quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Sexta parte - O Perigo por Perto

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Samael e Armaros estavam preocupados com a presença de Jahi. Faltava ter a certeza se ela tentava aliciar Lilian por sua própria iniciativa, ou se cumpria ordens de Belial… que por sua vez as cumpriria do próprio Lúcifer. Estaria ali um plano para descobrir a localização do Jardim do Éden e do projeto do Criador?

Por várias ações, que acabaram por culminar na primeira guerra do Céu, Lúcifer já provara não ser um anjo como os outros e por isso tentou sobrepor-se ao próprio Criador. Só pela força física acabou sendo subjugado. Se ele estivesse envolvido nesta tentativa de levar Lilian para o seu lado, todos corriam perigo; Lúcifer só reconhecia duas posições; ou a favor, ou contra ele.

Os planos de Armaros, Samyaza e dos restantes vigilantes iam apenas no sentido de interromper o projeto do Criador, embora a eventual morte das criaturas humanas chegasse a estar prevista. Não queriam, porém, a destruição do jardim e isso era o que aconteceria se envolvessem Lúcifer e o seu bando de anjos demoníacos; toda a área ficaria transformada num deserto, à semelhança de outras intervencionadas por eles.

Os anjos que continuavam nos céus, apesar de se saberem superiores aos humanos, amavam-nos como à restante Criação, não podiam era aceitar a humilhação de serem-lhes subservientes. A ideia do assassinato como necessidade foi posta de parte, ainda mais porque achavam que o projeto do Criador incluiria um número elevado de humanos e não apenas um casal.

Samael, já reunido com Samyaza e Armaros, pediu-lhes que não perguntassem a localização, pois não conseguiria mentir, mas garantiu que, em conjunto com Lilian, faria abortar o projeto; Adam e Rrava abandonariam o jardim e viveriam como os restantes humanos.

— E se o Senhor descobrir o que estamos a fazer? — Samyaza perguntou com os olhos fixos no chão.

— Vai ficar furioso, claro! — Afirmou Armaros. — Seremos castigados de alguma maneira. Espero que não nos faça como a Lúcifer e aos outros.

— O que eles fizeram foi muito mais grave! — Samael afirmou, hesitante. — Não foi?

— É inútil estar a tentar prever o futuro e saber como o Senhor encarará mais esta traição. — Samyaza encerrou a discussão. — Irmão: Se estás determinado a atingir os nossos objetivos com a ajuda de Lilian, fá-lo quanto antes. De outra forma, diz-nos onde fica e nós o faremos, Azazel e Baraqiel[1] há muito que querem que reveles o segredo… se calhar já estaria tudo resolvido.

— Não o conseguiríamos fazer pela força, irmãos. — Samael deixou cair os braços com desânimo. — Um grupo agressivo provocaria outra guerra; o Senhor invocaria Miguel e os seus guerreiros. Deixem-nos fazer isto de forma mais subtil, deverá ser o próprio Criador a terminar o projeto, para isso teremos de convencer Adam e Rrava a fazer o contrário do que o Criador pretende.

Os dois Vigilantes abraçaram o irmão, encorajando-o. Lilian, que se mantivera em silêncio, a brincar com o filho, olhou conspicuamente para o seu protetor.

O anjo devolveu-lhe o olhar pensativamente antes de concluir: — Temos de começar a trabalhar.

Nos dias que se seguiram, Armaros dedicou-se a tentar ensinar Lilian a controlar a faculdade do teletransporte. As palavras que a deveriam projetar funcionavam sempre de forma caótica e atiravam-na para os locais mais inesperados. O que para os anjos ocorria com natural suavidade, para ela era como uma explosão. Temiam que, o libertar desenfreado de tanta energia angelical no jardim, alertasse os querubins guardiões, ou mesmo o próprio Criador, que devia estar mais vigilante.

Fora assim, de resto, que ela caíra na terra de Nod, quando fugira do jardim, sem que Samael soubesse para onde havia ido. O pobre sistema vocal dos humanos não conseguia reproduzir algumas subtilezas do idioma divino. As palavras, que soavam como música quando proferidas por um anjo, saíam-lhe pouco melodiosas e grosseiras, trazendo resultados diferentes do que se esperava.

Asmodai ria divertido com o desespero dos anjos e batia as palmas quando eles regressavam trazendo a sua mãe de mais um “jogo de escondidas”.

Cansados de “perseguir” a jovem pelos mais diversos locais para onde ela se projetava, optaram por tentar a invisibilidade, o que se revelou uma completa impossibilidade. A mulher não conseguiu de forma nenhuma articular o feitiço e nada acontecia, aquelas palavras estavam vedadas aos humanos.

A solução teria de estar na metamorfose; se ela se transformasse num qualquer animal, passaria facilmente desapercebida e conseguiria entrar no jardim.

Foram vários os animais que tentaram, mas também aqui os resultados não eram nada animadores; uns incompletos e outros nem por isso. Uma vez mais, a incapacidade linguística era determinante nos péssimos resultados que obtinham.

Também aqui a criança se divertia, assustando-se poucas vezes, por mais espantoso dragão com cabeça humana ou terrível tigre com pernas humanas que se formasse ante os seus olhos.

