Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
A dor de cabeça surgiu de repente, do nada.
Ao mesmo tempo um
zumbido intenso que pouco a pouco se foi tornando no murmurar contínuo e surdo
das pessoas em volta de alguma coisa.
Estava na rua, com
a bicicleta pela mão. Por um momento sentiu-se desorientado sem saber como
chegou ali.
Um grande grupo de
transeuntes acotovelava-se em volta de algo no meio da estrada. Um automóvel
parado mesmo ao lado do ajuntamento, com os quatro sinalizadores piscando,
ostentava marcas de um choque recente.
Caminhou, puxando
o velocípede ao lado, até ao grupo de pessoas.
Tentou, sem
sucesso, espreitar o objeto de
tanta curiosidade e escutava uma voz longínqua que gritava: - Deem espaço,
deixem respirar!
Os seus pés
tropeçaram em algo… Uma roda de bicicleta retorcida que os curiosos calcavam,
ignorando-a.
-
Mais um
pobre ciclista atropelado. – Comentou, de si para si, afastando-se.
Os sons de tumulto
soavam longínquos e confusos, as vozes retorcidas e irreais.
Caminhou,
ignorando o acidente e abandonou a estrada entrando na mata que a flanqueava.
Não se recordava daquelas árvores tão perto daquele local.
O ar ruidoso e
carregado de luz foi substituído por uma atmosfera cinzenta e silenciosa.
Uma sensação de
irrealidade impunha-se, oprimindo-o e atordoando-o.
Esparsos raios de
sol rompiam, filtrados pela copa das árvores, acendendo pequenos círculos de
luz a seus pés.
Distraidamente,
encostou a bicicleta ao tronco mais próximo e continuou a vaguear, calcando o
suave tapete de folhas que forrava o chão.
Murmúrios, em tons
de urgência, chegavam até si de muito longe e ele ignorava-os usufruindo
daquela sensação de leveza e liberdade que parecia provir não sabia bem de
onde.
Olhou para o alto,
abriu os braços e começou um lento rodopiar, embriagando-se daquela luz que
provinha dos céus e lhe atingia o rosto como pequenas pedras preciosas,
ofuscando-o e maravilhando-o.
Deixou-se cair de
costas, saboreando a vertigem causada pela rotação e assim ficou, de rosto para
o ar, soltando uma gargalhada de desafio aos céus e ao mundo, sentindo uma
euforia imensa tão inexplicável como irresistível.
Conseguia divisar
as nuvens brancas por entre as árvores. Formavam rostos, uns belos outros não,
uns novos, outros velhos…
-
Cristina!
– Um dos rostos das nuvens foi suficientemente perfeito para que uma sensação
de urgência o fizesse levantar.
Olhou em volta. A
bicicleta não estava à vista.
Não sabia onde
estava. Ao longe um bip bip contínuo fazia-se ouvir, cadenciado, parecendo
transmitir calma, mas ao mesmo tempo preocupação.
Novamente o
murmurar longínquo e quase reconhecível… - Onde estás, Tina? Não te vejo. –
Lamentou-se, como que respondendo a alguém.
Soltou um suspiro,
enquanto uma inexorável onda de resignação o envolvia. Não conseguia
compreender o que se passava consigo,
tal era o afluxo de sensações
descontroladas que sentia, saídas não se sabe de onde.
Decidido,
recomeçou a caminhar em frente, como se tivesse optado finalmente por um
caminho.
Novamente a
lembrança de Cristina lhe afluiu à ideia. Parecia escutar as ondas por entre o
bip bip omnipresente, ao recordar o passeio que fizeram juntos no dia anterior.
O seu longo cabelo
escuro, despenteado pelo vento suave que acariciava as ondas, os pés de ambos
descalços, na areia gelada daquela manhã de fevereiro… Parece que foi há tanto
tempo que ela lhe deu aquela notícia maravilhosa:
-
Pedro, a
partir de agora vais ter de me tratar ainda com mais cuidado do que o costume.
Ele enfrentou-a
com um olhar sério, os seus olhos castanhos nos preciosos verdes dela, enquanto
inquiria:
-
Que se
passa? Estás doente?
-
Não
tolinho! Vais ser pai!
Numa explosão de
alegria pegou-a ao colo e rodopiaram abraçados até caírem na areia, exaustos e
a rirem.
