Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
— Vai-te depressa, é o meu marido!
A frase chegou-me
ao cérebro em uníssono com o som característico de uma chave a ser introduzida
numa fechadura.
Saltei na cama,
atordoado e fiquei sentado a olhá-la, um pouco incrédulo.
Ela fitou-me com
os seus olhos azuis. Duas pérolas refulgentes na obra de arte que era o rosto
emoldurado pelo cabelo encaracolado escuro.
Por uns instantes,
uns segundos apenas, gelamos, um frente ao outro, soerguidos na cama onde há
tão pouco tempo havíamos dado largas à paixão. Os seus peitos alvos e fartos,
de mamilos quase invisíveis de tão rosados, subiam e desciam nervosamente, acompanhando
o respirar entrecortado.
— Depressa! — O
tom sussurrado e suplicante, trouxe-me de volta à realidade em simultâneo com o
ruído de passos pesados no corredor.
— Disseste-me que ele
não vinha hoje! — Protestei, recolhendo as roupas de cima da poltrona que havia
aos pés da cama. Dei graças pelos meus hábitos de, mesmo enlouquecido pelo
desejo, amontoar a roupa toda no mesmo sítio.
— Deve ter trocado
o serviço, que queres que te faça? — O sussurro irritado insistia na urgência.
— Não seria melhor
acabar com isto de uma vez? — Engoli em seco.
— Estás cansado de
viver? — A retórica foi suficientemente elucidativa.
Os passos chegaram
junto à porta do quarto e o manípulo rodou devagar. Escondi-me na casa de banho, onde sabia que existia uma saída para o corredor e vesti-me rapidamente, no
escuro, enquanto espreitava pela frincha da porta. Na penumbra do quarto,
consegui divisar o marido; cerca de um metro e noventa de homem, cabelo cortado
à escovinha, envergando o uniforme da PSP e ainda com a arma e o cassetete
suspensos da cintura.
— Que porra de
situação. — Lamentei-me calçando o segundo sapato e observando-o a espreitar a
jovem esposa, que se fingia adormecida.
Esgueirei-me para
o corredor às escuras e em passos largos e silenciosos, encaminhei-me para a
porta de saída do apartamento. Uma manada de cavalos enlouquecidos corria
desenfreadamente no meu peito, enquanto tentava, sem sucesso, abrir a porta que
fora fechada com a chave.
Conseguia escutar
murmúrios do quarto. Devia estar a tentar “acordá-la” para fazer aquilo que
tinha feito comigo nas últimas horas… Porque diabos haveria de voltar tão cedo?
Em vão, apalpei no
topo da credencia pelas chaves que me permitiriam sair daquela situação…
Os murmúrios terminaram
de repente e o corredor iluminou-se com a luz proveniente da casa de banho que
eu acabara de abandonar.
Corri para sala e
olhei em volta; aquela divisão que conhecia tão bem, onde cada maple e cadeira
tinha uma recordação agradável, em busca de um sítio para me esconder. A única
coisa que me pareceu mais adequada foi o sofá; com um salto acrobático, consegui
literalmente mergulhar para a parte traseira, comprimindo-me o mais que pude
entre a parede e as costas.
O som de passos a
entrar na sala… a televisão começou a funcionar… o ruído do cinturão a ser
pousado na mesa de apoio e um peso brutal caiu sobre o sofá, esmagando-me ainda
mais. Quase não consegui suster um gemido.
Deixei-me ficar,
naquela posição tremendamente incómoda, enquanto ouvia a sessão de zapping a
decorrer. Ao fim do que me pareceu uma eternidade, levantou-se novamente, dando
descanso às minhas dilaceradas costelas e ouvi os passos que se dirigiam à
cozinha.
Aproveitei a
oportunidade e corri para a varanda, cuja porta abri muito devagar e passei
para o exterior… não consegui tornar a encostar a corrediça, que me pareceu
ficar presa em qualquer coisa.
