Debaixodosceus.pt e Amazon.com: Uma parceria de sucesso
2017 Publicação "Daquele Além Marão"
2020 Foi criada a nova imagem
2017 Apresentação na Casa dos Transmontanos do Porto
2022, Pela primeira vez, publicação em capa dura além de capa mole
2017 Apresentação na Confeitaria Luso-brasileira
2020 Publicação "Entre o Preto e o Branco"
2017 Apresentação no CITICA de Daqueles Além Marão
2016 Apresentação no CITICA de "Lágrimas no Rio"
2016 Publicação de Lágrimas no Rio
2016 Apresentação no ISLA de "Lágrimas no Rio"
2015 "Terras de Xisto" - A primeira publicação
2022 Publicação de "A Caixa do Mal"
2022 Devido ao seu sucesso, "Lágrimas no Rio" tem 2ª edição
2022 Publicação "Na Sombra da Mentira"
2022 Publicação "Depois das Velas se Apagarem"

terça-feira, 12 de maio de 2015

Luis e Isabel

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Luís olhou demoradamente o rosto de linhas perfeitas, adormecido entre os alvos panos rendados.
O corpo magro mas bem proporcionado deitado no ataúde, envolto em rendas e flores, quase parecia uma boneca de jade numa caixa.
Por momentos, também ele fechou os olhos com força para reter as lágrimas que pareciam querer explodir fruto da dor que morava em seu peito.
Não podia entender como fora tão cego... como deixara que tudo aquilo tomasse o rumo que tomou e desencadeasse numa trama incontrolável.
Amar demais também é erro...
Não conseguira nunca dizer que não àquela mulher.
Como era possível dizer-lhe que não?
Como era possível desgosta-la? Se ela dizia que queria algo, ele desdobrava-se em esforços para o conseguir. Se ela dizia que não gostava de algo, ele desfazia-se imediatamente do que fosse... por mais que lhe custasse.
Quando deu por si, toda a situação fugira do seu controlo e ela, que ele tanto amava, por quem ele se desdobrava em agrados e atenções, achou que já chegava... e partiu para os braços de outro homem.
Desde que perderam a criança com poucos meses de gestação num aborto espontâneo, aquela Isabel, doce, alegre e feliz, tornou-se mimada, fútil e sem conseguir dedicar-se ao que quer que fosse mais do que uns escassos minutos seguidos. Alternava entre períodos de melancolia e frenética alegria.
Agora tudo parecia distante e nubloso, mas ao mesmo tempo vivido e doloroso.
Claro que ele compreendeu e aceitou as explicações dela para acabar o casamento...
… os belos olhos azuis marejados de lágrimas num pedido de desculpas desesperado, gritado e implorado.
… quem pode recusar a liberdade à bela ave que conservamos numa gaiola? Por mais dourada que ela seja?
“Amo-te demais” conseguiu ele dizer numa voz estrangulada pela dor “para te prender num sítio onde não queres estar.”
E ela, esplendidamente bela, soltou gritinhos de felicidade, deu-lhe abraços e molhou-lhe o rosto com as suas lágrimas salgadas... misturando-as com as dele:
“Eu sabia que ias compreenderias meu amor.” ela não percebia como essas palavras eram facadas dolorosas no coração fraco dele.
Também por amor, compareceu num casamento feliz onde a bela Isabel se uniu ao hercúleo Carlos. Não conseguiu sentir raiva de nenhum deles.
Seis anos se passaram e estava tudo ainda tão claro na sua mente.
Numa interrupção das recordações, fitou de novo o rosto dela, percebe que possui uma serenidade e uma majestade que ele não notara antes. As pálpebras, caídas sem esforço sobre os olhos que ele sabia azuis, eram como um reposteiro que abriga da luz do sol mantendo todo o universo na penumbra.
Era assim que ele se sentia agora... afastado do seu olhar, numa penumbra eterna, num purgatório do qual não sabia se sairia algum dia.
Lembrava-se ainda da ultima coisa que lhe escrevera... que não tivera coragem de lhe mostrar, como milhares de outras coisas que não tivera coragem de dizer ou fazer;


Tivesse eu palavras,
Para descrever a dor que me consome o peito.
Conseguir explicar a amargura que ferra a alma.
E as lágrimas que me queimam os olhos.
Tivesse eu palavras,
Para te dizer como és importante para mim.
Mostrar-te como é vazia minha vida sem ti.
Como fica vazio o meu coração sem teu amor.
Tivesse eu palavras,
Para implorar que fiques.


