sábado, 3 de fevereiro de 2018

Na Pele do Lobo - Parte V - Final


EM FUGA



A noite tomara definitivamente conta do mundo e os dois monges avançavam com dificuldade pela estrada milenar, que ameaçava ser invadida pela floresta em alguns sítios onde começava a esboroar-se. A única luz que tinham, eram uns pequenos raios de luar que iluminavam fracamente através das copas das árvores. 
Que achais que se passou ali, irmão? — A voz de David, tremula de emoção e esforço, fez-se ouvir quase num sussurro.
Creio que o abade já suspeitava do que se estava a passar, mas não esperava que fosse tão grave. Ele bem referiu que era uma coincidência “do maldito” o facto da aldeia ser dedicada a São Cristóvão. — Também o outro denunciava esforço ao falar.
São Cristóvão?!? Que tem isso a ver com homens que se devoram?
Não só que se devoram, mas que se transformam… dizem escritos muito antigos que São Cristóvão era um ser com cabeça de cão.
Bendito seja Deus! — O monge benzeu-se. — Como se pode crer em tal coisa?
Antes de conhecer Nosso Senhor Jesus Cristo, São Cristóvão não só tinha cabeça de cão, como comia carne humana; era um Cynocephalus. Quando se converteu recebeu a forma humana como recompensa.
Agora me lembro! — Os olhos de David brilhavam e pareciam saltar das órbitas, no escuro. — Sim, agora me lembro de ler sobre os Cynocephalus, mas nunca associei a este santo…
Como o abade pensava, esta peste é contagiosa e espalha-se como fogo na palha, temos que nos precaver e alertar todas as terras em volta. Assim que se comerem uns aos outros, passará, mas teremos que impedir que alastre. — Lágrimas correram do olhos de Simão. — A minha fé não foi suficiente para exorcizar aquele mau espírito e não temos tempo para o fazer a qualquer deles, antes que nos devore.
O resto do caminho foi num silêncio pesado, só interrompido pelo arfar dos dois monges, mas começavam a temer falhar o carreiro onde deviam abandonar a calçada e tomar a direção do mosteiro. Por fim, divisaram o que parecia um saco, mas depois acabaram por perceber que era um corpo deitado na estrada. Logo ao lado iniciava-se o trilho que deviam seguir.

*** *** ***
Irmão João! Irmão, que tendes? Aqui deitado no meio da estrada sujeito a ser pisoteado por algum cavalo! — A voz de frei Simão chegava de longe e arrancava-o lentamente do torpor em que se encontrava. — Estais ferido? Isto é sangue? — Ele tentou ver no escuro o liquido viscoso com que empapara as mãos ao ajudar o companheiro.
Onde está o irmão Tiago? — Quis saber David olhando em volta e embrenhando-se no mato que ladeava o trilho.
Não sei. — João arrastava uma voz distorcida e estranha, enquanto se tentava erguer. — Ele deixou-me descansar um pouco. — Ato contínuo, vomitou copiosamente no espaço entre eles. 
Simão largou-o e deu um passo atrás entre o surpreendido e o enjoado. Olhou as mãos sujas à luz da lua e os restos expulsos pelo monge. Grossas gotas de transpiração correram-lhe na fronte quando olhou o João, de novo de joelhos e depois para além dele, numa expressão de puro pânico.
Foge, irmão!!!! — Gritou Simão a plenos pulmões, repentinamente, fazendo gelar o sangue nas veias de João e David.
Tão depressa gritou como se lançou numa corrida na direção do convento, deixando os dois companheiros para trás. David, saiu do meio do matagal e deitou a correr atrás dele, mas tropeçou de imediato em algo volumoso que rebolou entre os seus pés. Conseguiu distinguir no escuro um corpo envergando as vestes de monge. O rosto quase tinha desaparecido, restando os ossos expostos da face com o sorriso eterno da morte. Gritou histérico e relançou-se na corrida atrás do outro.
João, completamente trôpego, correu desajeitadamente atrás dos dois, que lhe ganhavam distância rapidamente. Em pânico, sem parar, tentou olhar para trás para perceber  o que os perseguia e caiu desamparado no meio das silvas que ladeavam o trilho.
Ergueu-se novamente e reiniciou a corrida, se é que se podia chamar corrida às grotescas passadas que dava. Sentia-se tonto e enjoado, a vista fugia-lhe e acabou por apagar-se.

*** *** ***

Sonhava com lobos e via focinhos de presas ensanguentadas, garras que rasgavam carne... e tristeza, tanta tristeza...
O senhor seja louvado, irmão João! — A voz de Félix chegava-lhe difusa, mas transmitia-lhe conforto e calma. Chorou mansamente enquanto sentia dores excruciantes em todo o corpo. — Que fazeis aqui? Onde estão os outros? Valha-nos Deus, está todo ferido e ensanguentado! Acudam aqui, irmãos. Oh valha-nos o Salvador, como ele está!
Sentiu-se erguido no ar e transportado. Assim embalado,  incapaz de responder, entregou-se ao torpor e perdeu o conhecimento novamente.

*** *** ***

Havia paz… não sentia o tecido grosseiro do hábito junto ao corpo. A respiração estava calma, mas não se conseguia mover nem abrir os olhos, como se o seu corpo não lhe obedecesse. De novo lhe chegavam as vozes quase indistintas que sussurravam. Ele escutava como se fosse apenas um ouvinte a quem não interessava a conversa.
De certeza que não havia mais ninguém? Até onde foram?
Quase até à estrada romana, reverendíssimo abade.
Nada, nada? — Mateus insistiu.
Não senhor, há vestígios de sangue em vários sítios, mas supomos que sejam do irmão João. Não sabemos como se feriu desta maneira e não sei como consegue estar vivo, depois de perder tanto sangue. Já reparou bem no rosto dele, cheio de hematomas? Está tão deformado que quase não o reconhecia.
Mas e os outros que foram convosco, irmão Félix?
Como eu e o irmão Marcos trouxemos João numa padiola, os outros seguiram em frente.
O que quer que atacou o irmão João, deve ter atacado também os outros. Valha-me Deus e anda pela floresta às soltas! — O abade gemeu. — Ele deve ser o único sobrevivente. Depressa, tendes que ir em busca dos nossos irmãos, que regressem rápido, os outros devem estar mortos! Ide-vos, via! Faltam poucas horas para anoitecer, levai todos os que puderdes e armai-vos, nem que seja com as facas das cozinhas!
Tudo sossegou novamente e João retomou o seu sono.

*** *** ***

Acordou. Abriu os olhos e comprovou que estava na sua cela. Já era noite, estaria completamente escuro, não fosse uma pequena vela pousada na mesa que usava para ler.
Soergueu-se e rosnou com dores no corpo, mas mesmo assim sentia-se cheio de energia. Esfregou os olhos e achou a pele muito sedosa. Olhou as mãos escuras e enclavinhadas. Ergueu-se cambaleante.
Do pequeno postigo que dava para o pátio chegavam-lhe as vozes dos irmãos:
Encontramos Simão, Tiago e David!!! Estão todos em bocados meio devorados!
Onde está João? Tiago tinha o capuz dele na mão!
Doía-lhe a boca, parecia que os dentes não cabiam lá. Aproximou-se da bacia de cobre, ao pé da vela, para lavar o rosto e estacou ao olhar as mãos castanhas cobertas de pelo sedoso e olhou para a água que ondulava no recipiente; era a cabeça de um lobo que o olhava no reflexo.





** FIM **


Parte IV - São Cristóvão da Chã


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