Foi com a serpente que conseguiram o resultado melhor. Lilian transmutou-se numa enorme serpente castanho-dourada, decorada com manchas vermelhas, onde sobressaíam os seus olhos verdes. Não fossem as inesperadas barbatanas laterais em forma de mãos, poderia enganar qualquer um. Ocasionalmente a transformação tremeluzia, como se fosse regredir a qualquer momento, mas teriam de arriscar, não podiam perder mais tempo, urgia partir para a ação.



[1] Mais dois anjos que faziam parte do grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes” (Grigori em grego)

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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quinta parte - Na Terra de Nod

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Devastada com a eventualidade de perder o seu filho, Lilian acarinhava-o e abraçava-o com força, como se temesse que este se escapulisse entre os seus braços.

Samael estava quase em permanência com ela, preocupado, sem saber o que fazer, que não fosse um desafio direto à autoridade do Criador. Também os seus dois companheiros, Samyaza e Armaros[1] visitavam-nos frequentemente, o primeiro era experiente no seu envolvimento com humanas, mas nunca se preocupara em saber que fora feito delas, o segundo, por seu turno, era hábil nas palavras mágicas e nas defesas contra os feitiços. Os três teceram uma proteção mágica sobre a mulher e a criança e, para que melhor se defendessem, Samyaza imbuiu-os de alguma da sua essência angelical tornando-os algo mais que humanos.

Aquela era a altura, segundo eles, para dar o nome à criança. Quando Samael se preparava para ditar a palavra com que selaria o filho até ao fim dos seus dias, Lilian sussurrou “Asmodai”. Os três anjos olharam-na com espanto.

A mulher, com o seu olhar ausente, repetiu, agora com voz mais decidida; — Asmodai[2], que quer dizer Espírito da Fúria, pois esta criança, filha do amor, será sempre revoltada e furiosa contra Aquele que a amaldiçoou.

— Pois que seja Asmodai. — Sentenciou Armaros, erguendo a mão direita num gesto de abençoar e crescendo enormemente para assumir a sua forma de anjo. Converteu-se numa criatura de mais de três metros de altura, a pele reluzente como ouro e com enormes asas da mesma cor. — Feitiços e dentes de bruxa não fenderão a carapaça que aqui te ponho, veneno de cobra não vingará no teu sangue, nem peçonha na tua pele, a pedra resvalará, a espada não penetrará e o pau partir-se-á.

— Serás grande entre os Homens. — Samyaza seguiu os passos do companheiro e tornou-se num gigantesco fenómeno de pele como cobre em brasa e os seus olhos soltavam chispas. — Eles seguir-te-ão até à morte e as tuas palavras serão para eles como a água no deserto.

Não ficando atrás dos seus amigos, Samael tornou-se num gigante, cor de prata, emitindo uma luz resplandecente que iluminou toda a gruta, encandeando-os a todos: — Asmodai, comandarás os Homens em batalha e vencerás mil guerras, serás chefe de milhares e não conhecerás a derrota.

Agradecida e atemorizada pelo impressionante aspeto dos seus protetores, Lilian ajoelhou frente a eles, sem largar a criança que chorava e esperneava.

— Tu, Lilian, — Armaros estendeu a descomunal mão sobre a mulher. — Enganarás a morte muitas vezes e os teus dias não terão fim, serás amada por milhares e odiada na Terra por outros tantos. O encanto que o Criador te deu, eu dobro e ponho mais, nenhum homem te conseguirá resistir. Mesmo nunca sendo rainha, os reis ajoelharão a teus pés e farão o que mandares.

— Assim seja, ámen! — Trovejaram os três poderosos seres.

Depois dos últimos ecos do encantamento retumbarem na gruta, fez-se um silêncio pesado enquanto as paredes pareciam reluzir, recobertas de palavras escritas na língua que apenas os seres divinos conhecem.

A gargalhada cristalina de uma criança quebrou o silêncio que se impunha, como se de um espelho se tratasse. O som foi contagiante e todos sorriram felizes para o bebé Asmodai que agitava as mãos e os pés com satisfação.

Para Lilian, aquela era uma criança que nascera de uma gravidez normal, mas ela não tinha experiência suficiente. Se a tivesse, saberia que as crianças humanas levavam nove e não quatro meses a formar-se no ventre da mãe… e que o seu bebé de doze semanas apresentava já o desenvolvimento de doze meses.

Nos tempos que Lilian ficava sozinha, alargava os seus horizontes, afastando-se cada vez mais da gruta que habitava. Eventualmente acabou por travar conhecimento com as pessoas da aldeia próxima, que se mostravam amigáveis, embora curiosos com as suas origens, que preferia não revelar. Asmodai crescia e aparentava já dois anos.

Jahi, uma das mulheres da aldeia, perdera um filho recentemente e visitava-os com frequência para estar próxima da criança. Era uma bela jovem, magra, de longos cabelos e olhos negros sobre um rosto oval de lábios carnudos. Apesar de se afirmar uma pobre aldeã, as suas mãos denunciavam a ausência de trabalhos duros.