Já lhe tinha dito que podia seguir uma outra vida, longe dele, se essa era a vontade dela... e ela foi. E ele deitou fora o papel manchado pelas lágrimas que continha aquelas palavras. Como se assim encerrasse aquela página da sua vida e fechasse a porta ao sofrimento. Não conseguiu porém evitar que ficassem gravadas a fogo na sua memória.
Os anos seguintes foram pancadas que pouco a pouco iam doendo menos, ou às quais ele se dando menos importância. Com o tempo, um Luís magríssimo começou a conseguir manter uma relação amorosa com uma colega do emprego.
Até que nuvens de tempestade assombraram o paraíso e o casamento de Isabel começou a revelar-se problemático.
Por várias vezes os ciúmes doentios dela, infundados ou parcos em provas, causaram separações mais ou menos prolongadas. Invariavelmente Isabel telefonava, lavada em lágrimas, pedindo-lhe desculpas pelo que o fez passar e implorando que a não deixe sozinha.
Invariavelmente, Luís largava tudo o que estivesse a fazer para correr ao apartamento onde viveram momentos tão felizes e do qual nunca se desfizera da chave.
Invariavelmente ela encontrara já o seu consolo na bebida e nos comprimidos para dormir. Limitavam-se a ficar abraçados na cama enquanto ela chorava o sofrimento que Carlos lhe causava numa voz cada vez mais sumida. Até cair no sono.
Invariavelmente Luis telefonava a Carlos a pedir que volte para a mulher e faça por se entender com ela... embora no fundo do seu coração desejasse precisamente o contrário.
Invariavelmente, ao sair daquele tão familiar apartamento, de lágrimas nos olhos, hesitava se deveria ou não deixar para sempre a chave. Invariavelmente levava-a consigo junto ao coração onde a esperança teimava em não morrer e renascia a cada chamada.
Inevitavelmente a sua companheira percebeu que não havia espaço suficiente no peito dele para ambas e deixou-o.
Seis anos, uma vida...
Olhou para Carlos sentado no outro lado da sala, pálido, olhar perdido no infinito. Nunca conseguira odiar aquele gigante bem disposto, por muito que tentasse. Acabou sempre por fazer o possível para que eles se dessem bem, a felicidade de Isabel estava acima de tudo.
Nos últimos meses as crises sucediam-se mais amiúde e as separações entre eles mais prolongadas. Luís ainda passou uma ou duas noites no apartamento com ela, sem que acontecesse nada entre eles. Ela pedia-lhe que não a deixasse e ele ia ficando, em silêncio, ouvindo-a chorar e prometendo que ficaria até que adormecesse. Pela manhã percebia o olhar culpado dela que lhe pedia perdão por se servir do seu amor não retribuído e saía vazio e sem esperança.
Na última noite, cansado de uma semana de muito trabalho, observou a foto de uma longinqua e sorridente Isabel a vibrar no telemóvel. Sem alento, deixou que tocasse até ser atendido pelo correio de voz. Ela insistiu mais três vezes com o mesmo resultado. Da última vez deixou uma mensagem antes de desligar.
Luís colocou o equipamento em silêncio, tentou dormir e ignorar, Após imensas voltas na cama, ao fim de quase uma hora, ligou ao correio de voz para escutar a mensagem.
A voz que chorava, mas que mesmo assim aquecia a alma, implorava:
“Luís, por favor, atende. Eu sei que sempre abusei muito de ti, mas agora chega, acabei tudo com o Carlos. De vez. Preciso de ti meu amor, nunca deverias ter-me deixado fazer o que eu queria, devíamos ter ficado juntos para sempre. Volta, amor.”
A explodir de felicidade ele tentou devolver a chamada mas o telefone estava fora de serviço. Apercebeu-se que havia outra mensagem; a amada voz, nitidamente alcoolizada, sentenciava:
“Acabei de passar em tua casa e vi o carro à porta. Percebo que estejas cheio de mim e tens toda a razão em não me perdoar. Sou uma estúpida que não soube o que fazer da vida e só trouxe infelicidade a todos aqueles que toquei. Achei que eras culpado da nossa infelicidade, de termos perdido o bebé. Culpado pela tua mansa aceitação do inevitável, da tua serenidade perante o inimaginável... Mas a verdade é que, na minha maneira estúpida, nunca deixei de te amar. Espero que me perdoes”
Desesperado tentou mais algumas vezes o telemóvel dela e depois o de Carlos, que também não atendia.
Correu como louco para o carro e para o apartamento dela.
Abriu atabalhoadamente a porta e entrou no quarto de rompante.
Carlos estava sentado na cama ao lado do corpo adormecido de Isabel...
Luís hesitou e preparava-se para sair quando ele, sem levantar o rosto, gemeu: “Acabou tudo.” E ergueu um frasco de barbitúricos vazio.


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segunda-feira, 13 de abril de 2015

Corrécio - Apresentação



Na dureza dos montes transmontanos, nasceu José dos Santos, a alcunha Corrécio, ficou-lhe gravada como que feita por um ferro em brasa.

Criado numa vida com poucas dificuldades e em contacto directo com os ricos, não sabia qual era o seu lugar e teve que o aprender da pior maneira.

Vendo-se privado daquela que amava, continuou vivendo aquele amor adiado e impossível, criando à sua volta uma vida que não era sua, enquanto esperava que algo acontecesse.

(Conto incluído no livro "Daqueles Além Marão" publicado em 30-3-2017)

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Corrécio 4ª e última parte - Achado macabro



