SÃO CRISTÓVÃO DA CHÃ
Simão e os companheiros estavam a chegar a São Cristóvão da Chã com as últimas luzes do dia. Saíram das árvores e a estrada continuava num declive mais ou menos suave, até às primeiras casas quase uma légua abaixo. O casario estava agrupado numa linha que deveria ter cerca de oitocentas varas e ramificava-se em vários raios a partir do centro. Aparentava albergar umas boas centenas de habitantes. Fora erguido numa planície, ao lado de um ribeiro que corria cheio e cercado dos campos de cultivo que se alargavam até à floresta. Mas Simão estava remoído de preocupação, por ter deixado os dois irmãos para trás, apesar de não haver outra hipótese. De outra forma não poderiam chegar à aldeia a tempo de falar com alguém e arranjar alojamentos sem terem de andar a bater às portas todas… depois, dois deles haveriam de ir ao encontro dos retardatários.
— Irmão. — A mão forte de Filipe apertou o braço do chefe, puxando-o para que parasse.
— Que se passa? — Domingos apercebeu-se do tom do cavaleiro e espevitou as orelhas.
— Não há ninguém nas ruas, nem nos campos, não há fumo a sair das casas, não se ouve um cão ou uma galinha sequer.
— Tendes razão. — Anuiu Simão.
Com mais atenção, aproximaram-se do casario e verificaram que as portas estavam abertas, umas mais e outras menos, mas todas abertas. Algumas tinham sinais de arrombamento. Não se atreveram a entrar em nenhuma antes de chegarem ao centro da aldeia. Havia três corpos, dois masculinos e um feminino, em decomposição, caídos dentro do tanque ao lado da fonte. David aproximou-se para investigar um enorme monte de cinzas a pouca distância e com o seu bordão, fez rolar para fora um crânio completamente negro. Reinava um cheiro pungente a morte, mas continuava a não se encontrar ninguém… nem mesmo um cão. Manchas de sangue, mais ou menos frescas, reconheciam-se nas lajes da praça.
Filipe decidiu-se e avançou para um dos casebres mais pequenos. Empurrou a porta com um pontapé e observou o interior da única divisão em completo desalinho: mesa partida, panelas e roupas espalhadas pelo chão… mas nem viva alma. Avançou para a outra mesmo ao lado e repetiu o procedimento. Os outros juntaram-se-lhe a imitarem o comportamento, até quase se acabarem as casas da praça.
— Aqui! — Gritou Domingos.
Todos acorreram. Também aquela porta fora arrombada e na obscuridade descobriram vários corpos, despidos, com aspeto de grande violência. Muitas equimoses e semi-devorados. Era uma casa de alguém mais abastado, porque o chão estava pavimentado, mas havia pegadas, marcadas a sangue por pés descalços, por todo o lado. O odor era indescritível, mas Simão, com a manga do hábito a tapar a boca e o nariz, aproximou-se a examinar os cadáveres.
— Não entendo. — Suspirou Domingos com uma careta. — Lobos?
— Lobos não arrombam portas. — Sentenciou Filipe com o seu sotaque carregado, ajoelhado a acender uma vela que apanhara do chão. — Estes infelizes fecharam-se aqui enquanto puderam, depois a porta foi arrombada e tudo acabou.
— Estas dentadas não foram feitas por mandíbulas de lobos ou cães… são parecidas com as que faria um humano, mas ligeiramente diferentes. — Esclareceu Simão. — Vêm-se muitas pegadas mas nenhuma de animal.
David benzeu-se devagar, enquanto digeria toda a informação.
— Não podemos ficar aqui! — Exclamou Domingos. — Fosse lá o que fosse, pode voltar e se estas pessoas todas não lhes conseguiram fazer frente…
— Tendes razão. Temos que regressar rapidamente ao mosteiro e alertar o abade, isto é bem pior do que alguém poderia imaginar. — Simão percorreu com o olhar o espaço, agora um pouco mais visível com a luz trémula.
— Ali! — Avisou Filipe avançado decididamente para um corpo nu, enrolado a um canto, que se movera.
Era pequeno como uma criança e quando o templário lhe tocou no braço, com intenção de o voltar, ele rodou rapidamente para longe da mão e, após os enfrentar, com os quatro membros no chão e um rosto negro de sujidade, rugiu assustadoramente exibindo caninos salientes. Após isso, lançou-se num inesperado salto, com a boca escancarada, na direção do rosto de Filipe. Este, beneficiando de reflexos rápidos e da sua estatura em relação ao atacante, largou a vela e agarrou-o pelo pescoço. Tratava-se de um rapaz, o rosto deformado, mais próximo de um focinho do que uma face humana, pêlo fino, quase invisível, cobria a maior parte do corpo e, enquanto se debatia nas mãos fortes, rosnava e ladrava tentando morder o seu captor.
Estarrecidos até ao mais fundo das suas almas, Domingos e David gritaram e benzeram-se em simultâneo, enquanto rodavam para fugir. Mais controlado, Simão extraiu um crucifixo e um pequeno frasco do hábito e, empunhando um e aspergindo a criatura com o outro, começou a entoar:
— Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis satanica potestas, …
David também ergueu o crucifixo de madeira que trazia ao pescoço e começou a benzer a criatura, mas nada parecia surtir efeito e Filipe estava a começar a ficar cansado. Pequenas chamas mourejavam junto a uma das paredes interiores, no local para onde rolara a vela.
