Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
O sol principiava
grandiosamente a aparecer no topo das montanhas a leste. Raios de fogo
projetavam-se em todas as direções, anunciando a chegada do astro-rei e o início
de um novo dia.
Caminhando no
trilho calcado que seguia entre as árvores, o homem conhecido por Tone Canhoto,
bufava com as costas carregadas por um grande saco de lona. Trazia um chapéu
surrado e envergava um casaco demasiado grande. À cinta, no pedaço de couro que
lhe segurava as calças, que não chegavam às botas cansadas, uma faca e a
coronha decorada de uma pistola de fecho de pederneira espreitavam.
Repentinamente,
apercebeu-se que não seguia ninguém atrás dele e pousou o saco no chão, olhando
em volta, confundido.
— Xico…? — Chamou
quase a medo. — Zé?
Ninguém respondia
e não havia meio de aparecer alguém, nos cerca de cinquenta metros de caminho
que conseguia ver até à curva.
— Raios partam… —
Gemeu baixinho. — Onde demónios se encafuaram aqueles dois?
Com esforço,
tornou a carregar o saco nas costas e avançou em sentido contrário, a procurar
os companheiros.
— Vais morrer!!! —
Uma voz forte gritou de entre as árvores, enquanto dois vultos lhe saltam ao
caminho.
— Credo, em Cruz,
mãe de Deus! — O Canhoto arregalou os olhos de susto e soltou um grito estrangulado,
antes de reconhecer os amigos, que riam do terror que lhe haviam infligido. —
Seus gandulos, artajeiros! Quase que me esfoiro todo de susto!
— Só queria que
visses a tua fuça! — O mais magro do trio, chorava a rir encostado a uma
árvore.
— Mijaste-te,
maninho? — Também o mais forte, a quem chamavam de Xico Zangão, tinha lágrimas
de tanto gargalhar.
— Ah, vão à merda.
Isto não se faz. — O Canhoto ainda tinha as pernas a tremer.
— Coitadinho… — O
mais magro, conhecido por Zé Patranhas, fez menção de o acarinhar, mas foi
prontamente sacudido.
— Sai-te daqui!
Pincha-Grilos de um raio! Andas sempre à turra e à maça com o meu irmão, mas me
fazerem galdrumeiras, já se ajuntam!
— Então, Tone. —
Tornou o Xico. — Não sejas assim! Borraste as ceroulas foi? — Soltou nova
gargalhada em uníssono com o Zé.
— Raio que vos
pele! — Amuou Tone, alombando novamente o saco e virando-lhes as costas,
retomando o caminho.
Os outros dois,
ainda a rir, correram a buscar os seus sacos, que esconderam no mato e tornaram
para junto do companheiro, para o atazanar mais um pouco.
— Valeu a pena
assaltar a casa do velho Menezes ou não valeu? — O Patranhas queria
reconhecimento. — O Badocha deu-nos uma boa dica.
— Até gostava de
voltar lá… — Riu o Canhoto. — A criadita era bem engraçada.
— Mesmo a mulher
do Menezes… Vejam lá aquele velho asqueroso com uma lasca daquelas! —
Acrescentou o Zangão. — E sorria-se toda para mim, parecia até que gostava de
ser assaltada.
— E gostava! —
Gargalhou o Patranhas. — Estava toda consolada, que eu estava a apalpar-lhe
as cascas!
— Mentiroso! —
Xico enfureceu-se. — Pantominas de um raio…
— Vá, calem-se lá.
Já vão começar novamente? — Interveio Tone, conciliador. — Temos aqui um bom saque
para dividir e ir vender ao Galego de Chaves. Ou só se juntam contra mim?
Ai, é verdade! —
Xico soltou uma sonora gargalhada. — Precisavas mesmo ver as tuas ventas de
cagaço!
Enquanto estavam
nestas brincadeiras, um enorme objeto voador, fortemente iluminado, passou a
baixa altitude, quase roçando as copas das arvores e levantando uma nuvem de
poeira, folhas e ramos soltos. Logo de seguida, o silvo grave que perseguia o
objeto, ensurdeceu-os por segundos, até tudo se quedar num silêncio pesado. Uma
enorme árvore seca caiu mais à frente.