As duas mulheres passavam longos períodos a conversar sobre os males que afligiam a população; como a longa seca prejudicara as colheitas e como os deuses não haviam abençoado os rebanhos, onde nasceram menos crias que nos anos anteriores. Por vezes, a aldeã tentava abordar o tema de onde vieram e como se mantinham isolados na gruta, onde não parecia faltar nada, mas Lilian sempre desviava a conversa.

Um dia, ela sentiu-se particularmente desconfortável quando Jahi lhe falou de Belial. Era o poderoso deus protetor da aldeia; fazia com que as colheitas fossem abundantes, os rebanhos férteis e os rios generosos. Graças ao deus, antigamente havia peixe, carne e cereais, agora, porém, parecia ter-se esquecido do seu povo e as pessoas passavam fome. Os crentes já haviam sacrificado vários animais e até crianças, aqui Lilian deitou-lhe um olhar desconfiado, mas nada resultara e agora procuravam uma razão para a ira do deus. Jahi mostrou-se um pouco nervosa quando confessou que havia quem dissesse que a recém-chegada, com a criança, eram os culpados. “Claro que eu não penso nada disso” desculpou-se “e sempre vos defendi…”

Num rasgo de oportunidade, Samael entrou na gruta. Apresentava-se, como sempre, como um humano comum, mas o seu rosto ficou sombrio ao deparar com Jahi. Também esta se mostrou perturbada e agitada com o recém-chegado, ficando aparentemente sem saber o que fazer. Embora não soubesse de quem se tratava, sentiu emanar dele um poder e uma autoridade que pareciam esmagá-la, pelo que se ajoelhou humildemente gemendo: — Sejas bem-vindo, meu senhor, perdoa a minha intromissão.

O anjo olhou interrogativamente para Lilian antes de tornar, preocupado, para a estranha mulher. — Que fazes aqui, criatura? — Trovejou com autoridade. — Quem és tu?

— Meu senhor, — ela continuou sem se atrever a levantar os olhos —, apenas mato algum tempo com a minha amiga, desculpai-me o atrevimento. Sou apenas uma pobre camponesa, viúva que perdeu o único filho.

— Não és tal! — Acusou Samael parecendo crescer. — Que queres daqui? Vejo o negrume que te guia e que se alarga para envolver tudo e todos. — Em seguida olhou para o teto da gruta e abriu os braços. Numa voz gutural, invocou algumas palavras incompreensíveis da qual apenas se distinguiu o nome Armaros.

Quase no mesmo instante o outro anjo materializou-se a seu lado. Também ele fixou imediatamente os olhos em Jahi: — Criatura! — A poderosa voz angelical fez tremer o chão e as paredes. — Que fazes aqui? És um esbirro de Belial[3], não és? Que te manda o teu negro senhor fazer?

— Mil perdões, perdoai esta pobre mortal! — Ela estava visivelmente aflita e chorava apavorada. — Não sabia estarem sob a vossa proteção, poderosos senhores. Apenas tentava arranjar mais um sacrifício para o meu amo!

— Se tornas a aproximar-te deles, far-te-ei em pedaços, antes de te atirar para os fogos eternos! — Avisou Samael.

— Volta para a escuridão onde pertences, demónio[4]! — Exorcizou Armaros.

— Piedade, nobres senhores, misericordiosos senhores… — a mulher, quase rastejando, aproximava-se gradualmente da saída, sempre com a cabeça baixa temendo ser fulminada se enfrentasse o olhar dos formidáveis seres. Assim que viu o caminho desimpedido, lançou-se numa corrida pela própria vida.



[1] Estes dois anjos faziam parte de um grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes”(Grigori em Grego)

[2] Asmodai ou Asmodeus tem origem no persa antigo e significa algo como demônio da ira ou espírito da fúria, derivado da figura zoroastriana de Aeshma.

[3] Um dos anjos expulsos do Céu após a revolta de Lúcífer, acontecida durante a criação da vida na Terra.

[4] Jahi é o nome na língua avéstica da demônia da "lascívia" do Zoroastrismo. Como uma entidade hipostática, Jahi é interpretada de várias maneiras como "vadia", " libertina ", "cortesã" e "aquela que leva uma vida licenciosa". Seu epíteto padrão é "a prostituta". In Wikipedia

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sábado, 12 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quarta parte - O Plano B

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;

E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.

E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada.

 

Versículos 21, 22 e 23 do livro do Génesis

 

O fracasso dos três emissários em fazer regressar Lilian era embaraçador e só deixara o Criador ainda mais frustrado: não era possível que aquela mortal tivesse a audácia de desobedecer. O facto de a terem amaldiçoado, em nada contribuía para o Seu objetivo e era apenas uma vingança mesquinha, por despeito.

O livre arbítrio era uma coisa complicada, nem os anjos tinham tanta liberdade; podiam tomar decisões independentes e enveredar por este ou aquele caminho, mas apenas na ausência de uma ordem direta. Como poderia lidar com uma criatura que mentia e omitia sem qualquer pejo e recusava-se a cumprir o que lhe ordenavam?

Chegava à conclusão que fora um erro ter criado Adam e Lilian da mesma forma. Inexplicavelmente, embora partilhassem ambos dos mesmos elementos, da mesma inteligência, curiosidade e vontade de aprender, o homem mostrou-se mais submisso e obediente do que a mulher. É verdade que ele tentou sobrepor-se a ela desde o primeiro dia e desde essa altura ela mostrou-se insubmissa exigindo igualdade ao companheiro.