Tinham almoçado há cerca de duas horas e ele regressava da segunda  caminhada da tarde, arrastando-se atrás do Catita quando se percebe do alvoroço junto dos vindimadores e de um grupo deles que desaparece a correr pelo carreiro abaixo que vai em direção ao rio.
-         Que aconteceu ti Luisa? - Perguntou a uma mulher que olhava para lá com as mãos na cabeça.
-         Ai, valha-me Deus, Zé. - Veio agora aqui um dos “canalhitos” do Quim Ferreiro dizer que aconteceu uma desgraça lá no rio quando tomavam banho. O filho do Tião escorregou do alto das fragas e caiu à agua. Andam à pergunta dele que não aparece.
Zé amarrou o Catita e correu atrás dos outros.
Junto à margem do rio, metiam respeito as escarpas rochosas que se erguiam de ambos os lados a umas boas dezenas de metros de altura.
Em ambas as margens, grandes fragas ovais circundavam as águas que formavam um lago naquele local antes de se precipitarem de novo  velozmente em direção à foz.
Devido à profundidade, as crianças das duas aldeias usavam frequentemente aquela bacia para tomarem banho nos dias quentes.
Estava já uma multidão à volta do lago. Havia homens em cima das fragas enquanto outros mergulhavam tentando chegar à criança afogada.
No areal algumas mulheres e crianças choravam ruidosamente enquanto, com os pés dentro de água, a tremer, um dos irmãos do desaparecido gritava e chorava o nome dele.
Apesar de ter chovido fortemente há poucos dias atrás, o caudal do rio baixara de dia para dia permitindo a que alguns homens atravessassem a vau para a outra margem.
-         Já o achei! - Gritou um dos homens que mergulhavam. - Está preso nas pedras, no fundo.
-         Arranjem uma corda, ou um gancho. - Gritou outro.
Num instante, vindo não se sabe de onde, já uma corda com um gancho em ferro passa de mão em mão até chegar ao mergulhador que   se atira novamente ao fundo.
Passados uns segundos ele volta e faz sinal para puxarem.
Vários homens fazem força na corda que acaba por ceder e logram puxar o corpo da infeliz criança do fundo do rio.
Logo aparece à superfície um corpo, de bruços e a gritaria e os choros recomeçam após alguns minutos sem respirar à espera do desenrolar da tragédia.
Quando o “mergulhador” se chega ao corpo o o volta, porém, um coro de gritos e exclamações de espanto invade toda a audiência; o corpo que tiravam do rio, não era de uma criança. Era um homem feito, de cabelo claro e barba fina e bem tratada, com o rosto cinzento e os olhos abertos numa terrível máscara de espanto.
-         É o Manel Seminarista! - Gritou alguém.
-         Valha-me Nossa Senhora dos Aflitos! - Gritou uma mulher é o meu sobrinho! Manel, Manel!
Gerou-se o caos com uns a correr para o cadáver outros a correr monte acima para levar a novidade às aldeias.
-         Mas. - O capataz dos Mello chegou ao pé do morto agora deitado numa fraga. - Diziam que fugiu com a menina Paula... Vejam, tem o saco das moedas ainda preso na cintura.
José já tinha visto o suficiente e afastou-se começando a caminhar vagarosamente em direção à aldeia.
Junto ao rio, a confusão continuava:
-         E o rapazito? Temos que achar o rapazito. Esse daí já não precisa de ajuda. - Disse outro homem atirando-se de novo à água.
Vários outros mergulhadores voltaram a fazer-se à água e a revolver os fundos lodosos da lagoa em busca da criança.
Francisco e alguns outros aproveitaram a deixa para revistar o corpo. Nos bolsos encontraram, todos borratados, os bilhetes de comboio e nas costelas havia um ferimento e um pedaço de metal espetado... teria tido um acidente? E que seria então de Paula? Terá fugido? Mas deixou o cavalo também...
As horas passavam-se e os homens começavam a ter dificuldades em manter o ritmo de mergulhos e já faltava esquadrinhar pouco do fundo do lago.
-         Rapazes! Eh, rapazes! - Um outro homem chamava a jusante do rio, mesmo junto da curva. - Vinde cá, depressa.
As pessoas que por ali andavam estavam completamente desconcertadas com o desenrolar dos acontecimentos mas foram vários os que acudiram ao chamado.
No local onde uma velha árvore caíra sobre o rio, estava o corpo sem vida do miúdo. Nos mesmos ramos, mais à frente, estava encravado o cadáver da jovem Paula, vestida à homem e embrulhada num tecido branco. Os olhos verdes, sem vida pareciam implorar ao céu enquanto a cabeça repousava sobre uma imensa aura feita pelo seu cabelo dourado.
Francisco, estarrecido, não estava certo do que fazer mas deu ordens aos homens que trouxessem os cadáveres todos para o mesmo sítio e preparassem umas padiolas para os levar para a aldeia e dar conhecimento ao seu patrão.
Entretanto apareceu um homem com uma turquês, logo seguido por um grupo de curiosos.
Voltaram o corpo do Seminarista e, com a ferramenta, extraíram a peça de metal encravada nas costelas; todos viram perfeitamente que era a lâmina trabalhada de uma faca partida pelo punho.
-         É a faca do Corrécio! - Gritou o Quim da Ribeira.
Entretanto José estava já a chegar à aldeia. Deixara o Catita lá em baixo, mas agora já nada mais interessava.
Pela sua cabeça passavam as imagens de tudo o que acontecera no dia anterior:
Depois de bater em Maria dos Anjos saiu, furioso, decidido a fazer uma espera ao Sardinheiro e dar-lhe as pancadas suficientes para que ele não se tornasse a meter na sua vida. Como a casa dele ficava no extremo da povoação, acoitou-se num casebre abandonado e foi bebendo enquanto esperava.
Completamente embriagado acabou por adormecer e não deu pela passagem do seu inimigo e nem este se apercebeu que esteve quase para terminar mal a sua noite.
