Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Bruno conduzia a velha motorizada, em velocidade, a caminho
de casa, na noite fria de inverno. O impulso que trazia era mais devido à
inclinação da estrada do que propriamente pela potência do cansado motor. A
ausência de receio nas curvas apertadas, essa, era devido aos copos de tinto
que sorvera na tasca do Guedes, por entre as cartas da sueca e as anedotas
porcas com amigos e colegas de trabalho. Na saca do almoço, presa na grelha
traseira, seguiam duas garrafas de verde tinto, de beber e chorar por mais. Não
seria a estrada serrana e as bermas compostas por penhascos de dezenas de
metros, que haveriam de atrasar ainda mais o regresso ao covil onde habitava a
sua Madalena. A adorada esposa, por estas horas, havia de estar a soprar fogo
pelas ventas, com o retardo do marido, em dia de recebimento.
Cumpriram-se naquele dia quarenta e oito anos, que saíra do
ventre prenhe de sua mãe, de onde haviam saído os outros sete irmãos em anos
anteriores. Começara a trabalhar nas obras de construção civil aos onze. A
família não podia manter quem não contribuía para o rendimento mensal,
fortemente debilitado pelo consumo desregrado de tabaco e vinho do pater
familias, também ele “mestre” trolha. Por isso, “deu com os lombos” a
trabalhar nas construções, ao lado do pai, logo que terminou a escola primária.
Estava-se nos últimos anos da ditadura não precisava de estudar mais. Não se
pense por isso que o trabalho lhe fora facilitado, nunca esqueceu as “lambadas”
que levava cada vez que se demorava a entregar o que lhe pediam, ou os
dolorosos chutos nos fundilhos, que descarregavam a frustração do progenitor.
Agora, com estes agravos quase diluídos nos anos que se
passaram, resolvera passar pela tasca, festejar e beber um copo com os amigos,
depois de um dia muito longo. Bem sabia que prometera a Madalena não tornar a
gastar na taberna o que lhes fazia tanta falta, mas que sabia ela das
necessidades de um homem? "Reduzi aos cigarros e deixei de passar na tasca
todos os dias, não deveria haver uma compensação de vez em quando? E afinal,
para que servem as promessas, se não for para serem quebradas?" Argumentou
para si próprio. "Se ela se puser com muita conversa, ainda vai enfardar uns
tabefes."
Ruminava nestes pensamentos desde que saíra do
estabelecimento, já noite, mais leve cinquenta euros, de cabeça pesada e
ouvidos a zunir. O barulho irritante do motor da motorizada tornava-se quase
hipnotizante, mesmo na estrada sinuosa e reluzente do gelo que se começava a
formar nos pequenos fios de água que atravessavam o asfalto. O capacete parecia-lhe
cada vez mais pesado e as pálpebras pareciam ficar coladas quando as fechava.
Foi num ápice que sentiu o motociclo deslizar numa curva gelada e se viu, impotente,
a rebolar para berma até se lançar no vazio.
Após uns segundos de incredulidade, tomou consciência da sua
situação. Estava em cima de uma árvore seca, um velho castanheiro, debruçado
sobre um barranco de mais de dez metros. Conseguia divisar a vegetação, no
escuro, a acompanhar todo o declive até quase desaparecer de vista no fraguedo
que o aguardava no fundo.
— Meu Deus! — Gemeu alto, aflito. A árvore estremeceu,
ameaçando soltar-se e ele teve de agarrar-se com mais força.
Olhou o céu gélido, coberto de pequenos pontos luminosos,
onde reinava o enorme disco prateado que parecia olhá-lo desdenhosamente,
perfeitamente insensível ao seu drama. Olhou a toda a volta, em busca de uma
solução para o seu problema, antes de se tornar a focar nas ominosas fragas que
representavam, estragos muito dolorosos, se não mesmo a morte. O tronco onde se
agarrava estremeceu de novo, avisando-o que tinha de arranjar uma solução
urgentemente.
