sábado, 29 de julho de 2023

As Aparências Iludem

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Na Madrugada dos Tempos – Parte 12

 

As pessoas nunca são o que parecem. Nunca.

Nem mesmo quando parecem ser o que são.

A aparência nunca é a essência.

José Luís Nunes Martins

Filósofo e escritor português

 

O céu estava cor de chumbo e o vento uivava como milhares de longínquos lobos. O ar, prenhe de pó e areia, cegava e ardia nos olhos.

No meio da planície árida, com alguns troncos esquálidos aqui e ali à laia de árvores, os dois leões, um mais jovem que outro, rosnavam-se mutuamente como que discutindo opiniões contrárias.

Repentinamente, saída do nada, uma descomunal matilha de hienas de dentaduras proeminentes e aguçadas pingando baba soltava tétricas gargalhadas nervosas enquanto rodeava ameaçadoramente a dupla. Atiravam dentadas no ar, estalando os dentes, enquanto quase se afogavam em saliva, fazendo os ameaçados rodarem sobre si próprios, nunca perdendo as sanguinárias criaturas de vista.

Por fim, como que respondendo a um sinal, as hienas lançaram-se sobre os dois leões, que se defenderam com garras e coragem típicas da sua espécie.

O combate durou poucos minutos, mas várias das atacantes jaziam em agonia com ossos partidos ou pavorosas lacerações de onde lhe jorrava a vida. As restantes fugiram rapidamente, dentes escorrendo baba e sangue, soltando gritos e gargalhadas que mais pareciam choros apavorados.

O mais jovem dos leões partiu à desfilada atrás dos traiçoeiros atacantes, desprezando os seus próprios ferimentos. O leão mais velho deitou-se pesadamente, cansado, lambendo as dezenas de feridas a que conseguia chegar com a língua. No seu dorso, porém, alguns dos profundos rasgões feitos pelas dentadas haviam conseguido penetrar o grosso couro e expor a carne rubra e sanguinolenta.

Ainda mal o leão jovem desaparecera na distância quando parte do grupo das hienas regressou, muitas exibindo as feridas da luta anterior, mas com a mesma determinação. Sem dar tempo a resposta, lançaram-se sobre o velho leão num frenesim de dentadas e gritos e gargalhadas até se cansarem, saciadas e afastarem-se de uma massa ensanguentada e disforme de ossos.

Uma das criaturas mais afastada do grupo focou-se de repente nela, observadora de toda a tragédia. Os seus olhos pequenos e redondos constatavam a sua presença, os dentes pingando sangue arreganharam-se e, com uma gargalhada, atacou!

Zia acordou com um grito sufocado. Estava completamente despida, encharcada em suor, deitada ao longo de um pequeno tubo onde mal cabia.

Respirou sofregamente tentando acalmar o bater violento e descompassado do coração, ainda apavorado pelo terrível pesadelo que a atormentara.

Lentamente acalmou-se e conseguiu respirar em profundidade, enchendo bem de ar a parte inferior do diafragma e soltando lentamente até o próprio coração ficar com as batidas normalizadas.

“Tenho de deixar de fazer isto.” — Reconheceu, enquanto soltava as pedras que tapavam a cabeceira do estranho compartimento. — “Tenho de começar a ensinar uma das crianças…”

Assim que ela removeu as primeiras pedras, rapidamente surgiram outras mãos a ajudá-la e a afastar as obstruções e a limpar o chão por onde arrastaram a sacerdotisa, colocando-a em pé. Esta, nua, coberta de transpiração e pó, rodeada por mulheres, foi tapada com peles e o seu cabelo sacudido do pó.

“… que pena Nehir não se interessar pela adivinhação e pelas forças do mal que tentavam contrariar os desígnios dos deuses… — Zia continuava os seus pensamentos, alheada dos cuidados para com a sua pessoa — … continuava a ser ela, já velha, a ter de beber o sumo da flor-de-fogo, para através dos sonhos perceber o que as divindades tinham para lhes dizer.

Os joelhos fraquejaram-lhe e as companheiras agarraram-na enquanto lhe punham um cepo de madeira no chão para que se sentasse.

Erem irrompeu sem dificuldades pelo círculo protetor formado pelas mulheres e ajoelhou junto da sua companheira.

— Então? — Interrogou de chofre. — Que viste?

— Não sei bem. — Suspirou ela, a cabeça pesada e os olhos semicerrados. — Preciso descansar, depois penso melhor sobre o assunto.

— Mas que viste? — O chefe insistiu.

— Não sei! — Reafirmou atordoada pelo cansaço. — Leões e hienas… à luta…

— E que mais?

— Não sei! Preciso descansar! — Ela arregalou-lhe os olhos e levantou a voz. — Não consigo pensar, está tudo baralhado na minha cabeça. — Depois acalmou-se e olhou suplicante para as companheiras. — Levem-me para a minha casa.

Zia dormiu durante quase o resto do dia. Não acordou para comer, se não já ao anoitecer e apenas para beber água e roer um pouco de carne seca, pensativamente. A sua visão perturbava-a e temia compreender o seu sentido; o velho leão seria deixado sozinho e despedaçado pelos inimigos… expedições como o ataque aos homens-macaco, que deixaram a aldeia desprotegida, poderiam ser o fim de tudo. Mas seria um aviso, ou um vislumbre do futuro? Com o inverno a prolongar-se e a falta de alimentos a fazer-se sentir, os grupos de caça eram maiores, percorriam mais distância e ausentavam-se mais tempo, também aí poderia haver perigo.

