quinta-feira, 29 de abril de 2021

O Teu Brilho Esta Noite

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Estava uma noite serena e morna. Pequenos diamantes refulgiam sobre o puro veludo negro da noite, guardando a descomunal lua de prata, que pairava sobre a paisagem. O ambiente ideal para meditar ou sonhar, naquele terraço do hotel, com vista sobre a cidade de luzes douradas na margem contrária do rio. A perturbar tão idílico ambiente, estava o som de fundo de vozes, risos e copos a tilintar. O homem de estatura média, cabelo escuro e barba aparada, segurando o copo com o líquido dourado e reluzente, preferia o silêncio da noite estival, à animação que decorria nas suas costas.

André, assim se chamava, ponderara muito, antes de aceitar comparecer àquela festa, especialmente aquela. Perdera o hábito de frequentar tais convívios e transformara-se num autêntico eremita. Desperdiçara mais de três anos, numa embriaguez permanente, enquanto escrevia crónicas com língua viperina, para as revistas “cor-de-rosa”. Meses de recuperação alcoólica, disseram-lhe que não poderia viver daquela maneira e afastou-se do gin e da sociedade. Em vão recebia convites de conhecidos, para que fosse a este ou aquele convívio, na esperança de serem contemplados, para o bem ou para o mal, num dos artigos que repentinamente deixaram de jorrar da sua caneta. Desaparecera do mundo, refugiara-se no seu apartamento e num contrato com uma revista, a escrever o que lhe pediam. Na verdade, fora mais do que um problema alcoólico a afastá-lo da sociedade; havia aquela mulher, que não via há uns anos e que lhe deixara um vazio imenso, a mesma cuja eventual presença o fizera aceitar este convite. Sofia, era a mulher que nunca conseguiu esquecer, talvez por ser a única que não se deixou prender na sua teia depressiva e resolveu seguir em frente, antes que ele a deixasse.

Apreciou o copo quase vazio, sabendo perfeitamente que não deveria ter aceitado aquela bebida e ponderou deitar o resto no canteiro ali ao lado. Decidiu-se por não desperdiçar aquela fuga à sua disciplina e esgotou o conteúdo do copo, inclinando despudoradamente a cabeça para trás, para não perder nem uma gota. Tendo consciência dos efeitos do álcool no seu já destreinado organismo, olhou em volta em busca de um local onde pousar o recipiente esgotado e foi quando a viu.

Atravessando uma das enormes portas que davam acesso ao terraço e olhando em volta, como se procurasse alguém, ali estava Sofia; trazia um vestido preto sem alças que contornava os peitos e acentuava a sua cintura fina, continuando numa saia que abria num gracioso leque terminada por um rendilhado preto sobre o joelho. Nos pés, calçava sapatos também negros, onde reluziam alguns brilhantes em volta do tornozelo. Mas era o seu cabelo acobreado escuro, natural, solto e luxuriante, envolvendo o rosto de linhas firmes e nariz aquilino, que faziam com que não se conseguisse tirar os olhos dela. O seu sorriso, enquanto cumprimentava os conhecidos, continuava deslumbrante e toda ela irradiava luz, ofuscando a própria iluminação artificial.

Quando ela o viu, foi como se uma nuvem tapasse o sol e o resplandecente sorriso transformou o belo rosto com um ar preocupado e triste. Ele apercebeu-se que estava sem respirar e soltou um suspiro involuntário, enquanto o copo tremeu ligeiramente na sua mão.

— Olá, André. — A voz quente envolveu-o, assim que ela se aproximou em passos calculados para que a sua passagem fosse notada. — Há muito que não te via… estás mais magro. Fica-te bem!

— Em compensação, tu estás cada vez mais bonita. Parabéns. Continuas a atrair os olhos de toda a gente… — ele aproximou o rosto do dela para um cândido beijo, enquanto sussurrava — … homens e mulheres.

— Vejo que continuas a ser um comentador acutilante. — Ela sorriu, sem corresponder ao beijo, mas sem se afastar. — Fico feliz por aceitares o meu convite. Vai ser agora que me vais brindar com umas linhas num dos teus artigos de gosto duvidoso, naquela revista execrável?

— A revista execrável paga-me o ordenado, sem ter de arriscar a vida nas guerras deste mundo, como fazia antes… fazíamos. — André encostou-se à balaustrada da varanda e cruzou os braços sobre o peito, sem soltar o copo vazio. — De resto, não fui o único a procurar uma “atividade” mais segura e rentável, deves recordar-te porque me tornei um “vampiro dos costumes”.

