Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Na Madrugada dos Tempos – Parte 1
É incerto o lugar onde a morte te espera;
espera-a, pois, em todos os lugares.
Séneca
(Filósofo romano do século I)
Ouvia-se o choro soluçante fora da casa redonda erguida com pedras e lama, coberta por um telhado de colmo e com a entrada tapada por uma cortina de cor incerta. Lá dentro, uma mulher de cabelo desgrenhado e rosto sujo, vestindo uma túnica grosseira e comprida de pano cru, pranteava desconsoladamente. Estava sentada no chão de terra e com os pés descalços na cova recentemente escavada no centro da única divisão, mesmo ao lado dos restos queimados e apagados da madeira com que diariamente se aqueciam. Os lamentos dela produziam pequenas nuvens de vapor no ar gelado da tarde de inverno.
Do exterior ouviam-se mais gemidos de mulheres misturados com as vozes iradas de homens e essa algazarra irritava-a e fazia-a querer chorar ainda mais alto.
Dois homens vestidos de enormes cabeleiras e barbas hirsutas, envergando túnicas de pele curtida, afastaram a cortina e entraram, algo a medo e depositaram braçados de três ou quatro seixos do rio, cada um maior que o tamanho de dois punhos, ao lado da fogueira apagada. Assim que saíram, outros dois se lhe seguiram e assim continuou até se formar uma pilha que dava pela altura dos joelhos.
Fez-se um silêncio repentino do lado de fora e só o choro da mulher, agora murmurando uma ladainha incompreensível se fazia ouvir.
Um coro de uma cantilena chorosa começou no exterior, destacando-se as vozes agudas femininas e sons guturais masculinos.
Outros dois homens entraram, os seus cerdosos cabelos e barbas estavam cobertos de cinzas e transportavam, pendurado pelos braços e pernas, o corpo franzino e inanimado de um jovem onde ainda mal despontara a barba. O corpo pálido, magro e ossudo, envergava apenas uns pequenos trapos de pano cru por bragas.
— Cala-te mulher! — Censurou asperamente o recém-chegado mais velho. — Já chega!
— Eu é que sei se chega! — Ripostou de imediato a mulher, o rosto sujo de cinza borratado pelas lágrimas era uma máscara de terror. — Era o meu filho e choro-o como e quanto quiser! — Tirou os pés da cova e sem se levantar, virou as costas aos dois homens.
O corpo foi depositado cuidadosamente em posição fetal no buraco, sem esquecer o cuidado de lhe colocar uma das mãos sob a cabeça, como se estivesse adormecido. Tinha sido cuidadosamente lavado e várias nódoas negras destacavam-se na pele quase transparente. A seu lado, ao alcance da mão, colocaram-se respeitosamente uma lança de madeira e um machado cuja lâmina era composta de uma pedra chata cuidadosamente afiada. Próximo da cabeça, depositaram uma lebre morta, um recipiente de barro com azeitonas e outro com nozes. Junto da cinta pousaram uma cabaça com água.
O homem mais velho empurrou a mulher para o lado com um safanão e um empurrão para se poderem chegar ao monte de godos brancos. Os seixos foram usados primeiro para preencher todos os espaços livres à volta do corpo e depois para o cobrir e, assim que já nada era visível, começaram a cobrir a sepultura deitando a terra com os pés e as mãos.
Lá fora a cantoria transformara-se numa algazarra de machos que gritavam e se instigavam como se numa luta estivessem, enquanto corriam e cabriolavam em volta do casebre enquanto em fundo as fêmeas carpiam alto.
Assim que os dois homens terminaram a cobertura, quase em simultâneo, a cantoria terminou repentinamente. O mais novo saiu da casa passando exatamente por cima da sepultura acabada de tapar e logo um outro entrou e passou pelo mesmo sítio, tornando a sair e assim sucessivamente até todos os elementos masculinos passarem, pelo local e só o homem mais velho e a mulher ali restarem em pé junto da campa.
Agarraram os restos apagados da fogueira e colocaram-nos sobre a sepultura recente, para que mais logo se acendesse o fogo que aqueceria a todos, agora aconchegado pelo elemento da família que partira.
O homem gritou com a mulher que continuava a chorar e deu-lhe uma lambada que a atirou ao chão. Ela ergueu-se de um salto e gritou com ele batendo-lhe por sua vez. Trocaram uma sequência de socos e tabefes entre eles, sendo evidente que que a força masculina iria prevalecer.
A cortina da entrada abriu-se bruscamente e entraram dois homens armados com lanças.
— Que estás a fazer pai? — Perguntou o mais alto deles. — Vais ficar aí a gritar e a carpir como as mulheres?
— Se não vieres, não és mais filho do meu irmão! — Vociferou o outro.
Foi a vez da fêmea empurrar o macho, agarrar com força uma lança que estava encostada à parede e colocar-se sobre as cinzas e lenhos acabados de colocar.
— Se ele não tem coragem de ir vingar o filho, tenho eu! — Exclamou a mulher altivamente. — Tanto posso empunhar a lança para matar um porco bravo, como para matar o assassino do meu filho!
Do lado de fora, obviamente escutaram-se as palavras de desafio e um coro de gritos guerreiros responderam ao apelo.
— Temos de ir atrás daqueles homens-macaco, invadir as grutas e acabar com todos! — Sentenciou o outro homem. — Como são mais fortes que nós, não conseguimos disputar-lhes a caça e roubam-nos aquilo que caçamos. Mas chega! Verão que não temos medo deles e não tornarão a fazer mal a um dos nossos!
Parte 2 – O Clã do Leão da Montanha | |
4 comments:
Interessante, a forma pormenorizada como descreveu este enterro. Remetendo-nos a épocas remotas, a outras gentes, mas que afinal são nossos antepassados. A vida humana é tão curta que por vezes esquecemos, que nem sempre fomos o somos hoje, e sim uma espécie em evolução. Gostei bastante. Muito obrigada por partilhar.
Gostei imenso caro Manoel Amaro. Creio que os descendentes de godos, visigodos e celtas estão orgulhosos de ti.
Olá boa tarde.adorei ler o seu conto.Manuel Amaro Mendonça.muito obrigado.excelente.
Um conto que me remete para a idade da pedra, a idade da escuridão e da ignorância, vistas do lado de cá, do século XXI, mesmo que neste tempo ainda existam comportamentos remanentes de uma outra escuridão.
Destaco a beleza do texto, a dinâmica narrativa do Manuel Amaro, sempre copm textos muito bem organizados.
Por fim, fica a certeza de que sempre foram as mulheres que melhor defenderam os seus parentes e os seus bens. Os homens desse tempo jogavam à caça, celebravam cobardias com "lutas" ébrias, e pouco mais. As mulheres continuam a ser o pilar, a base da sociedade. Sem elas, estaríamos ainda a lascar pedra.
Parabéns, Manuel Amaro.
Fernando Morgado
Enviar um comentário