terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Manhã de Domingo

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

Photo by Ivan Oboleninov from Pexels

Naquela manhã de domingo, o rádio despertador começou a tocar, às 7:30h, como o fazia todos os dias. A música de Miguel Gameiro, “Dá-me um abraço”, encheu o espaçoso quarto, dançando nas paredes ainda cheias de sombras.

Dá-me um abraço que seja forte
E me conforte a cada canto
Não digas nada que o nada é tanto
E eu não me importo

Ainda sonolenta, Irene não conseguiu deixar de esboçar um sorriso, ao mesmo tempo que estendeu a mão para desligar o aparelho. O gesto ficou suspenso no ar por uns segundos e acabou por deixar cair, sem interromper a música.

Dá-me um abraço fica por perto
Neste aperto tão pouco espaço
Não quero mais nada, só o silêncio
Do teu abraço

Adorava aquela melodia, sabia-a até toda de cor. Fora a música de fundo de muitas e boas cenas da sua vida.
Entreabriu os olhos ao sentir a pressão de algo quente contra as suas costas. A luz da manhã filtrava-se através dos pequenos espaços da persiana em focos de partículas de pó, douradas e flutuantes, estendendo-se até ao chão. Ajeitou as costas contra a pressão, espreguiçando-se voluptuosamente… é domingo e o braço de João nas suas costas estava a lembrar-lhe algumas “urgências”. Um calor invadiu o seu baixo ventre, sem, no entanto, afastar o sono.

Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço

Com os olhos fechados e um sorriso malicioso, esfregou ainda mais as costas contra o braço do adormecido companheiro, esperando que ele acordasse e quisesse fazer o mesmo que ela desejava naquele momento. Empurrou os seus braços entre as coxas e apertou com força enquanto se espreguiçava. Deixou-se dormir mais um pouco, mas a vontade não ia embora. Há quanto tempo não faziam amor…? Há quanto tempo não sentia aquele corpo musculado em cima dela, não o apertava com as suas coxas ávidas…? “Desde que a cabra da Isaura começara a rondá-lo” lembrou-se com raiva, “Maldita seja, que acabou por o levar...”

Dá-me um abraço que me desperte
E me aperte sem me apertar
Que eu já estou perto abre os teus braços
Quando eu chegar

Imagens dolorosas de João e da ex-amiga alternaram-se com as suas próprias recordações dos momentos de carinho com ele.
Ela não merecia aquilo! O seu companheiro e a sua melhor amiga...
Abriu os olhos de espanto para a penumbra do quarto: “Acabou por o levar? Então quem está atrás de mim?”
Mal se atrevendo a voltar-se, atirou o cotovelo para o lado da cama que devia estar desocupado, rodando rapidamente. Um miado indignado fez-se ouvir, logo seguido de patas fofas fugindo sobre o soalho.

É nesse abraço que eu descanso
Esse espaço que me sossega
E quando possas dá-me outro abraço
Só um não chega

“Coitadinho do bolachinha...”, pensou, “Esqueci-me completamente do pobre bichaninho.”
Encolheu-se novamente em posição fetal.
João deixara-a. Trocou-a pela Isaura. Uma lágrima teimou em correr ao longo do nariz e pingou sobre o travesseiro.

Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço

“Foi-se embora e não arranjou a porta do armário da cozinha, que está solta há meses e nem substituiu o prego do quadro do corredor que está sempre a cair… imprestável!” Revoltou-se.

Já me perdi sem rumo certo
Já me venci pelo cansaço
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço
.. ..
E estando longe, estive tão perto
Do teu abraço

Ergueu-se de um salto e deu uma forte pancada, para desligar o rádio despertador, enquanto lhe gritava:
— Cala-te, monte de esterco! É domingo!
Tornou a enrolar-se nos lençóis desalinhados e limpou as lágrimas com raiva.
“Ele foi-se embora? Quem perdeu foi ele! Raio que o parta, não faz cá falta nenhuma!”
Share:

0 comments:

Receba as últimas novidades

Receba as novas publicações por correio eletrónico:

Número total de visualizações de páginas

Mensagens populares

Publicações aleatórias

Colaborações


Etiquetas

Contos (100) Marketing (57) Samizdat (56) Lançamentos (35) Contos Extensos (32) Contemporaneo (31) Eventos (30) Antologias (24) Autobiográfico (23) Poesia (23) religião (23) TDXisto (22) pobreza (22) roubo (22) Na Madrugada dos Tempos (21) Noticias (21) pre-historia (21) primitivo (21) sobrenatural (19) criminalidade (18) Crónicas (16) Sui Generis (16) homicidio (14) DAMarão (13) biblico (13) A Maldição dos Montenegro (12) Indigente (12) Recordações (12) sem-abrigo (12) separação (12) Pentautores (9) Suporte a criação (9) Século XIX (9) Uma Casa nas Ruas (9) genesis (9) publicações (9) Distinção (8) perda (8) solidão (8) Entrevistas (7) livros (7) terceira idade (7) Na Pele do Lobo (6) Rute (6) Terras de Xisto (6) Trás-os-montes (6) intolerancia (6) lobisomens (6) mosteiro (6) Apresentações (5) Papel D'Arroz (5) Revista (5) guerra (5) medo (5) morte (5) opressão (5) traição (5) Corrécio (4) Divulga Escritor (4) geriatria (4) sofrimento (4) vicio (4) LNRio (3) Portugal (3) Violência doméstica (3) dor (3) Carrazeda de Ansiães (2) Entre o Preto e o Branco (2) Ficção (2) Humor (2) Projetos (2) ambição (2) apocaliptico (2) cemiterio (2) culpa (2) futurista (2) isolamento (2) jogo (2) lendas (2) sonhos (2) Abuso sexual (1) Covid-19 (1) Extraterrestres (1) Minho Digital (1) Pandemia (1) Perversão (1) Viagens do tempo (1) abel e caim (1) bondade (1) desertificação (1) dificuldades (1) emigração (1) escultura (1) hospital (1) materialismo (1) mouras (1) natal (1) sorte (1) suspense (1) transfiguração (1)

Imprimir

Print Friendly and PDF