A Maria e o Zé,
como a maior parte da aldeia, dependiam dos Samões pela casa e pelo trabalho
porque, sendo este último o dono de praticamente todas as terras em redor, era
o maior empregador da região. No entanto, a sua relação com o fidalgo era um
pouco mais complexa, a sua mãe, Emilia, trabalhara muitos anos como criada da casa e
dizia-se à boca pequena que a jovem Maria era filha dele que estava viúvo há alguns anos.
A suspeita nunca foi desmentida mas também nunca confirmada. A morte de Emília, deu ao patrão a oportunidade de tirar a inconveniente criança
da casa senhorial e entrega-la aos tios que eram os feitores da propriedade em
volta da casa.
Os problemas com
ela não acabaram aí. À medida que crescia, tornava-se bonita e sensual. Herdara
da mãe as formas e finura de rosto, atraindo a atenção de aldeãos, criados e…
do filho único do fidalgo.
Passaram-se
alguns anos com o senhor a tentar casar Maria com este ou aquele empregado, um
ou outro aldeão, que acabavam por ser afugentados às escondidas por Luís Samões. Este, ignorante ou indiferente às suspeitas de fraternidade não arredava mão de
tentar possuir a bela jovem.
Até que um dia,
numa madrugada de Setembro, chegou um grupo de romeiros para ajudar à vindima e
entre eles vinha um jovem alto e forte de cabelos claros, compridos e rebeldes,
bem ao jeito do seu dono. Chegava à aldeia José de Sousa, conhecido pelo Zé
Sobreiro devido ao respeitável cajado de que nunca se apartava
A paixão entre
os dois despertou carinhos e ódios nuns e outros, mas para o Senhor Samões era
a sorte grande que lhe saía. Abençoou o casamento e ofereceu-lhes uma casa na aldeia.
Tirava a inconveniente definitivamente da sua casa e afastava o filho para
outra mulheres… julgava ele.
Luís nunca
aceitou ser preterido por qualquer homem e muito menos por um camponês.
Infernizou a vida dos dois e diversas vezes provocou duelos com os varapaus,
onde não permitia que os seus criados interviessem... e que invariavelmente
perdia. Acabava em casa a curar as mazelas e sendo invectivado pelo pai por
andar envolvido em rixas com um vulgar camponês.
Não foram poucas
a vezes que André Samões ameaçou o Zé e a Maria de expulsão da aldeia por causa
dessas situações.
…
Nas
circunstâncias actuais, ao tratar Maria por Maria Sobreiro, o apelido do marido, o fidalgo fazia
o último e definitivo corte de relações com a jovem dissipando qualquer resíduo
de suspeita de filiação que ainda pudesse existir.
O burburinho
recomeçou entre os presentes contando uns aos outros o que se tinha passado e
aquilo que tinham visto. Apontavam-na, mas ninguém se atrevia a aproximar-se
dela mesmo depois do fidalgo se ter afastado.
A partir daquele
momento ela deixara de ser a possível filha do Senhor Samões para se tornar a
mulher daquele que quase matara o seu filho.
Em choque, a
jovem quedou-se tremendo olhando a poça de sangue no chão e nem se apercebeu do
olhar de satisfação que um dos lacaios do fidalgo lhe deitou.
A visão foi-lhe
ocultada por um tronco maciço encimado por um rosto mal barbeado, decorado com
um enorme bigode e um cabelo negro raiado de fios brancos e despenteado:
- Vamos embora
daqui rapariga. – Pediu com a doçura possível da sua voz tonitruante.
- Tio Manel… - Maria pareceu despertar e
olhou-o, de baixo para cima, com uma súplica no olhar – Que é do meu Zé?
- Se ainda resta
um pingo de juízo naquela cabeça oca, muito longe daqui. – Continuou o homem –
Vamos embora, filha. Vamos sair deste lugar.
Como que em
transe, ela deixou-se guiar por entre as pessoas que, relutantemente, iam
abrindo a passagem.
Afastam-se a
passos curtos do ajuntamento que os olha uns com tristeza e outros com
desprezo.
Entretanto uma
mulher aproxima-se de ambos e ajuda a amparar a jovem que se lhe dirige:
- Tia Joaquina,
perdi o meu Zé, não foi? Nunca mais o vejo, pois não, minha tia? Fugiu e não
volta mais.
A mulher tinha
lágrimas nos olhos e não a encarou quando lhe respondeu sem parar de andar:
- Hás-de
encontrá-lo minha querida. Deus é bom e vais encontra-lo. Mas é importante que
te vás daqui o mais rápido possível, o Senhor Samões está desvairado e Nossa
Senhora nos valha se que aquele bandido do Luís morrer.
