenho medo de o fazer.

— Fez um sacrifício com a cabeça do urso e as pontas das lanças dos guerreiros que o mataram… — Erem recordava-se — … ao por do sol!

— Ele não aguenta até ao por do sol. — Sentenciou Zia. — Além disso, não foi só o sacrifício que Gokai fez…

Um gemido alto, apesar de sufocado, fez com que os companheiros do ferido entrassem alarmados.

— … Nida fez-lhe um buraco para entrar o ar. — Concluiu Nehir sem levantar os olhos.

— Um buraco? — Alarmou-se um dos estrangeiros?

— Não consegues salvar Tibaro? — Quase sussurrou o outro, abordando diretamente Nehir.

— Ele tem um mau espírito, possivelmente o auroque que mataram, no pescoço e não o deixa respirar. — Atirou Zia de chofre.

— E tu queres cortar-lhe o pescoço? — O primeiro dos estrangeiros indignou-se.

— Espera, Himono. — Tornou o outro, antes de questionar, desta vez, Zia. — Achas que o salvas? Que pensas fazer?

— Já vimos salvar um parente nosso com o mesmo problema há muito tempo. — Explicou a mulher do chefe. — Não sabemos se resulta, mas, se não fizermos nada, só poderemos confiar nas orações a Swol. Penso que não verá os primeiros alvores.

— Mas… — o chamado Himono continuava escandalizado —… cortar-lhe o pescoço? Estás louco Kiala? Temos de o levar para casa, para Mirsulo, ele saberá o que fazer.

— Não é cortar o pescoço, é apenas um buraco… — tentou esclarecer Nehir.

— Mirsulo é tão curandeiro como tu ou eu. — Sentenciou Kiala. — Teria de ser o curandeiro Savirio e não sei se aguentará até lá.

— São livres de partir quando quiserem, como eram livres quando chegaram cá. — Esclareceu Erem. — O vosso amigo está muito mal e se a minha mulher e filha dizem que não escapa se não se fizer nada, acredito que assim será. Se não quiserem fazer nada, nada faremos. Se quiserem levá-lo ao vosso curandeiro, enviarei alguns homens para vos acompanhar. De todas as formas, faremos um sacrifício no santuário, assim que formos buscar a cabeça e as mãos do auroque, para que Swol ajude a libertar os ares para o vosso amigo.

— São precisos dois dias para chegar lá, com todos saudáveis. Com ele assim, levaremos mais de três. Mandamos dois dos nossos avisar Mirsulo do sucedido com o filho, mas serão dois dias para lá e outros dois para cá. — Concluiu o chamado Kiala. — Também compreendo que ele não aguentará de nenhuma forma. — Baixou os olhos pensativamente.

— O sacrifício deve ser realizado ao nascer do dia ou ao cair da noite. — Explicou Zia. — Não podemos falhar. Se aparecer um pouquinho do sol nas montanhas do nascente antes de começarmos, terá de ser adiado para o por-do-sol. Se, nessa altura, já não houver luz nas montanhas de poente, não se poderá começar e adia-se para o dia seguinte…

Por fim, Kiala exclamou, decidido: — Iremos buscar a cabeça e as mãos da besta. Com a tua autorização, pedirei a ajuda de Naci e mais alguns.

— Podes dispor de tudo o que é nosso para salvar este homem. — Acedeu Erem.

— Sei que Mirsulo ficará furioso, se Tibaro estiver morto quando ele chegar, mas mais furioso ficará se souber que nada fizemos para o salvar. — Kiala falou diretamente para o companheiro. — Agora deixemos os curandeiros trabalhar.

 

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A SEGUIR

13 - O Cativo


15 - Medicina Primitiva


Introdução
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1 comments:

Fernando Morgado disse...

Esta saga continua a explorar a minha expectativa e curiosidade. Numa narrativa bem tratada, o autor continua o caminho sinuoso, inimaginável para o homem actual, dito evoluído e culto, o caminho nas etapas difíceis da evolução da humanidade.
Emerge, agora mais, a interacção e a entreajuda entre povos que se aproximam, que se interligam numa mestiçagem cultural geradora de união.
É incontornável a maneira como nos conduz até aos dias de hoje, aos dias em que nos sentimos mais inteligentes, mais conhecedores e mais capazes, aos dias que nos mostram grandes incapacidades para resolver conflitos entre vizinhos, entre regiões, entre clãs, entre países, entre religiões; não falta conhecimento, falta humanismo. Os povos antigos procuravam o conhecimento para evoluírem; os povos actuais, leia-se os novos poderes, sabem de mais, e até sabem o que é preciso fazer para anular os direitos da Humanidade.
Mais um episódio recheado de ensinamentos.
Parabéns, Manuel Amaro Mendonça.

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