Estava decidido. Teria de arranjar nova mulher para Adam, uma mais ligada a ele, dependente e que não o desafiasse.

Quando o homem dormia, o Criador extraiu uma das suas costelas que misturou no caldo de terra, fogo, ar e água com que formou a nova mulher. Uma vez mais era uma criatura belíssima, mas desta feita com cabelo escuro e olhos castanhos. Segredou ao ouvido da concha vazia as palavras que lhe davam a vida e ela estremeceu, animou-se e sorriu ao Pai.

Chamou-lhe Rrava[1], que quer dizer vida, seria aquela que daria a vida à humanidade, a partir de Adam, que quer dizer terra[2]. Era aquela a segunda mulher do paraíso e desejou que o seu nome fosse menos enganador ou suscetível a deceções como sucedera com Lilian, que significa pura, inocente[3]. Agora queria esquecê-la e começar de novo.

Na mente do Criador, digladiavam-se agora várias fugas no segredo da existência do seu projeto; o escândalo à volta da fuga de Lilian, o facto de ela poder revelar coisas como a localização, o desconhecimento de quem fora o insidioso velhaco causador da sua fuga. Precisava de mais segurança e isso implicava envolver mais elementos; dois querubins, empunhando as suas espadas flamejantes, foram invocados para a segurança do jardim.

A paz voltou então ao paraíso. Rrava, que proveio de Adam, partilhava da sua simplicidade, sendo a sua curiosidade mais pura e menos insaciável. Ambos se quedavam fascinados a escutar o canto cristalino do rio nas pedras, o sussurrar do vento nos ramos das árvores, ou mesmo a conversar com os outros animais, que Lilian achava tão limitados.

O Criador voltara aos Seus ensinamentos, falando-lhes da Sua Criação, de como tudo se interligava, preparando-os para o dia os tiraria da segurança do jardim e esvaziaria a Terra de todas as aberrações que a conspurcavam.

Ele não interferia, mas olhava com preocupação para o que acontecia para lá dos muros invisíveis do Jardim do Éden. Os humanos selvagens, para além das suas limitações em termos de força e tamanho, conseguiam sobrepor-se a outros seres mais possantes. Derrotavam centauros, gigantes e ogres, ainda que com grandes perdas. Os outros deuses pareciam desinteressados em proteger as suas criações, ou haviam resolvido deixar os selvagens à sua vontade, na luta pela sobrevivência. A sua tenacidade e inteligência acabavam por compensar a falta de força da espécie humana. Alguns pequenos agrupamentos de casas de adobe tonavam-se aldeias à medida que mais casas iam sendo construídas para albergar a população que crescia.

Nunca fora intenção do Criador que os humanos dominassem o fogo, ou utilizassem os ossos dos animais que matavam para fazerem armas e as suas peles para vestuário, mas reconhecia que, se assim não fosse, não teriam nenhuma hipótese contra as outras espécies criadas para os exterminar. O equilíbrio natural era quase perfeito e, nesse aspeto concordava com as vozes contra a criação dos humanos, eles eram uma rotura nesse equilíbrio. O animal-inteligente, ao contrário do animal-força-bruta,, estaria predestinado ao sucesso. Nada de répteis gigantescos, desajeitados e brutos como aqueles que povoavam a Terra na primeira fase… ainda bem que acabara com praticamente todos, ou quase, os que restaram desapareceriam com o tempo. Chegara à conclusão que detestava cobras e lagartos.

O ser humano era o mais próximo que podia existir da face mais frágil dos anjos, que Ele amava profundamente. Como estes últimos eram imortais e tinham em si um demónio furioso, removeu na sua criação a capacidade de se transformar, ficar invisível ou incorpóreo, deu-lhes, contudo, a capacidade de questionar e tomar decisões de moto próprio. O ser humano não se sentiria compelido a seguir as ordens do Criador, se tal não pretendesse, mas também o seu tempo de vida seria finito, se algum deles Lhe desagradasse, bastaria ignorá-lo até que chegasse ao fim dos seus dias… embora por vezes a Sua Infinita Paciência se esgotasse e mandasse Samael acabar com ele, ou eles. Sabia que o arcanjo nem sempre cumpria a totalidade das missões e a sua compaixão acabava por deixar vivos alguns elementos dispersos das tribos que fora incumbido de eliminar até à última alma, mas não se importava, também Ele sofria por mandar castigar os Seus filhos.

Lilian estava agora também a testar a Divina Paciência e a desafiar as Suas ordens. Ignorá-la, seria fácil e apenas teria de esperar algumas centenas de anos até que ela envelhecesse e morresse, para Ele seria o mesmo que uns minutos na escala temporal divina. A simples existência dela, porém, incomodava-o e prejudicava a sua atenção ao projeto. Quem sabe se não mandaria Samael visitá-la para eliminar o problema.