O rito continuou e Domingos ajudou a segurar o exorcizado, com pouca habilidade, pois tinha receio de lhe tocar e estava perturbado com a nudez do jovem.
A transpirar abundantemente, Simão gritava mais alto sobre os rugidos do ser:
— Imperat tibi Deus altissimus, cui in magna tua superbia te similem haberi adhuc præsumis; qui omnes homines vult salvos fieri et ad agnitionem veritaris venire. Imperat tibi Deus Pater; imperat tibi Deus Filius; imperat tibi Deus Spiritus Sanctus. Imperat tibi majestas Christi, æternum Dei Verbum, caro factum...
Por fim, devido ao cansaço, que não parecia afetar o rapazinho, Filipe aliviou a pressão e foi o suficiente para levar uma forte dentada num dos braços. Louco de dor, o templário gritou e tentou soltar-se, mas a criatura não desferrava e começava a correr o sangue, à medida que ela se esforçava por rasgar a pele. Domingos estava a estorvar mais do que ajudar, pois puxava o pequeno corpo, impedindo Filipe de se movimentar com liberdade.
— ...sua humilitate contrivit. Imperat tibi fides sanctorum Apostolorum Petri et Pauli, et ceterorum Apostolorum + . Imperat tibi Martyrum sanguis, ac pia Sanctorum et… — Simão recitava o exorcismo cada vez mais alto, pois sabia que não podia interromper ou teria de começar de novo.
Um pontapé fez Domingos cair e chorar de pavor tapando-se com o capuz. Não aguentando mais, Filipe bateu com a cabeça da criatura, com toda a força, na parede de granito. O estrondo, como que de uma cabaça a rebentar, fez todos ficarem imóveis e incrédulos. Sentia-se um silêncio pesado quando o templário deixou-se cair de joelhos e com lágrimas nos olhos, abriu as mandíbulas sangrentas do cadáver. Uma ferida profunda ficou exposta com um pedaço de pele pendurada, de onde o sangue vertia abundantemente.
Já as chamas lambiam as paredes interiores, de tabique, quando todos abandonaram a casa, com o braço de Filipe apertado por ligaduras feitas com as túnicas, onde se via, mesmo assim, uma espessa mancha púrpura.
Chegados ao exterior deparam, em choque, com dois recém-chegados, do outro lado da praça, saindo de uma viela. Pareciam-se mais com animais do que com homens, rostos transfigurados, costas curvadas, quase de gatas e pêlo hirsuto ao longo de todo o corpo.
Simão fez o gesto de procurar novamente o crucifixo mas Filipe advertiu-o:
— Irmão, já vimos que isso não está a funcionar, a nossa fé não deve ser suficiente para vencer este mal. — Tirou um punhal de dentro do hábito e sorriu perante o olhar escandalizado do outro. — Por vezes temos que dar uma ajuda à salvação. Não temos tempo a perder, correi irmãos, ide avisar o mosteiro do que aqui se passa e acudi a João e Tiago que devem estar a chegar.
— Já vi que estas coisas podem ser mortas, sendo assim, já não lhes tenho medo! — Exclamou Domingos erguendo o seu bordão. — Acabamos com as criaturas e O Senhor lá se encarregará de lhes dar a salvação.
— Não digais heresias! — Censurou Simão.
— Ide-vos! — Ordenou o templário. — Não esperem por nós, se Deus assim o quiser, breve nos juntaremos novamente.
— São apenas dois… — Começou David.
— Não! — Insistiu Filipe. — Vêm mais lá. Se frei Domingos ficar comigo, vós tereis mais hipóteses, fujam. Vamos matar uns quantos e depois fugimos também. O importante é avisar o mosteiro o quanto antes. Reforcem as portas todas e armem-se com algo mais que crucifixos e água benta…
Apavorado, mas percebendo como era crítica a situação deles, Simão, com os olhos marejados de água, abraçou Filipe e Domingos; não conseguindo dizer palavra, embargado que estava pela dor.
David, lavado em lágrimas despediu-se dos dois monges e apressou-se a seguir Simão, que tomara a dianteira em passo rápido, mas ainda a tempo de ver mais estranhas criaturas, juntando-se, ainda indecisas sobre como agir com os intrusos.
Já quase corriam pela estrada que subia a serra, quando o barulho chegou até eles. Durante alguns minutos, latidos, ganidos, gritos e pancadas ouviram-se provenientes da aldeia e depois… silêncio.
Temendo transformar-se numa estátua de sal,, à semelhança da Sara fugida de Sodoma, David não se atrevia a olhar para trás, Simão, porém, voltou-se antes de se embrenharem nas árvores que escondiam a estrada. Lá longe, altas labaredas consumiam várias casas e na entrada da aldeia, um homem envergando um quase desfeito hábito castanho, fugia cambaleante do meio do casario, perseguido de perto por cerca de dez criaturas. Caiu e foi rapidamente atacado pelos perseguidores. Nos segundos que se seguiram, dezenas de outros amontoaram-se, lutando entre eles e empurrando-se, para se juntarem ao “banquete”.
Horrorizado, empurrou David e, por fim, acabou por passar-lhe à frente e puxa-lo para se afastarem rapidamente dali.
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