Ainda não tinha nascido o sol quando José acordou com o barulho de cascos de cavalo nas pedras.
Espreitou e viu um homem franzino montado num cavalo, também ele pequeno, que avançava pelo caminho que levava às vinhas das ribeiras e à aldeia vizinha.
Percebeu logo que deveria ser Paula e seguiu o cavaleiro a corta mato, estando umas vezes mais à frente e outras mais atrás.
Por fim, aproveitando uma curva larga do caminho, adiantou-se e chegou primeiro à clareira onde Manuel Seminarista já esperava, algo distanciado do seu cavalo.
Nas sombras difusas, José colocou-se entre ele e a montada e falou-lhe:
-         Como conseguiste?
Manuel assustou-se e tentou divisar no escuro quem lhe falava. Mudou de posição e conseguiu ver o rosto do interlocutor:
-         Zé.... - Reconheceu-o – A Paula tinha-me dito que podias causar problemas.
-         Como conseguiste pilha-la, sacana? - Ele insistiu – Como a fizeste cair nas tuas lérias padreco fingido?
-         Eu não sou padre... nem vou ser. - Manuel desculpou-se olhando para o chão.
-         Falso, maldito. A roubar as mulheres dos outros...
-         Não digas isso, se pudesses eras tu quem a levava, não eras? Também tu a roubavas ao bruto do Henrique Mello.
-         Henrique?!? - José soltou um riso nervoso – Ela não é desse espantalho, ela é minha! Sempre foi.
-         Zé, tem calma. Isso já passou, ela mesma me disse que não há nada entre vocês. Apenas houve um namorico de crianças.
-         Ela é minha! - Gritou Corrécio fora de si. - E tu vais já embora daqui. Pega esse bilhete que tens e apanha o comboio e desaparece. Falso padre, bandalho.
-         Isso não vai ser possível. - Manuel estava decidido. - Ela deve estar a chegar. Vai tu embora, não tornes as coisas mais difíceis do que são.
-         Já te disse que quem vai embora és tu. Desaparece!
-         Estás louco? Porque hás-de assustar a mulher que ambos amamos? Ela quer ir comigo, deixa-a, resigna-te, se queres mesmo a felicidade dela.
-         A felicidade dela há-de ser comigo! - E dito isto atirou-se ao Seminarista com uma tempestade de socos que o jovem só conseguiu defender-se de alguns.
Depressa estavam os dois envolvidos numa luta silenciosa, a rolar no chão, tentando cada um ter a supremacia sobre o outro.
Por fim, José, mais forte e com mais prática de luta, deixou Manuel atordoado no chão e levantou-se, assestando-lhe dois violentos pontapés:
-         Vais embora ou não vais? - Sussurrou Zé ao ouvido da sua vítima.
-         Sim, vou, eu vou. - O outro gemeu enquanto se erguia agarrado às costelas. - Mas antes acabo contigo!
E dito isto atira-se novamente sobre o Corrécio. Estão ambos perigosamente perto do penhasco que desce em linha reta para as fragas no rio. Uma faca brilha no escuro e os gemidos de Manuel denunciam as duas facadas que recebeu por entre as costelas. José fez questão de remexer a faca na ferida e deixar o corpo do outro pendurado na estocada.
Estão assim os dois abraçados quando Paula sai das sombras e se apercebe do que se passa:
-         Zé, Manuel! Que fazem? Parem já com isso!
Surpreendido, Corrécio empurra o corpo do seu oponente para longe de si sem mostrar a faca que estava cravada.
Manuel cai de joelhos e rebola do penhasco para o vazio, sem um gemido, ouvindo-se a pancada surda nas pedras e logo a seguir na água.
Paula soltou um grito terrível ao assistir a toda a cena.
-         Espera, meu amor, tem calma. - Zé tentava acalma-la mas ela, de cada vez que ficava sem fôlego, inspirava e recomeçava a gritar. - Não grites, espera, fujamos nós, espera.
Ela continuava a emitir gritos desesperados, completamente rígida pelo horror e o pânico. Corrécio tenta desesperadamente cala-la tapando-lhe inutilmente a boca e balbuciando palavras desconexas. Por fim conseguiu cala-la apertando-lhe o pescoço. Apertou, apertou e apertou até que ela se imobilizou.
Esgotado, Zé deixou-a cair e sentou-se ao lado dela no chão:
-         Vês? Porque não te calaste? Eu não te queria fazer mal.
Ao fim de um bocado ficou finalmente consciente que ela não se mexeria mais. Andou em círculos sem saber o que havia de fazer e aproximou-se da borda do penhasco. Não se conseguia ver nada mas ouvia-se o rugir do rio ainda forte pelas chuvadas de há uns dias atrás.
Junto da égua de Paula estava uma pequena trouxa com a roupa feminina que estava combinado trazer. Abriu-a, tirou a saia branca  comprida e embrulhou o corpo franzino da jovem. Colocou alguns pedaços de xisto da casa arruinada ali perto e rolou o embrulho pela borda do penhasco.
De novo a pancada surda nas fragas antes da pancada final na água.
Pegou os dois cavalos pela arreata e desceu todo o caminho até à estação dos comboios onde os amarrou nas argola existente para o efeito.
Os montes a nascente pintavam-se já de vermelho quando Zé, sem fôlego, completamente esgotado pela caminhada de quilómetros sempre a subir, entra em casa cambaleante.
Fora exatamente assim que tudo se passara ontem, esta madrugada... e parecia que tinha sido há um milhão de anos.
José abriu a porta de casa e lá estava Maria dos Anjos a preparar a ceia, boa esposa e submissa.
-         Já cá estás? - Ela admirou-se. - Já acabou a vindima nas ribeiras?
Sem lhe responder, de olhos fixos no infinito, ele pega numa cabaça com vinho, bebe três longos goles e senta-se à mesa.
Após um longo silêncio, com a mulher a olha-lo, assustada, ele olha-a e com lágrimas nos olhos pergunta-lhe:
-         Que vai ser de ti e dos nossos filhos, mulher?