Também não pretendia, assim que os dois humanos do Seu jardim estivessem prontos, deixar vivos os outros, cheios de vícios e maldade no coração cultivados nas constantes lutas pela sobrevivência. O Seu jardim produziria aqueles que iriam povoar o mundo; humanos e outros animais a coexistirem livremente. A Terra teria de ser um lugar de paz e concórdia, para isso, sofreria uma purga quase total. O próximo evento de extermínio seria para apagar da face do planeta todos os seres com algum nível de inteligência, que não estivessem sob o seu controlo e não fossem da Sua Própria Criação.



[1] Eva em hebraico é Chava, que deriva da palavra "vida". CH em hebraico tem o som de RR, logo Chava = Rrava.

[2] Adão em hebraico é adam. Assim ele se chama, pois a Torá nos conta que Deus tirou-o da terra, que significa adamá em hebraico. Com esse mesmo radical temos a cor vermelha, adom que pressupõe que a terra era vermelha como o barro. Todos somos descendentes de Adão, por isso ser humano é ben adam, que literalmente significa filho de Adão.

https://www.hebraicosimples.com/post/nomes-b%C3%ADblicos-significado-em-hebraico

[3] Como este texto trata-se de uma adaptação livre do Génesis, assumi que Lilith, a existir, não se chamaria assim, terá tido um nome hebraico, daí ter escolhido Lilian (porque não?). Só terá começado a ser chamada de Lilith mais tarde, associando-a ao demónio feminino Liliu da Mesopotâmia.

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domingo, 29 de setembro de 2024

Apresentação do livro "Almas Rebeldes" de Suzete Fraga

 



Boa tarde a todos,

 

Obrigado pela paciência que demonstram ao dispensar uns minutos, para escutar um maçador como eu, em vez de estarem a ler as “Almas Rebeldes” da Suzete Fraga.

Sabem como é costume dizer; “Não se deve julgar um livro pela capa?” Bem, no caso do livro da Suzete, é difícil não ser atraído pela bela e ilustrativa pintura da minha grande amiga Lucinda Maria, mas as páginas que ele contém são ainda mais encantadoras!

 É por isso com enorme prazer que estou aqui hoje, quase oito anos depois da apresentação de “Almas Feridas”, neste mesmo local, para falar sobre a Suzete Fraga e a sua mais recente obra, “Almas Rebeldes”. Todos nós que escrevemos e temos o privilégio de poder apresentar a nossa obra ao público, sabemos como é especial este dia para ela e para todos os que a conhecem e apreciam o seu talento.

 A escrita da Suzete é sempre cativante. Consegue descrever acontecimentos comuns do nosso quotidiano sob um ponto de vista que nos escapa, ou desprezamos, na maior parte das vezes. As emoções subjacentes nas palavras empregues e as imagens vívidas em cada frase, emocionam e desafiam, enquanto divertem com o humor que a caracteriza.

Quem é que consegue não se identificar com o personagem de “Iogurte com Açúcar”, que desliga o despertador pela manhã em vez de carregar no botão para pausar dez minutos e acontece o impensável:

“Confiante nos tais dez minutos, apressas-te a dormir num instante.

Executas tão bem a ideia, que adormeces a valer e até sonhas que estás a caminho do trabalho. Já estás no trabalho, mas o teu cérebro ainda está a tentar lembrar-se das tarefas do dia anterior e que tinham de ter seguimento agora. Tragédia das tragédias, sem café a máquina não funciona.

Nesse apelo à sobrevivência, sentes a baba a escorrer e ouves-te roncar com um entusiasmo estranhíssimo. Porque tu não roncas, os outros é que roncam forte e feio, parecem motas velhas a trabalhar no ralenti. O coração dispara na garganta, acelerado e, ao contrário do que é costume, avisa-te que o cérebro está errado. Há uma hora que te está a enganar, pois claro.”

 

Ou como não sentir pena em “A Impressora” da forma, ainda que levemente humorística, é apresentado o Natal de um solitário:

 “… talvez acabasse a tempo de passar pelo Mercado de Natal, deliciar-se com um churro de chocolate acabadinho de sair e regressar a casa para a massagem habitual ao comando da televisão. Pode parecer que não, mas estava em pulgas para ver pela milésima vez o “Sozinho em casa”. Iria comer camarão como se fosse dono da lota e misturar uma série de bebidas até perder a consciência. Quando acordasse, o Natal já teria terminado, já não haveria mais mensagens da treta para responder, o coma alcoólico seria geral e o sossego reinaria em todo o prédio.”

O livro “Almas Rebeldes” não é apenas mais um na carreira da Suzete Fraga, mas um degrau ascendente como escritora. Nele, encontramos personagens verdadeiros, ou no mínimo verosímeis, tramas envolventes e temas que ressoam profundamente com os dilemas da vida de gente comum, como nós.

A Suzete tece as suas histórias, com uma delicadeza única, mas, ao mesmo tempo, com uma força capaz de nos transformar, transporta-nos para outras realidades e faz-nos ver o mundo de diferentes ângulos. Mas, acima de tudo, faz-nos sentir o que é ser humano, com todas as suas complexidades, alegrias e dores.

 A sinopse desta obra, na contracapa do livro, é bem expressiva do que nos espera:

Quem nunca levou um tabefe e ousou dizer que não doeu, não sabe o que é correr pela vida, nem o gozo que daí advinha. No entanto, a vida é isto mesmo: dançar no fio da navalha e, mesmo desfeito, troçar das pancadas e ganhar asas nos pés.

