Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
O número dos nossos inimigos varia na proporção do crescimento da nossa importância. Acontece o mesmo com o número dos amigos.
Paul Valéry
Filósofo, escritor e poeta francês
(1871-1945)
Indecisos sobre o que fazer com o ladrão, amarraram-no a uma estaca no centro do povoado, mesmo em frente à casa de Erem. Na fúria vingativa, os aldeãos despojaram-no das roupas, encheram-no de pancadas e atiraram-lhe toda a espécie de objetos inomináveis. As tentativas para extrair algo de inteligível dele, porém, foram infrutíferas. Não conseguiam perceber a algaraviada do invasor, apesar de, por vezes, uma ou outra palavra parecer familiar. Chamaram vários dos estrangeiros residentes, mas nenhum conseguiu entabular uma comunicação. Por gestos, conseguiram perceber que ele provinha de algum lugar distante para lá das montanhas a norte e que eram um clã numeroso.
O pequeno e improvisado, “conselho” com Erem, Lemi e os recém-admitidos, Alim e Tailan, discutiu o pouco que sabia. Se por um lado sentiam-se mais descansados por saber que os ladrões estavam longe, por outro, o facto de chegarem até ali, significava que se movimentavam… talvez na direção da aldeia. Além disso, possuíam armas de cobre; facas, espadas curtas, as pontas das flechas e até os próprios arcos estavam decorados com finas folhas trabalhadas do metal. Estavam obviamente perante um povo bem armado e com conhecimentos para além dos deles.
Distribuíram as armas pelos melhores guerreiros, mas Erem, satisfeito com o punhal que lhe fora oferecido há algum tempo por Alim, abdicou da espada que lhe caberia e permitiu que fosse entregue a outro.
Como havia trabalhos a desempenhar, gradualmente, o grupo que circundava o cativo foi ficando menor, reduzindo-se apenas às crianças que começaram a divertir-se atirando-lhe pedras. O homem gritava na sua língua incompreensível e rosnava-lhes sem sucesso, para alegria dos petizes. Foi Zia quem interveio fazendo-os dispersar. Antes dela própria se ir embora, ainda deitou um olhar preocupado ao prisioneiro; que haveriam de fazer com ele? Deveriam simplesmente matá-lo como muitos sugeriam? Oferecê-lo a Swol no círculo de pedra? Seria uma honra para os deuses ou iriam conspurcar o lugar sagrado?
Já não chovia há uns dias e as planícies estavam forradas de erva tenra que veados e auroques pastavam livremente. Havia muito trabalho a caçar e a desmanchar as carcaças para secar as carnes. Além disso, também beneficiando dos dias que cresciam, a operação de construção do santuário recomeçou e as equipas para arrastar as pedras já saíam todos os dias para a sua atividade.
Ao anoitecer, todos regressavam e a fogueira no centro da aldeia já ardia, acendida pelas mulheres. Apesar da casa da reunião já ter sido terminada, desde que não nevasse ou chovesse, muitos preferiam continuar ali ao ar livre, em vez de fechados atrás de paredes.
À medida que a luz desaparecia e o número de pessoas em volta da fogueira crescia, também os murmúrios acerca do prisioneiro se faziam ouvir. À semelhança das crianças, também os adultos atiravam pedras, ossos, ou mesmo brasas ao cativo.
A chegada de Erem e Zia impôs algum respeito e os grupos familiares retomaram as suas atividades normais colocando pedaços de carne sobre as brasas que depois dividiam entre si. Alguns bebiam uma pasta de água e cereais mal triturados, acompanhados de carne seca. Tudo era melhor quando havia fruta, mas, para já, tinham de se contentar com algumas bagas ou amêndoas e nozes bolorentas.
Faltava apenas um dos grupos de caça… especificamente o de Naci e Fikri, que era o que normalmente se arriscava mais a afastar-se mais da aldeia, mas também era frequentemente o mais bem-sucedido.
Em volta da fogueira, as famílias faziam a refeição e falavam entre si ou em conversas cruzadas com os grupos vizinhos. Erem e Lemi, em grupos separados, debatiam o que deveriam fazer com o prisioneiro. Este último era de opinião que tinham de o matar; era culpado de roubo e quase de certeza matara ou colaborara nas mortes do último assalto. Ou entregavam-no aos familiares das vítimas para se vingarem, como muitos exigiam, ou sacrificavam-no aos deuses.
Nehir, normalmente silenciosa nestes debates, interveio: “Swol e Mensis acasalaram e velam pelos homens desde Manu[1]. Trazem a noite e o dia, as plantas e os animais que comemos, tudo isso para que os seus filhos não precisem de se matar e comer ou serem comidos. Matar outros homens é mau. Os deuses não gostam.”
Zia assentiu para os outros gravemente e depois sorriu e acariciou carinhosamente o braço da filha.