— Meu Deus! — Recomeçou, olhando o céu. — Minha Nossa Senhora
de Fátima, pedi por mim a Nosso Senhor que perdoe as minhas faltas.
Como resposta, o castanheiro deu mais um sacão, soltando
terra e algumas raízes, ameaçando colapsar a qualquer momento. Com uma lentidão
exasperante, todo o tronco começou a inclinar-se para o vazio. Um verdadeiro réptil,
Bruno rastejou sobre os ramos, procurando o corpo principal da árvore
— Eu prometo, Meu Deus! — Chorou, arrastando-se ao longo do
tronco, tentando chegar às giestas que se eriçavam no declive. — Eu vou cumprir
a promessa feita à minha Madalena. — Mais uns centímetros de inclinação,
arrancaram a promessa final. — Eu deixo de beber, eu juro, eu prometo! Não
volto a levar um copo aos lábios, Meu Deus, deixa-me voltar para a minha doce
Madalena!
Ao invés de tombar de uma vez, o castanheiro encostou-se
completamente ao declive, permitindo a Bruno agarrar-se com todas as suas
forças à vegetação rasteira e iniciar a escalada para a salvação. Um enorme
monte de terra saliente assinalava o local onde a raiz se libertara, deixando
uma cratera. Na subida, teve de se esquivar das pedras e terra solta que parecia
querer acompanhar a arvore na sua caminhada final.
— Obrigado Meu Deus! — As lágrimas, sangue e o muco do nariz,
misturados com a terra, transformaram-no numa criatura de terror. Os cotovelos
e os joelhos sangravam em manchas no vestuário. — Eu prometo, Meu Deus, eu
prometo! — Arrastou-se, exausto, para a berma do asfalto e deitou-se no chão, a
chorar desabridamente.
Cerca de um metro à sua frente, a pasta do almoço estava tombada
e aberta, a marmita espalhara os restos do arroz misturando-os com o carmim de
uma garrafa que se quebrara na queda. A outra, intacta, rebolara na sua
direção.
Bruno sentou-se no chão e apanhou a vasilha, mirando-a com a
saliva a formar-se na boca. Atrás e abaixo dele, o velho castanheiro devia
estar a arrastar um pedaço da encosta, na sua agonia. Tirou a rolha, limpou o
gargalo com a manga e deu dois grandes goles.
— Tendes de me perdoar Meu Deus. — Exclamou passando a
língua nos lábios húmidos do néctar. — Preciso mesmo de uns goles… além do
mais, eu prometi que não tornaria a levar um copo à boca, não uma garrafa.
Soltou uma gargalhada que ecoou no vale, mas foi a última, pois,
no seu apego à terra onde nascera, o carvalho provocou uma enorme avalanche e
metade da estrada foi arrastada, levando o perjuro para a sepultura, numa
torrente de terra e pedras.
3 comments:
Muito bom! Forte abraço! (João Rui Gomes)
Um conto de concordância com as rasteiras da vida, aquelas em que caímos e as que armamos para nos aleijarem, mesmo quando as promessas nos iludem na libertação dos erros e na ilusão de um novo caminho.
O Manuel Amaro Mendonça consegue, pela linguagem exacta das imagens que cria, mostrar um quadro ainda presente, ainda actual, numa narrativa bastante verosímil e que prende o leitor até a um final (in)esperado. Deus não tem mais tempo para ajudar quem não se ajuda e, por isso, chama o pecador para junto dele. Talvez Deus tenha prometido a Madalena a paz que ela merece, e cumpriu.
Temos, então, um conto com um final feliz.
Parabéns, Manuel Amaro.
Fernando Morgado
Promessa é dívida! Este conto, embora fictício, suponho eu, pode ser facilmente transportado para a realidade. E faz-nos pensar, mexe com a nossa consciência. O karma dá sempre um jeito de repor a justiça. Será que vou ser muito castigada por ter gostado do desfecho?
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