Não podemos evitar as vicissitudes da vida, mas podemos encará-las com rebeldia e humor. É esse o segredo para equilibrar a balança que, por vezes, pende teimosamente para o lado cinzento. Cabe a cada um de nós contrariar o peso, rindo até da nossa pouca sorte, se for o caso. Quando se procura a conjuntura perfeita para sorrir, corre-se o risco de morrer sem estrear o sorriso. E essa seria a maior das derrotas.”

Parabéns, Suzete, que com muito orgulho chamo “irmã das letras”, pelo belo trabalho que aqui apresentas. O teu talento, aliado à sensibilidade e capacidade de observação e descrição continua a iluminar aqueles que gostam de ler, e estamos todos muito ansiosos pelo que ainda está por vir.

E para finalizar, se “Almas Rebeldes” tivesse apenas um defeito, seria o facto de acabar. Porque, honestamente, eu poderia ler as histórias da Suzete Fraga para sempre.





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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A Maldição de Calígula

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.



Caio Júlio César Augusto Germânico, ou Caio César, ficaria conhecido na história como Calígula, que significa "botinhas", como lhe chamavam os legionários comandados por seu pai, quando criança e usava as cáligas (sandálias militares) nos pés.

Estava-se em 32 D.C. e Calígula, ou Caio César, como era chamado, encontrava-se com o seu tio-avô, o imperador Tibério, voluntariamente exilado na ilha de Capri.

Nos últimos anos, após a morte do filho, Druso, O Jovem, Tibério mudara-se para a ilha de Capri e desinteressara-se completamente da política, entregando-se a atos de sadomasoquismo, pedofilia e outras perversões sexuais. A governação do império ficou praticamente entregue a Lúcio Élio Sejano, que governou aumentando o seu pecúlio e o dos seus próximos, enquanto foi fazendo desaparecer a maioria dos opositores.

Apesar de ser o herdeiro de Tibério, Calígula sabia estar completamente dependente dos caprichos do soberano; como a sua mãe e os seus irmãos, a qualquer momento poderia sofrer um trágico acidente que lhe tirasse a vida.

Foi neste ambiente que ele foi abordado por uma bela e escultural mulher, a rondar os trinta anos, de longos cabelos vermelhos e olhos verdes, que disse chamar-se Dinah e ser da Judeia. Ele reconheceu-a como uma das muitas meretrizes que frequentavam as orgias de Tibério.

Ela mostrou-lhe uma caixa de madeira trabalhada, aparentando ser muito antiga. Dentro, residiam duas soberbas estatuetas em madeira, esculpidas na perfeição; representavam um demónio masculino e outro feminino. Explicou-lhe que aquele objeto tem passado pelas mãos dos homens mais importantes de Roma e o seu poder pode fazer dele o próximo imperador.

Calígula, suspeitando que estava perante uma armadilha de Tibério, ou de alguém para o fazer cair em desgraça perante ele, disse-lhe que se fosse embora, ou mandaria chicoteá-la. A mulher respondeu-lhe que não temia as ameaças dele, pois o poder das divindades que adorava, era muito superior ao dele ou do governante mais poderoso dos Homens.

Ela explicou-lhe que pertencia a uma irmandade que fizera aquela caixa há muitas gerações, para adorar a Primeira Mulher, Lilith, ali representada com o seu filho e amante Asmodeus. As preces feitas às duas divindades são ouvidas e cumprem-se na maioria das vezes.

Como nunca ouvira falar daqueles deuses, tentou despedi-la novamente, mas a mulher insistiu; “Júlio Cesar recebeu-a e desprezou-a; foi assassinado pouco depois. O grande Augusto herdou-a e utilizou-a para se livrar de Brutus e de Marco António e Cleópatra.”




O futuro imperador olhou-a de alto a baixo e Dinah, percebendo que conseguira a sua atenção, continuou: “Até Tibério a utilizou para afastar os outros herdeiros de Augusto…, mas quer destruí-la e isso irá levá-lo à ruína. A minha missão é arranjar um novo dono, para que isso não aconteça.”

O silêncio de Calígula encorajou-a a prosseguir e ela explicou que aquele objeto era um Altar de Orações e podia pedir-se-lhe o que quiséssemos para vingar os agravos que nos houvessem feito. Para isso bastava escrever num papiro o nome de quem queremos atingir e guardá-lo na caixa. Em pouco tempo, a vida dessa pessoa começará a sofrer os efeitos.

 — Se era Tibério que estava de posse disto, por que está contigo agora? — Interrogou ele, com um olhar conhecedor.

— Fui eu quem lha entregou há alguns anos para o ajudar a tornar-se César. — Ela baixou os olhos. — Ele obteve o que queria, mas não cumpriu a sua promessa. Por fim, sabe que está a ser castigado e quer destruir o altar. Eu sabia onde estava. Fui buscá-lo. Serás o novo dono e o novo César.

— Que tenho de fazer? — Perguntou Calígula ao fim de alguma hesitação.

— Para já, aceitar o altar nas tuas mãos — Dinah pousou o objeto nas dele — e prometer que, uma vez César, tudo farás para aumentar o número dos fiéis do culto a Lilith. Darás privilégios e erguerás um santuário a ela. Se o não fizeres, o teu fim estará próximo.