Parece que não foi
apenas ontem, mas há uma eternidade… Terá sido ontem? Terá sido apenas esta
manhã que, como todas as manhãs de domingo, saiu de casa deixando a cama onde
ela dormia ainda quente, e lançou-se nas ruas frias cavalgando a sua bicicleta?
Afinal que é que
isso interessa? Olhou para as mãos com as luvas de competição e sorriu: - Ia
jurar que não as tinha há uns minutos atrás…
Por uns segundos,
os murmúrios tornaram-se na voz suave de Cristina:
-
Volta
para mim, meu amor, não me deixes.
Aquelas sensações
de urgência e dor pareciam voltar… Ela precisava dele, onde estava ela…? …Onde
estava ele?
Parou.
Estava em frente a
um muro enorme, de aspeto antigo e sombrio que se estendia em ambas as direções
a perder de vista.
Todas as
preocupações varreram-se-lhe da memória.
Conseguia escutar
os acordes da sua música preferida, “Sitting” de Cat Stevens. Alguém deveria
ter um rádio… Caminhou numa das direções do muro, cantarolando os versos do
poema:
“Oh I'm on my way I
know I am, somewhere not so far from here
All I know is what I feel right now, I feel the power growing in my
hair
Sitting on my own now by myself, everybody's here with me
I don't need to touch
your face to know, I don't need to use my eyes to see”
Sempre se
identificara imenso com esta música; sempre se sentira caminhando nalgum
sentido, alheio a tudo o que se passava à sua volta.
Nunca sentira a
solidão porque pressentia o mundo à sua volta. No seu egoísmo não tinha nada
para dar ao mundo, mas ele estava ali para si.
O muro estava
abruptamente interrompido por uma enorme arcada sem porta, antes de continuar
novamente a perder de vista.
Para lá da arcada
era um negrume imenso; impossível divisar fosse o que fosse.
Sentou-se no chão,
frente àquela enigmática entrada, como que esperando alguma coisa enquanto a
música continuava a ressoar na sua mente:
“I keep on wondering
if I sleep too long, will I always wake up the same (or so)?
And keep on wondering
if I sleep too much, will I even wake up again or something”
Até agora tudo
isto lhe parecia um sonho no qual ele vagueava, eternamente. E, como na canção,
podia mesmo perguntar se não estaria a dormir de mais, e se acordasse, ainda
seria a mesma pessoa.
No gigantesco
umbral pareceu materializar-se uma pessoa; uma jovem morena, pequena e de
cabelo curto que o olhou com ar de quem já sabia que ele se encontrava ali.
Sem saber como,
percebeu que a sua espera terminara e ergueu-se enquanto ela se aproximava em
passos pequenos e suaves.
-
Está na
hora. – A sua voz soou, como uma doce melodia, acompanhada de um sorriso
compreensivo para o seu ar de confusão. – Segue-me, podes deixar aí a bicicleta. - Voltou-lhe as
costas e começou a caminhar na direção do portal.
Ele olhou para o
chão, a seu lado, onde jazia a sua bicicleta retorcida e sem a roda da frente.
Largou o capacete
quebrado, que não sabia como tinha ido parar às suas mãos e só então foi
atingido por uma onda de compreensão.
Avançou atrás da
jovem e penetrando na fria escuridão. Antes, porém, deitou um último olhar para
as nuvens, onde o rosto entristecido de Cristina ainda se divisava, e murmurou:
- Adeus, meu amor…
Ao longe, o bip
bip transformou-se num silvo contínuo durante alguns segundos substituído
depois por um bem-vindo silêncio.
Como se
mergulhasse nas águas escuras do oceano, a confusão de escuridão e luz que se
seguiu apagou todos os restos de medos, dores, solidão…
…
Cristina ficou
ainda mais uns minutos sentada ao lado da cama onde jazia o seu marido. Perdera
a noção do tempo.
O pequeno ipod,
com os auriculares direcionados para o ouvido de cada um, continuava a tocar
Cat Stevens que ele tanto gostava. Esperava que, por milagre, as músicas o
trouxessem de volta para algo que ele gostava... Que o trouxessem de volta para
ela.
Depois de tanto
tempo embalada pelo hipnótico bip bip, ficara em choque quando ele, após várias
horas em coma, lhe sussurrou um “Adeus, meu amor”.
Continuava apática quando a pequena enfermeira, morena de olhar triste,
desligou o equipamento, cujo apito contínuo anunciava o fim de mais uma vida.
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