— “Touché.” — Reconheceu Sofia com um sorriso maroto. — Penso que estás a definir o meu casamento com um rico industrial da hotelaria como uma “atividade segura e rentável”. Já sei que ninguém consegue esgrimir palavras contigo sem sofrer uma estocada mortal.

— Ambos trocamos um jornalismo de ação… por atividades diferentes. — Ele retribuiu o sorriso e a ironia. — Por mim, teve de ser mesmo assim; os industriais da hotelaria nunca quiseram nada comigo, apenas os editores de revistas execráveis… pelo menos também não tenho de dormir com nenhum. Mas descansa — continuou — nunca escreveria nada sobre ti… pelo menos de mal e o tipo de matéria que eventualmente sairia, não interessa aos meus patrões.

— Fico feliz que assim seja. — Ela pousou suavemente uma mão sobre a dele, num gesto de uma cumplicidade antiga, que o fez estremecer. — Espero que essa trégua abranja o meu futuro marido.

— Não há aqui nenhuma trégua, para isso teria de haver uma guerra, não te parece? — André endireitou-se enquanto tentava, sem sucesso, agarrar a mão dela que recuava.

— Oh, mas há, meu querido. — Ela cruzou candidamente as mãos sobre o ventre. — Uma guerra fria! Há quase dez anos que tens os misseis apontados na minha direção, à espera de uma “causam belli”.

— Não é verdade. Nunca estive zangado contigo… — defendeu-se ele. — … apenas desiludido. Aproveitares a minha reportagem para surgires de repente com o fim da tua carreira ao lado desse… palhaço.

— Eu?!? Aproveitei a tua reportagem? — Ela soltou uma gargalhada nervosa e cínica. — Depois de te pedir encarecidamente que não fosses… estiveste fora um ano!

— Foi complicado… — Ele acalmou-se perturbado pelas recordações. — Fui sequestrado e…

— Bem sei! — Sofia atirou com irritação. — Segui cada notícia, contactei todos os que conhecia, chateei, persegui um secretário de estado, para que se interessassem pelo teu problema. — Perante o olhar de espanto dele, ela fez uma careta cínica. — Achas que te libertaram pelos teus lindos olhos? Ou pelo teu talento jornalístico?

— Não sabia…

— Bem sei que não! Pedi que não dissessem. — Ela volveu o olhar ao chão. — Também não deves saber que abortei três meses após a tua partida…

— Meu Deus! — O espanto de André dizia tudo. — Que aconteceu? O nosso filho, estavas grávida?

— Quando te foste também ainda não sabia. Não sei o que foi, alguma incompatibilidade, deficiência, stress, sei lá. Agora também não interessa, não quero falar disso. — Sofia falou rapidamente enquanto atirava tudo para trás, com um gesto e uma expressão triste. — Isto não está a correr nada como eu esperava. Queria que ficássemos amigos, tenho saudades das nossas conversas…

— Só das conversas? — Ele baixou a cabeça para lhe poder ver os olhos verdes que lhe devolveram o olhar nervosamente. — Nunca deixei de te amar…

— Meu querido. — Sofia ergueu a cabeça, endireitou os ombros e deu um passo atrás. — O que foi não volta a ser! Estou casada e feliz há dez anos. Gosto muito de ti e gostava muito que fossemos amigos, mas só isso.

— Que esperavas? Que festejasse contigo? — André enfureceu-se. — Regresso de uma das piores experiências da minha vida para encontrar a mulher com que amava casada com o playboy dos hotéis!

— E que esperavas tu? — Por uns instantes os olhos dela faiscaram de raiva. — Foste embora na altura em que mais precisava de ti, porque a tua carreira, ou o teu desejo de morte, era mais forte! Preferias a adrenalina de arriscar a vida nas reportagens dos conflitos, do que a alternativa de uma existência medíocre de classe média… ao meu lado. — O rosto suavizou-se e acariciou-lhe ternamente a face. — Acabaste por deixar tudo na mesma, para te tornares ainda mais amargo, do que já eras em tempos de paz.

— Vem comigo! — Pediu André tentando segurar a mão gelada que lhe acariciava a face. — Deixa tudo isto, as luzes, a riqueza desse homem que não vale nada. Sabes que o negócio dos hotéis é a capa para a venda de armas nos conflitos, por isso nos encontrávamos os três, muitas vezes, durante o nosso trabalho.