— Aceito. — Confirmou ele gravemente.

— Agora, escreves num pergaminho o nome da pessoa que queres atingir e o que queres que aconteça. — Enquanto falava, ela retomou o altar e abriu-o sobre uma pequena mesa de apoio aos escribas, expondo as duas imagens. — Depois colocas dentro da caixa e fechas novamente, enquanto recitas: “Lilith, mãe de todos os homens, Primeira Mulher, que caminhas pelos caminhos da noite e pelos abismos desconhecidos desde os primeiros dias do mundo. Ofereço a minha vontade, em troca da tua força. Concede-me o que desejo, e serei teu servo fiel, até o último suspiro. Que a tua sabedoria escura ilumine o meu caminho e que a tua sombra envolva os meus inimigos. Pelo pacto que selamos, eu entrego o meu destino a ti. Que assim seja, nas profundezas e além.

O futuro imperador de Roma ajoelhou ao lado da mesa enquanto repetia a oração que Dinah ensinava. Assim que terminou, pegou num dos rolos de pergaminho que se encontravam na mesa e começou a escrever a maldição pretendida que atingisse o seu tio-avô. Escreveu o nome de Tibério em letras maiúsculas, de forma bem clara e terminou expondo a sua pretensão de ser imperador.

— Eu sou Dinah Lua de Prata, sacerdotisa da Estrela da Manhã e sou tua testemunha. — A mulher ergueu as mãos aos céus. — Escuta-me Lilith, mãe das bruxas, esposa de Samael, mãe e amante de Asmodeus, recebe este teu filho e faz aliança com ele. Amen!

Calígula ergueu-se e pegou cuidadosamente no altar com uma mão, mantendo a carta na outra: — Eu guardarei isto da minha mão. Apenas eu saberei onde se encontra.

— A forma como usares, ou tratares este altar, — avisou a sacerdotisa —, ditará o sucesso ou desastre dos teus planos… ou da tua vida.

Ele suspirou e deitou um último olhar à carta que ditaria o seu destino e o do carrasco da sua família, que ficaria encerrada naquela caixa, à vontade das forças do mal. Fechou as tampas decididamente, com o som do martelo do juiz após proferir a sentença.

O futuro imperador Calígula não sabia, mas, cometera um erro mortal. Assinara o seu nome no texto da maldição que seria executada por um demónio.



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sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Sabotagem no Paraíso - Terceira parte - A Investigação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 



 

O Criador ficou profundamente magoado com o que aconteceu. Perguntou a Adam se ele sabia com quem Lilian se encontrara e com quem criara aquela insatisfação e descontentamento. O inocente homem desconhecia completamente as respostas àquelas perguntas, ficando inclusivamente surpreendido com a constatação que havia mais gente além do casal primevo e do Pai.

O projeto do Criador estava comprometido, sem a presença da mulher…. Ela era parte essencial na Sua recomendação “Crescei e multiplicai-vos.” Retirou-se deixando o homem/criança entregue a si próprio, sozinho no paraíso.

Como Criador e Omnipotente, não podia deixar as coisas como estavam; invocou três anjos para procurar a fugitiva e a trouxessem a todo o custo. Se ela não obedecesse, estaria sujeita a ser morta ou a uma maldição eterna, assumindo que uma criatura ignorante do mundo e praticamente acabada de nascer, saberia o significado disso.

Durante meses, os emissários percorreram as aldeias miseráveis e as grutas do deserto em busca de Lilian ou de informações do seu paradeiro.

No Céu, Rafael moveu uma subtil investigação para saber quem estaria por trás de um ato tão sedicioso. A comunidade angelical estava dividida; ninguém estava ao corrente do que se passava, mas mesmo assim, muitos respondiam às perguntas com evasivas para confundir o investigador.

Miguel foi pessoalmente à presença de Lúcifer para o questionar em Nome do Criador. O rei dos deuses e demónios da Terra respondeu ao vago interrogatório escarnecendo da autoridade e poder do Criador. Mostrou-se interessado e questionou o mensageiro sobre o projeto sigiloso, sem, no entanto, obter nada de compreensível sobre o que era e o que acontecera. Quando foi confrontado com uma pergunta direta, não podia mentir, pois continuava uma entidade angelical, apesar do seu estatuto de demónio; respondeu que, fosse lá o que tivesse acontecido, se fosse obra dele, não haveria nenhuma dúvida. Não era seu costume esconder a mão após atirar uma pedra.

O projeto conseguira manter-se em segredo durante tanto tempo, principalmente porque poucos sabiam que existia, embora alguns desconfiassem. A partir daquela altura, a dúvida estava dissipada; havia mesmo um novo projeto entre as Mãos do Criador! Interesses punham-se em movimento, uns a favor e outros contra.

Sanvi, Sansavi e Samangelaf, assim se chamavam os perseguidores de Lilian, localizaram-na finalmente numa gruta da remota Terra de Nod, longe de tudo. Os três apresentaram-se na sua forma humana, envergando simples túnicas e sandálias: o objetivo não era assustá-la, mas convencê-la a voltar.

