Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Eu estava sentada na sala, quando o vi pela primeira vez e não consegui evitar um estremeção, pois ele já tinha morrido há mais de cinco anos. Fora apenas uma presença difusa, que passou no corredor em passos largos na direção da cozinha, mas reconheci-o imediatamente.
Espantada, olhei para a minha mãe, Ana, que estava compenetrada na cena seguinte da novela com o som excessivamente alto. Depois olhei para Sofia, minha irmã, com os enormes auscultadores almofadados nos ouvidos e a atenção centrada no telemóvel.
Não sei porque me surpreendi, o mais provável era que não vissem nada e ainda duvidassem de mim, como aconteceu logo após a morte dele, o avô Frederico. Nessa altura, vi-o a vaguear pela casa durante vários meses após o seu falecimento. A mãe ficava furiosa comigo por eu dizer que o via, chamou-me mentirosa e proibiu-me de voltar a falar do assunto, Sofia deitava-me olhares de desaprovação e mesmo o pai olhava-me com um misto de pena e desagrado. Agora que penso nisso, ele era o meu herói, que me perdoava as traquinices todas e até as incentivava por vezes. Eu era a sua bonequinha de porcelana por quem tinha um carinho especial, se calhar por isso era a mim que se revelava. Mas quem acreditaria numa criança de dez anos?
Cinco anos se passaram e como, entretanto, deixei de ver o avô, acabei por esquecer e pensei que o que quer que fosse que provocara aquelas visões, desaparecera da mesma forma como aparecera. Este inesperado regresso, mostrava-me que a minha “habilidade” não se tinha perdido, antes estivera adormecida. Havia uma dúvida, porém, que me perturbava; porque é que era apenas o meu avô quem me aparecia, se também a minha avó e mais recentemente o meu pai, já faziam parte daqueles que atravessaram o portão da existência terrena?
Naquele primeiro dia ergui-me e caminhei até ao corredor onde espreitei nos dois sentidos, sem que detetasse nada ou ninguém. Desvalorizei, achando que tinha sido uma ilusão de ótica.
Apesar dos meus quinze anos, considerava-me uma mulherzinha e nunca houve escuridão ou fantasmas, “homem do saco”, ou bruxa que me assustasse verdadeiramente. Quando era mais pequena, a minha mãe ficava louca da vida quando me ameaçava com um qualquer desses personagens fantásticos e eu reagia fazendo dezenas de perguntas sobre eles. Queria saber quem eram, de onde vieram, qual era exatamente o seu aspeto, enfim, tudo menos temer a sua eventual aparição para me obrigar a comer a sopa toda, ou simplesmente ficar quieta quando queria brincar.
A “minha” estranha visão sucedia-se nos dias seguintes; quando estávamos na cozinha, à mesa, ou após o jantar, na sala a ver a televisão, lá passava o personagem numa fosforescência azulada. Digo o personagem, porque sei que aquele não era já o meu avô, mas apenas um eco da sua presença neste mundo. Segui-o por algumas vezes e concluí que era uma eterna repetição de um movimento que, por algum motivo, ficara gravado no espaço daquele corredor. Ele atravessava-o em passos rápidos e por fim transpunha a porta que abria para as escadas da cave. Ainda espreitei pela passagem e verifiquei que parecia ajoelhar-se nas escadas, antes de se dissolver no ar.
Como se tratava de uma eterna repetição, tentei ao máximo ignorá-la e deitar mais atenção ao que se passava em casa, onde o ambiente não era dos melhores; o meu pai falecera há dois meses e, desde que a fábrica onde trabalhava a minha mãe dispensara a maior parte dos trabalhadores, ele era a única fonte de rendimento da família. Estávamos na penúria, portanto, com as contas da luz, da água e da mensalidade do carro, comprado há poucos anos, sempre a aparecerem, e eu e a minha irmã ainda na escola.
A mãe andava completamente esgotada a lavar escadas dos prédios e eu e Sofia fazíamos o que podíamos para ter o jantar feito quando ela regressava… embora por vezes não soubéssemos bem o que fazer com o tão pouco que havia. Havia dias em que ela chorava frente ao prato das batatas cozidas com couves e o atum de uma lata dividida por três.
