quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Traição II

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Entrou cambaleante na casa de banho da discoteca e o cheiro intenso a urina e vómito atingiu-o com força.
Apoiou-se na laje molhada semeada de bocados de papel que servia de lavatório e enfrentou aquele rosto sério que o olhava todos os dias. O cabelo raiado de fios brancos estava molhado de chuva e de transpiração. Olheiras negras acentuavam-lhe a vista cansada.
As pernas tremiam-lhe, estava e sentia-se um trapo. Além de ligeiramente bêbado… ou completamente.
Já há muito tempo não bebia assim e a capacidade para dominar os efeitos da bebida há muito que vinha a reduzir.
Fez um trejeito de desprezo para ele próprio enquanto a cabeça oscilava ligeiramente num desequilíbrio mais ou menos controlado:
-        Na mesma noite desrespeitaste três das tuas regras essenciais. – A voz rouca e entaramelada sentenciou para o espelho enquanto erguia uma das mãos e contava pelos dedos – Bebeste de mais, fizeste sexo com uma desconhecida e essa desconhecida tinha quase idade para ser tua filha. Estás a ficar velho, a perder qualidades e o respeito pela tua própria forma de vida!
Inclinou-se e passou água no rosto por várias vezes. Limpou-se e atirou com os papéis para o lavatório.
Endireitou-se mirando-se numa caricatura de pose altiva sentenciando:
-        Quem te viu e quem te vê!
Trôpego, abandonou a divisão apalpando as chaves do carro no bolso do casaco molhado e dirigiu-se para a saída do edifício.
À porta foi abordado por uma jovem magra, molhada como ele, que tremia de frio e excitação com os braços envolvidos no corpo numa tentativa de se aquecer. O cabelo que de tão loiro era quase branco, escorria sobre a cabeça e pingava copiosamente sobre os ombros. Os olhos de um azul celeste olhavam-no com receio e admiração enquanto se lamentava:
-        Fechaste o carro enquanto fui fazer xixi e molhei-me toda quando regressei para dar com o nariz na porta.
Ele olhou-a como se fosse a primeira vez que a via, passou a mão pelo rosto e esfregou os olhos com força.
-        Estás bem? - Ela insistiu tentando espreitar por entre os dedos dele e soltando um risinho acriançado – Bebeste um bocadinho de mais não foi?
Simão, oscilante, olhou-a e devolveu-lhe um sorriso triste e cansado:
-        É, miúda, bebi um bocadinho demais. Foi isso. Agora vou-me embora.
-        Há pouco não me chamavas miúda. – Provocou a jovem em tom irritado.
-        Tens razão, há pouco não. Só que há pouco eu era um pouco mais cretino do que sou agora. Desculpa-me – Passou-lhe a mão pelo rosto numa carícia antes de se afastar em passos largos para a saída.
Desconcertada, deixou-se ficar um pouco a olha-lo saindo calmamente, mas com pouca confiança:
-        Já tens o que querias não é, filho da puta? – Explodiu ao mesmo tempo que as lágrimas irrompiam dos olhos claros. – Também não vales nada, não passas de um velho caquético e baboso. Nem conseguiste dar a segunda!
Correu para a casa de banho, furiosa, soltando uivos de indignação e deixando boquiabertos aqueles com quem se cruzou.
Ele não escutou, ou ignorou-a e saiu para a chuva forte não se preocupando sequer em acelerar o passo. As gotas que lhe castigavam o rosto eram bem vindas e já nem sentia a roupa encharcada.
Abriu a porta do BMW cinzento metalizado com alguns anos e atirou-se para o assento do condutor. Pousou a cabeça no volante tentando recompor-se.
Tinha saído com alguns colegas de trabalho para jantar e festejar o aniversário de um deles, no fim, com outros três, decidiu terminar a noite numa discoteca e assim fizeram. Com o passar das horas e o consumo de álcool em crescendo, um a um foram-se indo embora restando apenas ele.
Quando estava quase para desistir também, reparou na miúda loira (não deveria ter mais de 18 anos... se os tivesse) que o olhava com insistência.
Não era muito bonita mas debaixo da intoxicação alcoólica os seus “instintos de macho caçador” foram ativados e num instante estavam a dançar na pista... tinha noção que poderia ter exagerado um pouco nos seus movimentos mas o que é certo é que pouco depois estavam aos beijos dentro do seu carro.