— Também nós e tu mais do que eu, vivemos desses mesmos conflitos. — Ela puxou a mão suavemente. — Por mim já tinha demasiado tempo, suja de terra nos campos de batalha, ou nos hotéis bombardeados, sempre à espera que o meu quarto fosso próximo atingido e pedia que, quando o fosse, atingisse em cheio e não me deixasse estropiada ou a sofrer. — Sofia pousou os olhos no chão. — Chama-me fútil, mas estou numa vida cómoda rodeada pelo luxo e tudo o mais que quiser. Não vou retroceder.

André fitou a mulher com estranheza, como se a visse pela primeira vez. Aquela não era a sua antiga companheira, aquela que partilhou o perigo com ele, em mais de uma dezena de conflitos por esse mundo fora. Que tivera nos seus braços, escondidos entre os escombros, durante os bombardeamentos. Não era a mulher que tirara fotos fantásticas que ilustraram os seus relatórios apaixonantes e que fizeram as páginas principais de revistas e jornais. Afinal, também ele já não era o repórter de guerra, mas sim um frívolo cronista, mais ocupado com quem dorme com quem na sociedade. Já não contava histórias de morte e paixão pela liberdade, mas sim os podres da existência humana em tempos de paz, vivida às custas de outras guerras.

— Este senhor está a incomodar-te, querida? — Ao lado dela apareceu um homem, ligeiramente mais baixo, praticamente careca, mas impecavelmente vestido com um fato de corte moderno. — Queres que chame os seguranças? — Exibiu um sorriso de superioridade, enquanto abraçava a mulher pela cintura. — Como estás, André? Quem é a “vítima” do teu desprezo pela sociedade esta noite? Espero que não a minha doce Sofia.

— Já a descansei a ela e descanso-te a ti também, meu caro Ricardo. — Respondeu o visado erguendo o copo vazio à guisa de um brinde. — Façamos desta noite, uma noite de paz e… tréguas.

— Ah, a guerra fria! — O outro fingiu um olhar sonhador e divertido. — Em tempos de paz, prepara-te para a guerra! Há que armazenar mais e mais armas!

 — Graças a isso, há quem enriqueça mais e mais, sobre armazéns de armas, ou pilhas de cadáveres! — Atirou André amargamente, fazendo com que Sofia arregalasse os olhos num aviso.

— Acutilância! — Divertido, Ricardo piscou um olho e apontou o indicador ao outro, numa expressão marota. — Em todos os conflitos, ganha quem tiver mais recursos! É uma lei da vida! — Apertou mais e agitou significativamente a cinta de Sofia. — Julguei que tivesses aprendido alguma coisa nos anos de guerra que ambos vivemos. — O sorriso desapareceu rapidamente enquanto olhava para a mulher. — Temos de ir, querida, o presidente da câmara está ansioso por te conhecer. — Depois tornou para André. — Aprecia o melhor que puderes desta festa. Sei que o tema não te agrada, mas enfim, quando não podemos caçar, comemos do que nos dão!

Sofia deixou que Ricardo a puxasse suavemente, deitando apenas um último olhar contristado ao antigo companheiro.

André ficou ali, encostado na balaustrada, vendo os dois afastarem-se, dividido entre o olhar triste de Sofia e o sorriso triunfante de Ricardo. Com ela, ia-se o sol embora de vez e repousava sobre os seus ombros uma noite eterna e fria, que teria de passar sem a mulher que amava.

— Aproveitemos o que nos dão, enquanto se dissipa o brilho de Sofia! — Concluiu para si próprio, afastando-se da parede e caminhando lentamente para o salão. —  Preciso de uma boa bebida, para tirar este sabor amargo da garganta.


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2 comments:

Fernando Morgado disse...

Este conto é enorme. Só escreveste uma parte da história que se lhe adivinha nas entrelinhas. Um conto centrado no amor, mas que, talvez aproveitando os contrastes da noite, mostra o quanto são importantes os vários satélites que gravitam em volta deste sentimento.
Durante a leitura, e à medida que a história ganha dimensão, vão surgindo novos caminhos, muita para além do ciúme, do ódio, do menosprezo, da prepotência...que permitem ao leitor construir alternativas boas ou más, opções doces ou amargas, mas o que realmente sobressai é a guerra - a guerra também é amor -, a guerra submersa que se alimenta de balas cegas - as palavras. E nisso eu atribuo-te o Grau Mestre em Cavalaria.
Bom texto, com a tua voz, e, como noutros textos teus, com matéria para um grande romance.
Parabéns, Manuel Amaro.

Fernando Morgado

Suzete Fraga disse...

A avidez com que se lê os teus contos torna impossível escolher apenas um. Cada vez mais, os enredos puxam-nos para dentro do cenário e fazem-nos figurinos desse teu jogo de palavras.

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