— Que demónios foi
isto? — Perguntou o Patranhas assustadíssimo.
— Vinha a voar,
com muita luz! Era um anjo! — Exclamou o Canhoto.
— Com aquele
barulho dos infernos?!? — Discordou o Zangão. — Era na certa obra do mafarrico!
— Vamos embora,
depressa. — O Zé não tirava os olhos da direção tomada pelo estranho objeto.
— Acho que está
ali, por trás daquelas árvores. Vêm-se as luzes. — Apontou Tone. — Deve estar
naquela clareira que há ali abaixo.
— Vou lá
espreitar. — Anunciou o Zangão.
— É melhor não… — O
Patranhas tremia visivelmente. — Anjo ou demónio, pode não gostar de ser visto.
— Sim, acho que
seja lá o que for, devemos deixá-lo em paz… — Concordou o Canhoto, para as
costas do irmão, que abandonara o saco no chão e já se pusera a caminho.
— Oh, raios me
partam, lá vai ele meter-nos em sarilhos! — A voz do Zé também tremia. — Com
homens grandes ou mal-encarados eu cá me entendo, mas com estas coisas, não
gosto nada de estar por perto.
Como o companheiro
os ignorasse e, de varapau na mão, descesse o carreiro na direção da clareira,
os outros dois olharam um para o outro, indecisos.
— É meu irmão… —
Desculpou-se o Canhoto, empunhando a sua pistola.
Sozinho no
caminho, o Patranhas olhou em volta, para as árvores ainda envolvidas nas
sombras da madrugada. Ficar ali, enquanto eles iam, também não lhe parecia
grande ideia. Num resmungar choramingado, ocultou na vegetação os sacos
abandonados no caminho e correu atrás dos companheiros. Tirou a pistola do
cinto e armou-a. Eles já estavam escondidos na vegetação, fora da estrada e
fizeram-lhe o gesto para que se aproximasse em silêncio.
Para além das
giestas e ramos onde se acoitavam, existia uma enorme clareira de mato
rasteiro, onde se arrastava um pequeno ribeiro, que se tornava um colosso com
as chuvas invernais. Eles chamavam-lhe a praça dos recos bravos, pois,
normalmente, viam-se imensos por ali. Grande parte da clareira estava ocupada
pelo que parecia ser uma imensa, luminosa e fumegante casa sem janelas. Havia forte
emanação de calor a partir da inusitada construção.
Quando o Patranhas
ia manifestar o seu espanto, o Zangão voltou a gesticular para que fizesse
silêncio e apontou para o lado direito, onde estavam quatro pequenas pessoas,
vestindo o que parecia ser uma roupa cinzenta, que os cobria da cabeça aos pés.
Os elementos do
pequeno e estranho grupo gesticulavam entre eles, apontando o céu e emitindo
assobios e estalidos. Com o que parecia um pequeno graveto luminoso, um deles
começou a escrevinhar em pleno ar; o extraordinário, é que os gatafunhos
apareciam e ficavam estáticos na frente dele. Um outro, apagava alguns símbolos
e substituía-os, numa aparente correção, enquanto tagarelavam animadamente.
— Aquela porcaria pode
valer uma pipa de moedas! — Sussurrou o Canhoto, olhando espantado para os
outros dois.
— Vamos botar-nos
a eles. — Sentenciou o Zangão. — Aparecemos-lhes de três lados diferentes. Eu
quero uma caneta daquelas, como não sei escrever, pode ser que com ela não seja
preciso.
— Mas… já viste? —
Observou o Patranhas, pouco animado. — Eles são tão estranhos… que tipo de bicho
ou coisa são eles?
— São de fora, que
queres? Não podem usar os paramentos que quiserem? — Simplificou o
Zangão, sussurrando. — Por mim, podiam vestir a albarda do cavalo, ou a sotaina
do prior. — E continuou como quem fala com crianças. — Aparecemos; tu e o meu
irmão apontam-lhes as pistolas, eu dou uma barduada ou duas, se for
necessário, pegamos o que queremos e chispamos daqui para fora. Agora
vamos!