Epílogo


É ali, calmamente sentado à mesa em sua casa, numa calma e serenidade que nunca teve, que o Regedor, acompanhado dos voluntários do Concelho vai dar-lhe voz de prisão.
Levaram-no, com as mãos amarradas, até uma carroça, seguido de perto pelo pranto da mulher da mãe e dos filhos.
João e Mariana choravam à porta da taberna não se sabe se pela infelicidade da filha se pela desgraça do genro.
A aldeia em peso, uns escondidos, outros à vista, observaram o triste cortejo como quem segue um funeral.
Apenas os dois jurados inimigos, o Sardinheiro e o Quim, voltaram as costas com um “bem feito!” para se irem emborrachar na taberna.

A partir daí tudo foi muito rápido. Preso e julgado no tribunal da vila, foi sentenciado à morte.
Ainda esperou perto de um mês para que chegasse a carta do rei com a recusa para o pedido de clemência feito em seu nome.

Foi numa manhã fria e chuvosa de Dezembro que o tiraram da cela escura e húmida e o levaram numa carroça pelas ruas da vila até ao largo onde estava erguida a forca.

Assim se acabou o Zé Corrécio, como o seu sonho num amor impossível; pendurado sem esperança numa corda. 




FIM



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Corrécio 3ª parte - Vida dura