Apesar da conversa importante, Erem estava distraído, atento a todos os movimentos para além da fogueira, sempre na esperança de ver chegar Naci e o seu grupo de caça. Ele era o seu eterno rival, que contestava a maioria das suas decisões, mas era também o alvo da sua admiração, amor e desvelo. Amava os outros filhos, claro; Nehir, a curandeira, sempre serena, atenta e mística, Asil, que escavava as pedras e bocados de madeira transformando-os em objetos de culto, Altan e Tekin, os mais velhos e mais sensatos. A angústia instalou-se-lhe no peito ao lembrar Nuri, morto pelos homens-macaco. Ninguém poderia duvidar do seu amor por todos os filhos e orgulho em todas as suas conquistas, mesmo as de Asil, que alguns homens desprezavam como sendo fraco e pouco dado a lutas; as suas esculturas de madeira levavam longe o nome de Barinak e as pedras do seu amado santuário ficavam maravilhosas após terem sido escavadas por ele… só era pena que demorasse tanto tempo. Às vezes ia espreitá-lo nas suas visitas ao santuário, a bater diligentemente com um pedaço de basalto num dos enormes monólitos até conseguir extrair da sua superfície o focinho de um leão, um cervo, ou mesmo um gafanhoto. Mas era Naci a sua eterna fonte de preocupações; arrojado, atirava-se de peito aberto a qualquer luta e saía quase sempre vencedor. Os deuses sorriam-lhe desde o nascimento, que acontecera numa noite escura, de grandes relâmpagos e trovões que abafavam os gritos de Zia. Durante o seu crescimento revelou-se um líder nato; os outros jovens seguiam-no cegamente deslumbrados com a sua coragem e ímpeto… mas Erem temia faltar-lhe ainda muita sensatez. Era demasiado jovem e as suas ações punham muitas vezes todos em risco, além dele próprio. Lemi dizia que Birol, o avô, também fora assim, mas foi gradualmente ganhando calma e discernimento.
Erem queria a opinião do filho, embora soubesse que na maior parte das vezes realizaria precisamente o oposto, deixando-o furioso. Servia-se dele como um dos pratos de uma balança onde tentava equilibrar a impetuosidade dele e a sua própria sensatez. Ao mesmo tempo, mostrava ao filho que, na maior parte das vezes, agir sem refletir seria um erro. Naci, porém, achava que o pai ficava velho e fraco e já tardava a hora em que um dos irmãos, ou mesmo ele, deveria tomar o seu lugar.
O chefe estava envolvido nesses pensamentos, com o olhar fixo no miserável prisioneiro amarrado ao poste, rodeado por imundícies e pedaços de comida que adultos e crianças lhe atiraram. Estava completamente nu e a sua pele clara marcada pelas equimoses das pancadas que levara. Só não estava já morto pelo respeito que Erem exigira. Como um animal selvagem encurralado, mantinha-se curvado e os olhos vivos circulavam pelos seus captores, sempre pronto a esquivar-se ao que lhe arremessavam. “Tenho de lhe deixar umas peles para dormir” — Refletiu de si para si. — “Não quero que morra gelado. Precisamos de saber o máximo que pudermos dele e do seu clã. Só então se decidirá o que fazer com ele.”
Murmúrios alterados e pequenos gritos de algumas mulheres fizeram-no olhar para além das casas mais próximas, a distância limitada pela escuridão. Ali pareciam materializar-se dois guerreiros magros, vestidos com túnicas compridas. Traziam o cabelo em finas tranças decoradas com pequenas esferas, empunhavam lanças bem direitas, mais altas um palmo do que eles. Vários membros do clã levantaram-se alarmados e preparavam-se para enfrentar a ameaça, quando, pelo meio dos recém-chegados, passou a trote um dos lobos que Cemil, um dos irmãos de Erem, criara desde filhote. O predador domesticado atravessou calmamente o centro do aldeamento, rosnando aos que estavam demasiado próximos, em direção ao amontoado de troncos onde dormia. Atrás dos estranhos, que se mantiveram imóveis, começavam a sair da escuridão os esperados membros do grupo de caça, seguidos por Fikri e Cemil. Dois homens arrastando uma padiola fechavam o cortejo.
2 comments:
Venho a seguir os acontecimentos como se fizesse parte do clã e, agora, fiquei preocupada ou melhor: ansiosa pelo próximo capítulo.
Esta saga vai avançando com os ingredientes necessários à cativação do leitor, numa perplexidade entre os tempos e os actos primitivos e a “inteligência” que nos convoca a admiração.
Confesso que, em todos os meus pensamentos e suposições sobre os antigos povos, nunca me ocorreram os momentos que, nesta saga, o Manuel Amaro Mendonça tão bem descreve. Não o faz, com certeza, sem um apurado trabalho de investigação – bem hajas, Amaro -, um labor imenso e incrível que traz ao escritor uma dimensão imensurável sobre a vida, a humanidade, o planeta, o caminho percorrido por todos os povos que nos antecederam.
Os leitores habituais das obras do Manuel Amaro Mendonça beneficiam dos conhecimentos que ele partilha nas suas páginas e, quer gostem ou não gostem, não ficam indiferentes ao fermento que ele põe na sua escrita.
Este episódio, o 13, é fabuloso, e de uma enorme importância para quem acompanha a saga “Na madrugada dos tempos…”
Obrigado, Manuel Amaro Mendonça, pelo privilégio que me dás em ler os teus livros. Venha mais um. A saga não pode parar.
Abraço.
Fernando Morgado
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