— Xico. — Também
Tone estava preocupado. — Aquilo parece mesmo bruxaria…
Enquanto estão
neste debate, um dos estranhos pega num pequeno retângulo e começa, como que
olhando através dele, efetuando um semicírculo em volta da sua localização.
Quando fica alinhado com a posição em que se encontravam os nossos assaltantes,
pára e chama o companheiro com um gesto. Os dois olham pelo retângulo e depois
sem ele. Os três amigos perceberam que tinham, de alguma maneira, sido
detetados.
— Tem de ser
agora, já! — Ordenou Xico erguendo-se e caminhando temerariamente na direção
dos estranhos, de varapau em punho.
— Maldição! —
Exclamou o Canhoto, erguendo-se também, mas engatilhando a pistola.
— Lá vamos nós
arranjar problemas por causa deste torgueiro! — Gemeu Zé, seguindo os
companheiros.
— Santa manhã,
amigos! — Exclamou o Zangão para os quatro surpreendidos estranhos. — Tendes aí
uma casa muito bonita.
— E também umas
coisas interessantes. — Complementou Tone. — Vamos aliviar-vos do peso delas.
Os símbolos
flutuantes desapareceram e os estrangeiros cinzentos começaram a gesticular e a
emitir os assobios e estalidos entre eles, apontando os recém-chegados.
Percebendo a
ameaça, o que estivera a escrever no ar, fez um pequeno gesto com a "caneta"
e as pistolas dos dois assaltantes saltaram-lhes das mãos e colaram-se ao chão
milagrosamente. O mesmo caminho seguiu o punhal do Canhoto que, no trajeto,
cortou o pedaço de couro que lhes servia de cinto, deixando-o literalmente com
as calças na mão. Não aconteceu o mesmo ao Patranhas, porque o cinturão era
mais resistente e ele conseguiu livrar-se da faca irresistivelmente atraída
para o solo. O Zangão viu-se de repente o único com uma arma e carregou sobre
eles soltando um chorrilho de palavrões.
Outro dos
cinzentos conseguiu, do que parecia uma mão vazia, atirar uma rede de fios
finíssimos, que crescia à medida que voava na direção do atacante. A teia caiu
sobre o assaltante e colou-se fortemente aos braços e às pernas fazendo-o cair.
Com o elemento
mais forte imobilizado, o Patranhas e o Canhoto perceberam que precisavam de
uma nova estratégia. Após uma fração de segundo de hesitação, fugiram para o
mato.
O cinzento que
atirara a teia, obviamente o chefe, fez um gesto aos restantes, que saíram a correr
atrás dos fugitivos.
— Solta-me desta
merda, espantalho! — Gritava o Zangão debatendo-se.
O chefe ignorava-o.
Olhava para o pequeno retângulo com que os localizara e emitia os ruídos da sua
fala, dando instruções aos companheiros.
— Quando me soltar
desta bosta, vai levar tantas… — Insistia o Zangão.
O cinzento
dignou-se a deitar-lhe um olhar do seu rosto inexpressivo, que quase não tinha
nariz entre os enormes olhos negros e cuja boca era pouco mais do que uma
fissura sem lábios. Apontou-lhe a palma da mão e saiu outra das teias de
aranha, mais pequena, que se colou na cara do furioso Xico. Com a mão
esquelética de quatro dedos, compôs a cola sobre a boca do prisioneiro, de
forma a reduzir os seus gritos a irados grunhidos. Após isso, ergueu
elegantemente a mão atravessada sobre a sua própria boca, numa caricatura do
sinal de silêncio. Depois regressou ao acompanhamento da caçada.
Não tardou que os
três cinzentos regressassem com os dois aterrorizados amigos, o Canhoto ainda a
segurar as calças. Mas é nesse momento que se dá a reviravolta; o furioso
Zangão está a conseguir soltar-se das teias que o prendiam. Os incrédulos
cinzentos olham para o homem a cortar os fios com uma faca.
— Vocês estão tão,
mas tão f**! — Exclamou Xico empunhando a arma. — Isto! — Exibiu triunfalmente.
— É uma lâmina de osso, não de metal!