-         Zé!, Ò Zé. - A voz chegava longínqua, estridente, a querer arrancá-lo do doce torpor em que se encontrava. - Zé, acorda, homem de Deus que já nasceu o sol faz tempo.
-         Que queres? - Rosnou mal humorado, soerguendo-se.
-         Acorda, que já está todo o povo p'rá vindima. Esta noite fechaste as portadas e eu não senti o sol nascer nem o cantar do galo.
A mulher de rosto redondo, já vestida, lenço colorido na cabeça, corpete, blusa branca e saia rodada de cotim, chamava-o preocupada.
-         E que queres que te faça? - Sentou-se na borda da cama vestido apenas com as ceroulas e com os pés descalços nas tábuas do soalho – Tou cá com uns azeites que se não fosse por nada nem ia trabalhar... - Esfregou os olhos.
A mulher fitou o corpo pálido, com vários hematomas, do marido. As mãos que esfregavam os olhos e desapareciam debaixo da cabeleira encaracolada negra tinham feridas nos nós dos dedos.
-         Andaste outra vez à bulha, Zé Corrécio, excomungado! - Exclamou ela.
-         E se andei? - Ergueu-se e empurrou-a violentamente para o lado erguendo a mão como se a fosse esbofetear.
Ela encolheu-se à espera da bofetada mas ele mudou de ideias e com novo empurrão dirigiu-se à bacia da água em barro que estava pousada na cómoda ao lado do jarrão do mesmo material.
Já se haviam passado cerca de oito anos desde que se casaram e o seu comportamento para com ela alternara sempre entre a indiferença e a brutalidade com sexo embriagado à mistura.
Ela era a filha do taberneiro, mais nova que ele e em quem ele não reparava. Ele era o Zé Corrécio, brigão, valente, que levara uma “saronda” do velho fidalgo por lhe andar a rondar a filha.
Aos seus olhos ele era admirável, mesmo quando se envolvia nas rixas, que ganhava a maior parte das vezes, e era corrido da taberna pelo seu pai, João Francisco, que apesar de tudo sempre respeitou.
Um dia, os oponentes eram três e ele levou uma “malha” tão grande que ficou desacordado no chão. Foi o ti João taberneiro que correu com os adversários a varapau, salvando-lhe a vida.
Como os pais do Zé Corrécio não lhe falavam há algum tempo devido às “vergonhas” que este lhes fazia passar com bebedeiras e rixas constantes,  João Francisco e a mulher Mariana de Jesus acolheram-no, temporariamente, num dos quartos da taberna que também servia de estalagem.
Calhou a Maria dos Anjos, felicíssima com a sua sorte, a maior parte do trabalho de cuidar do ferido. Este, com os desvelos da jovem, recuperou rapidamente e reparou finalmente na admiração de que era alvo.
Assim que se encontrou melhor, ti Mariana achou por bem que o jovem voltasse para o casebre onde vivia e saísse de ao pé da sua filha virgem e casadoira.
Era já tarde, porém. Maria dos Anjos estava grávida.
Embora furiosos, os taberneiros viram-se obrigados a a falar com os pais do José e obrigarem o jovem a corrigir a “sua falta” e casar com Maria dos Anjos.
Tantos anos depois, ela ainda não conseguia deixar de amar aquele homem que nada fazia para alimentar esse amor.
Ele lavou o rosto com ruído enquanto ela, perdido o medo, o observava desaprovadoramente de mãos na cinta:
-         A  minha mãe disse que o meu pai te ia proibir de ir lá beber à taberna se tornasses  a armar tourada por aquelas bandas.
-         Sossega Maria dos Anjos... Não foi na taberna. Foi mais um ajuste de contas com um tratante, mas agora já está tudo em pratos limpos. Prepara aí uma côdea, vá, que tenho que ir. - Exigiu enquanto vestia a camisa e as calças.
Preocupada, a mulher obedeceu e foi à cozinha preparar uma lasca grossa de pão centeio e uma fatia de presunto que dobrou cuidadosamente num retalho de pano. Ao lado depositou uma maçã (que sabia que ele não levaria) e a bota com o vinho que não podia faltar.
Ele pegou a colher e a malga de madeira com a sopa fria e comeu tudo em quatro colheradas.
-         E a canalha? - Ele perguntou ao pegar na merenda e limpando a boca com a manga da camisa – Não os acordas?
-         Não. Estou atrasada a ti Luísa depois vem a trazer-lhes de comer e a vesti-los. - Referiam-se aos filhos Olinda e João de cinco e sete anos respetivamente.
-         Vê lá se começas a por os ganapos a fazer alguma coisa. Não me cries aqui dois madraços ou encho-te de lambadas. - E enquanto fazia esta ameaça, pegou a faca de cozinha que estava em cima da mesa e prendeu-a na cintas.
Saiu, batendo a porta com estrondo e logo se ouviram soar as tamancas de madeira ritmadamente pelo caminho.
A passo, pôs o chapéu em palha com abas largas, que detestava, na cabeça e correu pelo canelho para buscar o cavalo.
Chegado à vinha, já toda a gente trabalhava em bom ritmo e teve que ouvir um “ralhete” do capataz antes de pegar ao trabalho, advertindo-o que, se tornasse a atrasar-se, escusava de aparecer.
João bem sabia que só trabalhava naquelas vindimas porque  pertenciam ao marido de Paula, o Dr Henrique de Mello, desde o casamento com ela. Se continuassem na posse do velho Sampaio, não haveria ali nada para ele.
Ensonado, começou as suas “caminhadas” com o cavalo carregado até à carroça com as dornas.
Demorava cerca de vinte minutos em cada viagem de ida e volta e conseguiu fazer quase dez viagens antes de darem ordens para parar para o “mata-bicho”.
Todos os trabalhadores se reuniram nas paredes que compunham os socalcos para fazerem um pequeno intervalo e comerem alguma coisa que trouxessem ou simplesmente descansarem um pouco.
Zé manteve-se, como sempre, sozinho. Roeu a côdea e mordeu o presunto que acompanhou com umas goladas do tinto granjeado por ele e por seu pai com quem tinha reatado alguns anos atrás.
De repente notou que o Zé Sardinheiro e o Quim da Ribeira falavam em sussurros deitando-lhe olhares de soslaio.
-         Que foi? Não vos chega a bucha? Querem a palha do meu chapéu? - Zé provocou. - Ou alguém quer acabar o que começamos ontem?
O Quim da Ribeira virou-lhe as costas com uma expressão de desprezo mas o Zé Sardinheiro retrucou, jocoso e ignorando a ameaça:
-         A menina Paula não te veio ver hoje.
Corou e deitou-lhe um olhar furioso. Olhou demoradamente a faca de cozinha com que estava a cortar o presunto antes de responder:
-         E que te dá a ti? Se a esposa do Dr. Henrique Mello vem ou não ver-me?
-         Cá a mim, nada, é verdade. Isso lá terá que ser entre vocês os três... ou os quatro. - O Sardinheiro soltou uma gargalhada.
-         Sabes porque a menina não veio hoje? - Meteu-se o Quim – Porque já andou o povo todo montes fora à “pregunta” dela. Desapareceu esta noite de casa. Com cavalo e tudo.
-         Chegou-se a dizer que tinhas culpas no cartório. - Tornou o Sardinheiro – A tua sorte é que aqui o Quim te viu chegar bêbado a casa tarde na noite.
Zé olhou os dois homens, cada vez mais furioso.
-         Se tivesses sido tu que andavas a larpar a menina, era agora que o Doutor te mandava chegar uns chumbos ao coiro. - Assegurou Quim e ambos riram com vontade. - Tás a dever-me um copo!
A cacofonia para de repente quando se apercebem do ar ameaçador de Zé, com a faca em punho, preparando-se para espetar alguém.
-         Quietos! Que é lá isso? Não quero cá merdas! - O capataz, Francisco da Mata, que acabava de chegar intervém no momento certo. - Zé Corrécio, poisa lá a faca das cebolas. Se fazes baderna aqui vais já corrido pra casa.
-         Essas duas comadres não têm que fazer e estão a pedir umas cabeçadas... ou uma facada no bucho. - Zé rosnou, sem baixar a guarda, agastado por Francisco ter usado usado a sua alcunha, que era coisa que poucos se atreviam a fazer.
-         É verdade o que eles dizem. - Asseverou o capataz – A mulher do Doutor desapareceu esta noite. Mas já se sabe mais. Acharam o cavalo dela preso ao pé da estação do comboio... o dela e o do Manuel Pinho, da aldeia vizinha. Devem ter apanhado o primeiro comboio da manhã. Nunca mais ninguém os vê.
-         A sério? - O Sardinheiro não queria acreditar – O Manel Seminarista e a menina Paula? Ora quem haveria de dizer, o santinho de pau oco.
-         Os pais dele estão uma tristeza só. - Continuou o Francisco – Ele deitou-lhes a mão a um monte de dinheiro e foi-se embora.
-         Roubou o dinheiro aos pais e a mulher ao Doutor Mello. - Riu-se alto o Quim.
-         Pouco barulho, fala baixo que te ouvem, boca de lavagem. Agora vamos mas é ao trabalho que se faz tarde. - Admoestou o capataz antes de levantar a voz e gritar – Ao trabalho! Todos ao trabalho.
Durante todo este diálogo final Zé, como se não lhe interessasse a conversa, embrulhou o que restava da merenda, bebeu um trago de vinho e virou-lhes as costas.
Carregou o cavalo com mais quatro cestos e começou a subida íngreme tomando o cuidado de guiar o animal pelas pedras menos escorregadias.