Eu queria contar-lhe o que via, mas sabia que isso iria perturbá-la ainda mais e acabava por não dizer nada, nem a Sofia, que me iria recriminar e chamar-me louca e estúpida por inventar estas coisas.
Nem sempre vivemos com dificuldades. Quando o avô era vivo, tínhamos alguns terrenos que era cultivados por rendeiros, que agora não queriam a terra nem dada. Acabaram por ser vendidos e mal deu para pagar as dívidas que se acumulavam após a longa doença do meu pai. Em breve teríamos de vender a casa onde vivíamos, construída pelo meu avô há quase cem anos… esta mesma casa que ele parecia reticente em abandonar.
Fazia já mais de um mês que a “minha aparição” percorria o corredor, despercebida pelos meus familiares e começando também a ser ignorada por mim, apesar da insistência com que se repetia. Eu estava sentada a jantar e a mãe estava chorosa como de costume, mas invulgarmente faladora. Contava histórias da juventude com o pai, de quando vieram viver com o avô e como foram felizes. Gradualmente o tema foi descaindo para a pobreza da situação atual, o desemprego dela, a doença e morte do pai… teriam de entregar o carro ao banco e vender a casa. Sofia, entre lágrimas disse que deixaria a escola para trabalhar, seriam duas e assim duplicariam o rendimento, eu também me ofereci.
A mãe, entre lágrimas de gratidão, não queria abdicar da educação das filhas e disse-nos que poderíamos ajudá-la, se quiséssemos, ao fim de semana, os dias restantes eram da escola e do estudo. Retomou a narrativa do tempo em que o avô era vivo e viviam muito melhor; havia bastante dinheiro dos rendeiros, assim como das outras terras que ele foi vendendo, mas, como nunca confiara nos bancos e a sua morte fora súbita, ninguém sabia onde estava.
Aquela parte da história fez-me perceber que a insistente visita que o meu avô fazia àquela casa, particularmente a mim, a sua eterna menina, devia ter um significado; perante a incredulidade da minha mãe e irmã metralhei tudo o que vira nos últimos dias e na repetição da fantasmagórica caminhada que se dirigia sempre ao mesmo sítio.
Corremos ao acesso à cave e ao local em que me recordava de o ver ajoelhado e comprovamos que a face de um dos degraus não estava pregada e havia um prego dobrado que servia de puxador.
Removida a tábua, deparamos com um saco de plástico cheio com imensos rolos de notas presos com elásticos, alguns já queimados pelo tempo.
Estava ali o alicerce que nos permitiria reestruturar a nossa vida!
Desde o dia daquele fabuloso achado, entregue que estava o seu legado, nunca mais a fantasmagórica aparição percorreu o corredor da casa… e confesso que tenho pena, pois era uma forma de matar as saudades que ainda sinto dele.
Apesar de ter partido sem ter tido hipótese de se despedir, o meu avô, com o amor que tínhamos um pelo outro, conseguira deixar uma mensagem para nos salvar na hora em que mais precisávamos.
2 comments:
Não me surpreende este teu conto, quer pela beleza da tua escrita e criatividade da trama, quer, também, porque segue uma linha de histórias que te são contadas.
Claro que me agrada bastante, como sempre acontece quando uma leitura me prende até ao final da história.
Mesmo assim, podias ter acrescentado mais mistério, algum temor, a tensão devida a esta transcendência, como já o tens feito primorosamente em contos e romances anteriores.
Por outro lado, a guerra já tem terror que chegue para nos inquietar.
Parabéns. Abraço.
Fernando Morgado
Parabéns! Gostei bastante, como sempre um escrita clara e cativante que me prende e chama a atenção até ao fim. Claro que na minha cabecinha já estava a imaginar cenários mirabolantes, mas o fim seria o mesmo 😁 Bom acordar hoje com uma história destas, com final feliz 👋👋👋
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