Mas mesmo assim, orgulhosamente,
colocou a arma no cinto e pegou no bordão.
— Agora vou
mostrar-vos com quantos paus se faz uma canoa! — Gritou Zangão começando a
perseguir os apavorados cinzentos, que emitiam assobios aflitos.
Depois de uma
curta, mas intensa perseguição, onde eles conseguiram furtar-se por pouco aos
golpes de varapau, os quatro estranhos conseguiram reunir-se junto da estrutura
e uma luz azul envolveu-os.
As pauladas de
Xico estouravam ruidosamente sobre a luz azul, mas não conseguiam atingir os
cinzentos, que mesmo assim se encolhiam de medo.
Tone e Quim,
finalmente se recuperavam do medo e, vendo as criaturas encurraladas,
atiravam-lhes com o que podiam, embora tudo fosse repulso pelo halo azul. O
chefe das criaturas parecia escrever febrilmente no retângulo que já antes
usara.
Por fim, abriu-se
uma porta atrás dos cinzentos, de onde provinha uma fortíssima luz branca e eles
correram de imediato para ela. Assim que a porta se fechou, o azul que os
envolvia desapareceu e o Zangão conseguiu aproximar-se estrutura. Estranhou não
ser metal nem madeira, nem nada que reconhecesse, mas era sólido o suficiente
para o seu bordão e ele usou-o por várias vezes.
— Saiam daí, seus vassouros,
venham cá para fora! — Gritava Xico. — Covardes!
Repentinamente,
toda a estrutura ficou envolvida pela luz azul e os três amigos foram
projetados para trás com violência. De seguida levantou voo silenciosamente e
desapareceu em segundos no céu azul.
— Eu não disse que
era bruxaria? — Gemeu o Canhoto sentado no chão. — Escapamos de boa.
— Escapamos? — O
Zangão olhou para o irmão. — Eles é que nem sabem do que se safaram! Estiveram por
um pelo de levar um chuveiro de barduadas, que tão cedo não esqueceriam!
— Este raivoso
do catano! — Exclamou o Patranhas. — Está sempre a meter-nos em alhadas!
— Raivoso? — O
Zangão ergueu-se com o varapau em riste. — Seu aldrúbias canastrão! Olha
que eu…
— Lá estão eles
outra vez! — O canhoto levantou-se e virou costas aos dois amigos que discutiam
acaloradamente.
(Nota do autor: Este acontecimento deu-se algures no século XIX, mas acredito que, por causa dele, são pouco vulgares em Portugal os fenómenos envolvendo extraterrestres ou OVNIs)
4 comments:
Está delirante!!! Muito bom!
Abraço
É pena que não haja mais informação sobre estes fenómenos, ou então há e eu não leio. Por isso, a leitura deste conto, quase narrativa documental, é de um preciosismo ímpar.
Talvez não passe de três aldrabões que se deixaram aldrabar, mas, mesmo assim, é uma história com vivacidade, com dinâmica, com interesse constante para o leitor.
Realço a riqueza lexical deste texto, bem identificador do povo transmontano, e, pasme-se, usado ainda por muitos nessas terras. Só isso é motivo de sobra para se gostar desta narrativa, avessa a dicionários e fiel à autenticidade, Obrigado, Manuel Amaro Mendonça.
Numa altura em que se fala de tantos micro-elementos que afectam o planeta, esta resistência do vocabulário antigo, transversal ao conto, vem provar que o micro-valor de muitas palavras ainda faz sentido.
Parabéns, Manuel Amaro Mendonça. Mais um belo conto para nos agradar.
Fernando Morgado
Obrigado Amaro por mais este conto, os 3 estarolas contra os ovnis vindo de outro planeta, mas vá lá não eram verdes eram cinzentos. Fico a aguardar um novo conto
Um conto sobre o fantástico, concebido para relacionar o que não compreendemos ou temos dúvidas da sua existência com 3 rudes humanos, utilizadores de uma linguagem ainda usada por muitas pessoas com pouca cultura, mas com uma enorme riqueza no léxico do calão ... também assim se fala português.
Parabéns Manuel por me deliciar com mais um conto seu!
Enviar um comentário