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Corrécio 2ª parte - A Tentadora e os Provocadores




Zé olhou Paula no olhos. Ela no alto da sua montada, senhoril e ele suado e com roupas remendadas. Não havia duvidas que pertenciam a mundos diferentes:
-         Depois de tantos anos afastados, – Ele tentou concluir – vossa senhoria casada com o meu patrão, não espera que tome liberdades...
-         Zé. - Ela insistiu – Sou eu, a Paula, que brincava contigo em miúda... Que desafiava a autoridade do pai para se encontrar contigo. Houve demasiado entre nós para que me desprezes desta forma. Sabes que não casei por minha vontade.
-         Não, não sei. - Cortou olhando-a nos olhos – O que sei é que te foste e não voltaste senão casada com esse homem... porque é rico... e eu sou pobre.
-         Não digas isso, por favor. Eu não sou feliz sabes? - Os olhos verdes humedeceram-se – Passaram-se tantas coisas desde que nos afastaram... eu era muito jovem, não poderia desobedecer ao meu pai.
-         Sim, passaram. - Concordou ele baixando os olhos e deixando transparecer a dor que permanecia no seu coração – Passaram uns ossos partidos, o teu afastamento, o ódio do teu pai e a desaprovação do meu... que nunca me perdoou tê-lo desonrado para com o homem com quem estava desavindo. Casaste e depois também eu casei. Se antes estavas apenas demasiado alta para mim, agora estás inatingível. Vai-te, faz de conta que não nos encontramos e não nos arranjes problemas.
-         Um casamento – sentenciou ela – a maior parte das vezes não passa de umas palavras memorizadas ditas sem convicção a um representante de Deus sem vocação. O meu não foi diferente. Henrique é um bruto egoísta e não quer saber de mim para nada... para ele sou apenas mais uma propriedade que ganhou quando fez o sacrifício de casar comigo.
-         Deixa-o. - Um brilho de esperança reluziu nos olhos castanhos de José. - Foge comigo. Também eu vivo uma vida que não é a minha, suspirando pelos momentos que passamos juntos.
-         Meu querido. - Havia lágrimas nos olhos dela – Passaram-se mesmo muitas coisas desde o “nosso tempo” que já acabou. Vêm-se outros locais, conhecem-se outras pessoas... aquilo que quero de ti é apenas que me recordes sempre com esse amor que vejo em teus olhos... e não me julgues, seja o que for que te digam a meu respeito.
Tocou a égua com o pingalim e afastou-se sob o olhar espantado de José que se quedou vendo-a afastar-se na direção da aldeia vizinha, como nos dois dias anteriores.
Entretanto, outro dos seus companheiros aproximava-se com nova carga:
-         O capataz está de olho em ti, Zé, mexe-te.
-         Manel. - José retorquiu rapidamente – Leva-me aqui o Catita e ata-mo lá na carreta que eu tenho que ir aliviar a tripa... muito depressa.
Manuel, preocupado, olhou a jovem Paula a desaparecer na curva do caminho antes de fitar o companheiro para que ele percebesse que não o enganara:
-         Está bem, vai lá, mas vê se fazes “o teu trabalho” depressa e o deixas de modo que o fedor não nos chegue ao nariz... ou nos emporcalhe.
E com esta recomendação amarrou a rédea do Catita ao seu próprio cavalo e retomou a subida sem olhar para trás.
José saltou agilmente para o pinheiral que ladeava a face mais elevada do caminho e desapareceu de vista.
Por entre as árvores e o mato agreste, evitando os caminhos, ele foi progredindo com dificuldade até ao topo do monte de onde podia ver a totalidade do atalho que conduzia à aldeia. Não havia sinal de Paula... e não tivera tempo de chegar ao povoado.
Caminhou cautelosamente até escutar vozes e aproximando-se viu, numa clareira Paula abraçada a um homem que não conseguia perceber quem era por estar de costas.
Por trás deles, a clareira abria-se para o vazio e um penhasco de várias dezenas de metros até às fragas do rio fazia o limite da pequena área onde os dois se encontravam.
Contornou a clareira ocultando-se na vegetação até conseguir perceber o que diziam:
-         … tenho já tudo preparado. - A voz de baixo do homem ouvia-se com dificuldade – Sei onde está o dinheiro e tenho alguma roupa numa trouxa pronta a agarrar e correr. E tu?
-         Tenho alguma roupa escondida também, assim como uma roupa de homem, uma boina e umas botas que consegui surripiar a um dos pobres coitados que trabalha para nós. - Paula falava com a voz tremente mas aparentemente feliz – Vestida de homem, ninguém desconfiará... ninguém reparará em dois homens a viajar no comboio.
-         Quando sair daqui vou comprar os bilhetes... - Calaram-se enquanto se beijavam ternamente.
À medida que rodavam, José conseguiu vislumbrar o bigode e a barba loiros e finos. Estava identificado o seu rival; era o Manuel de Pinho, filho dum casal de lavradores abastados da aldeia vizinha... andava no seminário no Porto e por isso chamavam-lhe Manel Seminarista. Belo padre que iria sair dali.
-         Amanhã – recomeçou o homem – Vens ter aqui antes do nascer do sol. Deves sair já vestida à homem, para que não chames a atenção a algum vadio que para aí ande, mas traz a tua roupa numa trouxa. Assim, nunca pensarão procurar-te vestida de homem.
Envolveram-se novamente em beijos e caricias que rapidamente evoluíram. Depressa a saia dela era erguida e ele possuía-a, em pé, encostados a um pinheiro, num coro de gemidos abafados.
José não queria ver mais.
Foi-se embora tão silenciosamente como chegara e passou o resto do dia acabrunhado e de dentes cerrados falando apenas quando era estritamente necessário.
Terminado o trabalho, depois de cuidar do Catita, passou pela taberna antes de ir para casa jantar. Tinha bebido o vinho todo que levara e não comera quase nada... sentia-se um pouco tonto e a calçada, ainda quente do sol, parecia oscilante.
Na entrada da taberna do ti João já estavam reunidos vários homens que falavam e riam em altas vozes. O João Sardinheiro e o Quim da Ribeira eram dois deles, não pegavam no trabalho com muito empenho mas eram lestos a deixa-lo, por isso já se encontravam ali há algum tempo.
Passou por eles, cumprimentou com um breve aceno de cabeça, deitou um olhar de soslaio ao sorriso escarninho do Sardinheiro e entrou na taberna.
O interior era escuro e apenas umas poucas velas davam alguma luz às paredes enegrecidas por décadas do fumo da lareira que acendiam nos dias frios. Três mesas com os respetivos bancos corridos preenchiam o espaço em conjunto com o balcão sebento de milhares de mãos que pousavam moedas e levantavam géneros.
Por trás do balcão, uma fiada de pipas servia de pano de fundo aos seus sogros, ti João e ti Mariana, para matar a sede aos trabalhadores.
Pediu um púcaro de tinto com um seco “boas tardes”, pagou e saiu novamente, que fazia muito calor no interior. A sua relação com os sogros não era a melhor; o casamento não lhes agradava porque José bebia muito, era briguento e constava que não tratava a filha deles da melhor maneira.