Corria uma aragem
fria do fim do verão… o céu sem estrelas era providencial e espreitei para a
rua… quatro andares abaixo. Lembrei-me naquela altura que, de futuro, deveria incluir,
como requisitos na minha lista de escolhas femininas, aquelas que vivessem no
rés-do-chão, vá lá, no máximo primeiro andar… e que os maridos não fossem
polícias, ou qualquer tipo de agente que incluísse armas.
Eu estava a ficar
gelado rapidamente. Na sala, o homem retomara o zapping e de repente, olhou na
minha direção, para a porta mal fechada, de onde devia estar a sentir corrente
de ar. Ergueu-se e começou a experimentar a corrediça para verificar porque
encravava, vi a sua perna sair para a varanda e era óbvio que teria de passar à
próxima e ainda mais assustadora tática de esconderijo: debrucei-me sobre a
balaustrada e fiquei suspenso no vazio, agarrado aos ferros.
O coração parecia
querer saltar-me pela boca. Sentia o corpo todo tremer descontroladamente,
sabendo que não aguentaria muito tempo assim. Abaixo de mim, ligeiramente
desalinhada de uma eventual trajetória descendente, via a varanda do terceiro
piso… conseguira saltar para ali? E depois para a seguinte? Dei graças por não
haver ninguém na rua.
Escutei o ruído do
isqueiro e a longa baforada que se seguiu… as mãos começavam a doer… se eu o
enfrentasse, ele contentar-se-ia com uns socos ou… o mais certo era atirar-me
da varanda ou dar-me um tiro… choraminguei silenciosamente a minha estupidez por
me ter arrastado para aquela situação.
Estava a achar que
não aguentava muito mais, quando vi o morrão do cigarro a voar para a rua, numa
trajetória que me pareceu eterna, até ressaltar em pequenas faúlhas no asfalto.
A porta da varanda fechou-se.
Tentei regressar à
placa salvadora, mas os meus braços não tinham força para erguer o peso do
corpo. Com os pés, tateei freneticamente em busca de algo que me apoiasse um
pouco e facilitasse a tarefa. Os dedos estavam a fraquejar e iriam falhar a
todo o momento. Olhei de novo a varanda abaixo de mim. Tinha de ser! Baloucei-me
e larguei os ferros, lançando-me no vazio. Falhei a balaustrada abaixo de mim por uns milímetros e com os braços agitando freneticamente numa vã tentativa de me agarrar, entrei numa
queda silenciosa e interminável.
Saltei na cama,
sufocado e encharcado em suor.
2 comments:
Há sempre a tentação do pensamento em desenhar fantasias burlescas e audaciosas no que diz respeito ao amor; é pena que hoje se use a mesma palavra para duas coisas distintas - o amor e o sexo. Pode haver amor sem sexo? Sexo só tem razão de ser se houver amor? A cada um cabe a resposta, contudo, é factual uma e outra vivências, para além de qualquer interpretação. O resto não passa de nevoeiro a dourar eufemismos ou a anestesiar desculpas.
A paixão e o prazer não são propriamente a mesma coisa; paixão é ter medo, prazer é querer.
Para quem pensa e descreve o amor como um sermão aos peixinhos, é obvio que o sexo- prazer é um pecado, mas...todos somos pecadores!
Este conto de cordel, no bom sentido, é o que mais colhe a atenção das pessoas que escondem as suas histórias nas "asneiras" dos outros.
Gosto destes temas, gosto da forma desempoeirada como o Manuel Amaro os escreve, mesmo sabendo que o "socialmente correcto" inibe a ousadia de dar mais corpo e travessura a estas aventuras.
Por fim; não me desagradava um final mais ousado.
Parabéns, Amaro.
Muito agradável este suspense que dura até à última frase. De conto para conto sinto-te a desafiar limites, o que é excelente! É esta a maravilha da escrita: ousar dar asas à imaginação. Continua a ousar, pois o resultado só pode ser este a que já nos habituaste. Parabéns!
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