- Ir embora? –
Maria estacou – Ir embora para onde? Ir-me por esse mundo afora?
- Tem que ser
minha filha – O tio tentou convencê-la – não podes ficar aqui, o Luís estava
muito mal quando o levaram. Não sei se passará o resto da noite sem que o leve
o Diabo, - Joaquina benzeu-se rapidamente - sim, porque Deus já lhe deve ter
destinado o anfitrião.
- Mas eu não
posso ir! Para onde iria? E o Zé quando regressar? Não saberá de mim.
- Duvido que ele
abeire por aqui tão cedo. – A tia sentenciou – Pelo menos se souber que tu já
cá não estás. Neste momento és um perigo para ele e para ti.
- Arranjas umas
roupitas, uma bucha e uma cabaça com água e vamos embora. Ainda hoje te levo no
cavalo a casa dos meus compadres na aldeia vizinha que te acolherão o resto da
noite de bom grado. Ao nascer do dia deves pôr-te ao caminho. Temos família em
Soutelo, corre para lá e que te guardem mais uns dias para que possas ir mais
longe. Vai para o Porto, é grande o suficiente para que não encontrem com
facilidade.
Retomaram a
marcha enquanto Maria reflecte nas palavras dos tios. Quase ao chegar a casa
sentenciou:
- Eu não posso
ir embora. Não sem o meu Zé que há-de vir por mim.
- Oh, Valha-me
Deus, querida filha. – Joaquina chorava já sem o esconder – Não podes ficar que
vais causar desgraça ainda maior.
As pessoas
começavam a regressar às suas casas e olhavam com curiosidade o trio que
debatia em voz baixo o que deveria fazer.
- Já te disse –
o tio insistiu – não fosse ele ser ágil e distribuir umas bordoadas à direita e
á esquerda e os criados do Senhor André tinham-no morto ali mesmo, quando o menino
Luís caiu com a pancada na cabeça. Que Deus me perdoe, parecia o barulho de um
tiro. Se ficares, e ele vier buscar-te, hão-de estar aí de emboscada para o
matar e quem estiver com ele. Vem comigo – implorou – eu levo-te.
- Não posso, não
quero. – Com uma expressão carregada de decisão, olhou-os a ambos a ambos nos
olhos – Só saio daqui com o meu Zé. Com o meu marido.
Os passos nas
ruas novamente desertas fizeram-nos olhar para o outro lado da rua.
Um homem mancava
para as escadas da casa em frente à de Maria. Era o Quim Coxo, um dos lacaios
mais velhacos do Senhor Samões, exibia uma pistola no cinto e um sorriso de
escarninho enquanto se sentava nos degraus e dizia alto o suficiente para ser
ouvido:
- Mandaram
chamar o médico, que deve estar por aí a chegar, mas diz o Endireita que o
patrãozinho não escapa. – Conseguia-se distinguir a boca rodeada pela barba
mal feita onde se notavam a falta de vários dentes. – Mas o teu chulo se calhar ainda
viverá menos. Vou ficar aqui à espera dele.
A jovem cerrou
os punhos e preparava-se para responder quando o tio a admoestou num sussurro:
- Calma
rapariga, tem calma. Já houve tragédia a mais para uma noite só. Não lhe
ligues, já conheces o animal. E agora está visto que hoje não podemos ir levar-te…
- Eu não vou! –
Ela insistiu
- … Mas vamos
ver se te conseguimos tirar daqui o quanto antes – continuou ele como se não a
ouvisse.
- Nós vamos
embora agora – Diz a tia – esse meliante vai passar aí a noite mas não se
atreve a meter contigo porque ia ter que se haver com o patrão. Vai descansar
um bocadinho e amanhã tentamos falar outra vez para combinar o que fazemos.
Descansa e reza que Deus se apiede do Luís e não o mande por hora para o
inferno.
- Sim, queridos
tios, vamos todos tentar descansar um pouco para ver amanhã que hei-de fazer da
vida… E rezar por esse excomungado Luís Samões… Nunca tal me passaria pela
cabeça.
Beijaram-se em
despedida e afastaram-se, eles para a sua casa e ela para o interior da dela.
Não sem antes deitar um olhar venenoso ao meliante sentado nas escadas defronte
e bater ruidosamente com a porta.
Veja a 3ª parte neste link
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1 comments:
Estou a gostar de ler o conto «TERRAS DE XISTO» E está a aguçar-me a curiosidade,agora espero com curiosidade a continuação.
Maria Lúisa
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