Sentou-se sozinho à direita da porta nas grandes pedras que lá existiam para o efeito.
-         Então Zé? - O Quim da Ribeira estava ansioso por novidades e com a sua voz de gozo inquiria – Estás triste? Correu-te mal o dia?
-         Quieto, que o homem tá aborrecido. - Brincou o Sardinheiro por entre os sorrisos dos companheiros e um olhar de ódio de Zé.
-         Não te “emplouricaste” hoje na tua menina? - Insistiu o Quim.
-         Já vos avisei para acabarem com a “ladradeira” sobre mim, “lapouços” da merda. - Zé ameaçou engolindo o conteúdo do púcaro de barro em duas longas goladas.
-         “Lapouços”? - O Sardinheiro indignou-se e deu um passo em frente enquanto os outros riam. - “Lapouço” és tu, seu lambão, que andas aí a ver se “larpas” a Paulinha... O Dr Henrique que te pilhe...
Não conseguiu acabar a frase porque José, que entretanto se levantara, assestara-lhe um soco no peito que o deixou sem fôlego.
Quando Quim tentou avançar na direção do agressor, este colocou a lâmina trabalhada da sua faca ao pé do nariz do valente:
-         Conheces esta? Já ta mostrei várias vezes, vai ser hoje que “larpas” com ela no bucho?
Perante o recuo cauteloso José começou a afastar-se sem dar as costas aos provocadores.
Ti João, que entretanto alguém tinha ido chamar, apareceu de rompante à porta da taberna empunhando um varapau:
-         Zé! - Avisou
-         Não se apoquente comigo, ti João. Vou-me embora antes que tenha que dar uma “saronda” numa dessas alcoviteiras.
Assim que se achou a uma distância segura, virou costas e afastou-se com os tamancos a ecoar nas paredes das casas.
Irrompeu pela porta da casa como um furacão.
-         Credo em Cruz, homem de Deus! - Exclamou Maria dos Anjos, ocupada a descascar batatas para uma malga em cima da mesa – Assustaste-me.
Sem-se importar em responder à sua mulher, deslocou-se até outra mesa encostada no extremo da cozinha, pegou na cabaça que sabia cheia de vinho e encaminhou-se para a porta.
Maria dos Anjos percebeu logo que ele estava furioso e preparava-se para mais uma bebedeira:
-         Vais te pôr já a “larpar” o vinho? Anda mas é cear, que tá pronto daqui a um “cibo”
-         Não quero comer. - Rouquejou ele com a porta entreaberta, indeciso entre sair ou entrar.
-         Já me disseram que a menina Paula falou contigo hoje. Que te queria? - Quis ela saber sem olhar para ele.
Fora de si, Zé deu-lhe um murro num braço que fez com que a malga e as batatas voassem para o chão.
Ergueu a sua faca e espetou-a com força no tampo da mesa. Os arabescos que decoravam a lâmina reluziram:
-         Já te te avisei, mulher, para não dares ouvidos às “ladradeiras” do povo! Não te metas comigo que ainda faço um desatino. Acabo contigo ou com essas putas que te andam a envenenar.
Arrancou a faca da mesa quase levando-a junto e saiu batendo a porta com estrondo deixando para trás o choro e os insultos gritados pela mulher.



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