Erem respeitou o silêncio dela embora não deixasse de a observar, preocupado. Anoitecia quando regressou a casa. O frio lá fora fez com que todos regressassem cedo; a caça rendera um pouco melhor que o dia anterior, os grupos combinados com os estrangeiros tinham bons resultados, mas tudo deveria ser racionado e havia quem não quisesse partilhar. Vinha carrancudo e meditabundo quando entrou e deparou com a mulher sentada nas peles junto à fogueira a comer. Era bom sinal. Sentou-se ao pé dela em silêncio, sentindo o cheiro a fumo e a transpiração que enchiam a divisão. Pelo buraco do teto de onde saía o fumo conseguia ver a ominosa estrela brilhante que arrastava uma cabeleira de luz atrás de si.

Por fim ela resolveu falar e contou-lhe pormenorizadamente a sua visão, transmitiu-lhe os seus receios e comunicou-lhe a decisão de passar a trazer consigo uma ou duas crianças. A conversa prolongou-se durante horas até a lenha estar transformada em apenas brasas. A tudo o chefe acedeu e sugeriu as netas Cansu e Atye, respetivamente as filhas mais novas de Altan e Tekin, que eram suficientemente pequenas para começar a aprender. Zia, porém, disse precisar de alguém mais velho que tomasse contacto com ensinamentos mais complexos… se acontecesse algo antes das crianças estarem preparadas ficariam sem alguém para implorar aos deuses. Achava que Kiraz, viúva de Oran, um dos filhos de Lemi, parecia ter o necessário.

Erem ficou contente por tudo continuar na família e concordou que teriam de manter mais guardas na aldeia, até porque os homens que enviara aos povoados em redor relatavam também ataques e roubos de maior ou pequena monta. Os homens-macaco não eram, afinal, os únicos ladrões da região.

Quando finalmente se deitaram e abraçaram debaixo das peles ao lado do lume reavivado, Zia adormeceu imediatamente, mas Erem não conseguiu. O significado da visão não era ainda claro. Quereria dizer que o clã estava condenado? Aconteceriam divisões entre eles e os que restavam seriam exterminados? Se o leão representava o clã, quem eram as hienas? Inimigos internos ou externos? Será que o facto de permitir que os estrangeiros vivam entre eles era a semente para a destruição do clã? O tempo que deveria passar a dormir desvaneceu-se nestas cogitações até que o cansaço o venceu.

Ainda o sol não nascera quando foram acordados por gritos agitados de homens e mulheres.

Acorreram à agitação que acontecia perto da casa armazém. A multidão que se juntava abriu alas para o seu chefe que deparou com dois homens caídos. Um, estava morto quase de certeza, a avaliar pela quantidade de sangue que jazia empastado ao lado da cabeça, mas o outro, apesar dos vários ferimentos nas mãos e no rosto, mexia-se bem; deitado de costas, as mãos erguidas numa prece, chorava e implorava num idioma estranho.

Alguns dos guardas do armazém, excitados, explicaram de forma ofegante e nervosa o acontecido; cerca de cinco estranhos atacaram o homem que guardava a entrada tendo sido surpreendidos pelos dois que os aguardavam na parte de dentro. Com os gritos de alarme e o acorrer de mais guardas, os atacantes lograram fugir, com a exceção daqueles dois. Eram estranhos à aldeia e não falavam a língua de nenhum dos povoados em redor.

Erem fitou o homem vivo com intensidade que, pressentindo a autoridade nele, arrojou-se a seus pés, arengando num choro histérico. Os pensamentos do chefe, porém, não estavam no estranho em si, mas no que representava a presença de povos de outras regiões numa área que começava a estar sobrepovoada. As novidades não se ficavam, contudo, por ali. Um dos netos de Lemi, gritava para quem o quisesse ouvir que o invasor morto trazia ao pescoço o colar que oferecera à sua prometida, que fora assassinada durante o último ataque dos homens-macaco a Barinak… tudo indicava que afinal os atacantes foram outros. A terrível constatação pesava fortemente sobre o coração de Erem; destruíram e mataram um clã inteiro baseados numa suspeita que agora se revelava falsa.


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A SEGUIR

11 - O Povo de Barinak


13 - O Cativo


Introdução
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1 comments:

Fernando Morgado disse...

Aos olhos de quem vive, a bem ou a mal, a era da globalização, a era em que se perdem identidades e se descarta o pensamento pessoal, a favor da imposição de um pensamento único, a narrativa dos primórdios da civilização é estranha, ou nem tanto, uma vez que expõe as diferenças – crenças, pensamentos, costumes, línguas, regras – que foram sendo combatidas e construídas até chegarmos aos dias de hoje, mesmo que, infelizmente, ainda sobrevivam julgamentos na praça pública em tendo em conta os preconceitos, como a cor da pele, a opção de vida, a literacia e a condição económica e social.
Neste conto, fica bem claro que essa luta pela aproximação dos povos foi e é muito difícil.
Parabéns, Manuel Amaro Mendonça.

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