Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Naquela manhã de domingo, o rádio despertador começou a
tocar, às 7:30h, como o fazia todos os dias. A música de Miguel Gameiro, “Dá-me
um abraço”, encheu o espaçoso quarto, dançando nas paredes ainda cheias de
sombras.
Dá-me um abraço que
seja forte
E me conforte a cada
canto
Não digas nada que o
nada é tanto
E eu não me importo
Ainda sonolenta, Irene não conseguiu deixar de esboçar um
sorriso, ao mesmo tempo que estendeu a mão para desligar o aparelho. O gesto
ficou suspenso no ar por uns segundos e acabou por deixar cair, sem interromper
a música.
Dá-me um abraço fica
por perto
Neste aperto tão pouco
espaço
Não quero mais nada,
só o silêncio
Do teu abraço
Adorava aquela melodia, sabia-a até toda de cor. Fora a
música de fundo de muitas e boas cenas da sua vida.
Entreabriu os olhos ao sentir a pressão de algo quente
contra as suas costas. A luz da manhã filtrava-se através dos pequenos espaços
da persiana em focos de partículas de pó, douradas e flutuantes, estendendo-se
até ao chão. Ajeitou as costas contra a pressão, espreguiçando-se
voluptuosamente… é domingo e o braço de João nas suas costas estava a
lembrar-lhe algumas “urgências”. Um calor invadiu o seu baixo ventre, sem, no
entanto, afastar o sono.
Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço
Com os olhos fechados e um sorriso malicioso, esfregou ainda
mais as costas contra o braço do adormecido companheiro, esperando que ele
acordasse e quisesse fazer o mesmo que ela desejava naquele momento. Empurrou
os seus braços entre as coxas e apertou com força enquanto se espreguiçava.
Deixou-se dormir mais um pouco, mas a vontade não ia embora. Há quanto tempo
não faziam amor…? Há quanto tempo não sentia aquele corpo musculado em cima
dela, não o apertava com as suas coxas ávidas…? “Desde que a cabra da Isaura
começara a rondá-lo” lembrou-se com raiva, “Maldita seja, que acabou por o
levar...”
Dá-me um abraço que me desperte
E me aperte sem me apertar
Que eu já estou perto abre os teus braços
Quando eu chegar
Imagens dolorosas de João e da ex-amiga alternaram-se com as
suas próprias recordações dos momentos de carinho com ele.
Ela não merecia aquilo! O seu companheiro e a sua melhor
amiga...
Abriu os olhos de espanto para a penumbra do quarto: “Acabou
por o levar? Então quem está atrás de mim?”
Mal se atrevendo a voltar-se, atirou o cotovelo para o lado
da cama que devia estar desocupado, rodando rapidamente. Um miado indignado
fez-se ouvir, logo seguido de patas fofas fugindo sobre o soalho.
É nesse abraço que eu descanso
Esse espaço que me sossega
E quando possas dá-me outro abraço
Só um não chega
“Coitadinho do bolachinha...”, pensou, “Esqueci-me
completamente do pobre bichaninho.”
Encolheu-se novamente em posição fetal.
João deixara-a. Trocou-a pela Isaura. Uma lágrima teimou em
correr ao longo do nariz e pingou sobre o travesseiro.
Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço
“Foi-se embora e não arranjou a porta do armário da cozinha,
que está solta há meses e nem substituiu o prego do quadro do corredor que está
sempre a cair… imprestável!” Revoltou-se.
Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço
.. ..
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço
Ergueu-se de um salto e deu uma forte pancada, para desligar
o rádio despertador, enquanto lhe gritava:
— Cala-te, monte de esterco! É domingo!
Tornou a enrolar-se nos lençóis desalinhados e limpou as
lágrimas com raiva.
“Ele foi-se embora? Quem
perdeu foi ele! Raio que o parta, não faz cá falta nenhuma!”
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