O sexo foi atrapalhado e louco como se lembrava ter sido noutras ocasiões semelhantes há mais anos do que gostava de reconhecer. Mas uma vez mais provou a si próprio que, ao contrario do que se diz, o álcool não tira a ereção... pelo menos não completamente. Enfim, não foi nenhum Kama Sutra, para ele chegava, se ela queria mais, temos pena. Talvez outro dia.
Agora, porém, sentia-se um pouco mais afetado pela bebida. Meteu a chave na ignição inclinando a cabeça por baixo do volante e viu um dos lenços de papel utilizados no chão. Com uma expressão de repulsa pegou-lhe com a ponta dos dedos e atirou-o pela janela.
Nesse preciso momento uma mão enorme entrou pela janela aberta, agarrou-o pelo cabelo curto e tentou puxa-lo pela abertura. Graças ao facto do cabelo ser curto conseguiu libertar-se para olhar, incrédulo para um homem baixo de olhar feroz que gritava algo e tentava agarra-lo novamente. Por trás dele, a miúda de há pouco exibia um ar de triunfo.
-        Mas que queres? Que é que te deu? - O assustado Simão afastava-se o mais que podia da mão sapuda que por sorte pertencia a um braço curto.
-        Vou partir-te as putas das ventas, filho da puta. Meteste-te com a minha irmã? - Gritava o energúmeno. - Sabes que é uma menor? Cabrão!
-        Eu?!? Ela é que se meteu comigo. - Enquanto isso conseguiu fechar o vidro e a mão precipitou-se rapidamente para o exterior para não ser trilhada.
Uma sequência de pontapés na porta e muros no vidro acompanhados de insultos foi a resposta do indivíduo.
Tremendo, debaixo da agressão teimosa que o veículo recebia, conseguiu por o motor a trabalhar e tentou abandonar o parque quase passando por cima agressor. A chuva no para brisas, a luz dos faróis e o chão molhado tornavam a tarefa de conduzir embriagado quase impossível.
Ao contornar a primeira fila de carros estacionados, o indivíduo, qual búfalo, saiu bufando do meio das viaturas e atirou-se sobre o capô. O aterrorizado condutor guinou algumas vezes atirando-o ao chão e acelerou.
-        Mas que sorte da merda. - Simão estava agora mais consciente, afastada a embriagues com o pavor que sentia – A cabra da gaja tinha que ter um filho da puta de um touro por irmão.
No inicio da nova fila de carros, uma vez mais a sua némesis surge à frente do veículo. Agora armado com um guarda chuva que atirou contra o para brisas ao saltar para o lado para evitar ser colhido.
-        Valha-me Deus! No que eu me meti. - Gemeu contemplando a racha no para brisas – Minha Nossa Senhora de Fátima! Se me livro desta não quero saber mais de gaja nenhuma. Só vou ter olhos para a minha mulher. Vou ser um modelo de virtude!
Já na chegada à cancela de saída do parque (que por acaso estava aberta) passou como um foguete para a estrada sem cuidados com o transito e ainda a tempo de perceber o vingativo individuo a sair do meio das viaturas estacionadas quase a apanha-lo outra vez.
Por sorte não havia veículos na estrada àquela hora tardia e conseguiu com alguma dificuldade e manobras perigosas a chiar os pneus estabilizar o automóvel para circular na faixa de rodagem certa.
-        Fonix! - Gemeu – O que me havia de calhar no “fim da festa”. Os olhos seguiam constantemente para o retrovisor com medo de divisar alguém a segui-lo. - Parecia o puto do Rocky. Cabrão!
Ainda com as mãos e as pernas a tremer, a velocidade a que se afastava do local fazia-o gradualmente sentir-se mais seguro.
Escapara de uma situação perigosa apenas com um para brisas estalado e algumas amassadelas na chapa. Muita sorte.
-        Só vou ter olhos para a minha mulher... - Reiterou – Modelo de virtude...
Segurava o volante com força reduzindo, mas não parando, nos semáforos vermelhos enquanto pensava na sua promessa.
-        Não posso começar já... amanhã é dia de estar com a doce Eduarda.
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