Ela recebeu-os com frieza e desinteresse, sentada numa pedra e amamentando um menino com poucos dias. Não mostrou medo nem respeito pelos emissários, senão quando um deles perguntou quem era o pai da criança.

A mulher recusou-se a responder a todas as perguntas, embora os interrogadores e o próprio Criador não tivessem dúvidas de que um, ou mais anjos, estavam por trás da conspiração que redundara na fuga dela.

Os anjos ficaram nervosos com a determinação da criatura e a capacidade de recusar a responder, mesmo às perguntas diretas, ao contrário das entidades angelicais. Aqueles seres eram realmente muito mais independentes do que eles e, portanto, mais perigosos.

Era hora de passar a uma atitude mais determinada e os três anjos, falando em uníssono, para se tornarem ainda mais solenes e ameaçadores, ordenaram à criatura fugitiva que regressasse ao Seio do Pai. Seria perdoada e tudo voltaria a ser como dantes, teria apenas de revelar quem eram os conspiradores, ou, pelo menos, quem era o pai da criança.

Ela baixou a cabeça e acenou negativamente, abraçando o seu filho.

Um dos anjos insistiu, que, pelo menos tornasse ao Jardim e implorasse o perdão do Pai, tinham ordens para não regressarem sem ela. Estavam autorizados até a tirar-lhe a vida ali mesmo e levar o corpo.

Lilian mostrou-se irredutível e, no momento seguinte, sem sequer se levantar do lugar, gritou-lhes que se fossem embora, pois ela nunca regressaria… a criança começou a chorar.

Vendo que havia necessidade de “grandes remédios”, o trio transformou-se; a sua essência angelical emergiu e eles cresceram até perto de três metros de altura, descomunais asas nasceram-lhes nas costas e todo o corpo resplandecia como metal em brasa. Novamente em uníssono instaram a que Lilian regressasse sob pena de ser amaldiçoada em Nome do Criador.

Ela voltou a gritar-lhes, por entre o choro da criança, que se fossem embora e a deixassem em paz.

As três terríveis vozes anunciaram então que, em virtude da sua desobediência, estava amaldiçoada em Nome de Deus até ao fim dos seus dias. Teria muitos filhos, mas quase nenhum vingaria; as doenças e a violência levariam quase todos. Ela teria uma vida longa, mas a maioria dela, seria passada a chorar a morte das crias. Terminaram com as palavras que selavam a maldição e que ecoaram no teto da gruta e fizeram tremer o chão como trovões.

Em seguida, como se fossem um só, voltaram-se e caminharam para a saída, ignorando as pedras que Lilian lhes arremessava, lavada em lágrimas.

Quando Samael e mais dois anjos se materializaram à frente dela, haviam-se passado muitas horas que chorava de joelhos no chão, ainda abraçada ao filho.

O anjo abraçou-a ternamente e sussurrou-lhe ao ouvido: “Acalma-te, estamos aqui para te ajudar. Não sabia onde estavas e a única forma de o saber, era seguindo aqueles três. Agora que estou aqui a teu lado, não deixarei que te aconteça nada de mal.”

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segunda-feira, 29 de julho de 2024

Sobre “A Caixa do Mal”

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


O objeto conhecido por Caixa do Mal, ou a Caixa de Orações, é uma caixa esculpida em antiquíssima madeira de cedro do Líbano sobre a qual já foram feitos alguns reparos em folha de cobre. Da simbologia arcana que a recobre, destacam-se os selos dos demónios Lilith e Asmodeus. Possui dois suportes móveis para poder ser colocada na vertical e abrir as duas portas, simulando um altar portátil.



No seu interior, repousam finíssimas esculturas, do mesmo material da caixa, representando ambas as terríveis divindades. Na base do demónio masculino estão gravados os numerais romanos VI e nos do feminino XI. Acredita-se que se refiram à superstição romana do número dezassete (XVII), que pode ser convertida em VIXI (em latim, “Eu vivi”) e se viveu, então já não vive mais…



  

Todo o conjunto apresenta os danos do peso dos séculos e da manipulação por gerações de adoradores e curiosos. A madeira encontra-se ressequida e coberta de fendas, embora continue extraordinariamente dura. Reza a tradição oral ter sido esculpida a partir de um dos destroços provenientes da destruição do Templo de Salomão em 587 AC.

Na realidade, a origem da Caixa do Mal perde-se nas brumas do tempo. Não se sabe quando tal artefacto foi construído, nem quando foi consagrado às duas maléficas entidades. A primeira referência escrita ao objeto, estava dentro dele próprio; uma carta do imperador romano Calígula, que foi um dos seus proprietários, algures entre os anos 32 a 41 DC.

No Dia de Todos os Santos, 1 de novembro de 1755, durante o terramoto que destruiu a cidade de Lisboa, o tsunami que lhe sobreveio atirou com vários navios para terra, entre eles um veleiro de nome e proveniência desconhecida que se destruiu próximo do palácio do Duque de Aveiro. Do meio dos destroços, os criados do Duque serão atraídos pela estranha caixa que entregarão ao seu amo.




Suporte para esta publicação:
Imagens da caixa e do veleiro: IA https://designer.microsoft.com/
Imagens dos demónios, arte de Artur Mósca https://www.facebook.com/arturmosca


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