quinta-feira, 29 de julho de 2021

Brindemos a Laurinda

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

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Photo by Tembela Bohle from Pexels

Naquela tarde de agosto, André caminhava apressadamente pelo passeio largo, ao lado da rua movimentada. Já há muito não passava por ali, mas só arranjara estacionamento longe do local onde se dirigia e estava a cortar caminho.

Junto das mesas da esplanada de uma confeitaria, um dos clientes agarrou-lhe o braço. Olhou-o com surpresa e irritação, mas logo o seu rosto se transformou:

— Filipe?!? — Exibiu um sorriso rasgado e abraçou o outro assim que ele se ergueu. —Que andas a fazer por aqui?

— Tive de voltar para tratar da venda da casa. — Fez-lhe um gesto de convite e ambos se sentaram. — Há quase um ano que estava fechada e como não faço tenções de voltar a viver lá… melhor vender do que deixá-la estragar-se.

— De certa forma tens razão. — Concordou André. — Mas não esperava nada ver-te e confesso, já tinha saudades tuas.

— Eu também. Temos de nos encontrar mais vezes, marcar uma data no mês, sei lá. — Ele fez aquele ar de comprometido de quem faz uma promessa que não pensa cumprir. — Afinal, estou a menos de trinta quilómetros daqui, é um instante.

— E escolheste logo esta confeitaria… — André fez um gesto a abarcar o conjunto das mesas e cadeiras.

— Foi de propósito. — Confessou Filipe. — Fez parte da melancolia que me atingiu assim que cheguei.

— Eu nunca mais voltei cá… desde que aquilo aconteceu. Mas fizemos bem em nos mantermo-nos separados. — André baixou os olhos, enquanto o empregado do estabelecimento trazia as bebidas que pediram.

— Não sei porquê. — Cortou Filipe, assim que o empregado se afastou. — Somos irmãos, qual é o problema de sermos vistos juntos? Não é natural? — O outro manteve o olhar no chão, enquanto ele se inclinava para mais proximidade. — Não íamos sempre de férias juntos? Mesmo antes dela?

André brincou com as mãos sobre o tampo da mesa, antes de pegar na caneca de cerveja e beber dois ruidosos tragos. Como que para engolir algo que se lhe prendera na garganta.

— Ela era maravilhosa… — Elogiou ao pousar a caneca, com os olhos perdidos nas marcas da mesa metálica. — Tão linda e meiga, sempre pronta a satisfazer as mais loucas fantasias.

— Sim e manipuladora e intriguista. Que reagia mal, quando não conseguia o que queria. — Cortou Filipe rudemente, antes de dulcificar também o seu tom. — Mas quem conseguia recusar-lhe fosse o que fosse quando ela fazia aquele beicinho e os olhinhos tristes.

— Foste um bocado canalha, ao envolver-te com ela! — Censurou André com secura, antes de meter os lábios de novo à caneca. — A mulher do teu próprio irmão…

— Mas que queres? Tão bonita, tão querida, tão… disponível.

— Porque é que havíamos de ter ido para o Gerês. — Como que se autocensurou André. — Para aquele bangalô no meio de nenhures.

— Exatamente para aquilo que fomos! — Esclareceu Filipe! — Para bebermos, para nos rirmos, divertirmo-nos, em suma! E nós fizemo-lo!

— Meus Deus! — Reconheceu André. — Bebedeiras de caixão à cova até de madrugada, depois dormir e acordar já de tarde para beber mais… bolas, que parvalheira… depois, tu e ela…

— Quando me apercebi, ela já estava agarrada a mim aos beijos e a abrir-me a breguilha. — Confessou Filipe. — Mas tu até te rias, não parecias importar-te e acabamos por fazê-lo ali mesmo no sofá. À tua frente. — Agora era ele quem firmava os olhos no tampo da mesa a recordar toda a história. — Quando acabamos, ela foi para o pé de ti, decidida a continuar contigo o que começara. Eu levantei-me para ir à casa de banho e ouvi-vos discutir…

— … eu estava tão bêbado… — Reconheceu André. — …não me estava a incomodar nada que ela tivesse feito amor contigo. Mas, quando veio para junto de mim, o cheiro de sexo recente, sabê-la suja por alguém que não eu…

— Adormeci no meu quarto, quando tudo ficou em silêncio. — Continuou Filipe. — Quando me levantei de manhã, tu ressonavas no sofá e ela estava no chão, nua, enrolada sobre ela própria.

— Discutimos muito… — Esclareceu André. — Estávamos abraçados, mesmo assim, mas ela tentou soltar-se e eu apertei-a, ela deu-me uma cabeçada e eu esbofeteei-a e empurrei-a… era geniosa, mas pouco musculada, apesar das corridas que fazia.

— És um bruto! — Censurou o outro, com um gesto de desagrado. — Cala-te não fales mais nada.

— A culpa foi dela! Atirou-me com o cinzeiro e eu apanhei-o e atirei-lho de volta. Acertou-lhe na cabeça, ela gritou, insultou-me e depois deitou-se ali a chorar… não achei que fosse muito grave…

— Agora cala-te! — Insistiu Filipe em voz baixa e olhando em volta, preocupado.

— Se não fosses tu… — Continuou o assassino. — … a ideia de lhe vestir o equipamento de corrida, atirá-la da ravina e chamar socorro porque ela saíra para correr e não regressara… o pior foi a polícia a investigar e as custas da recuperação do corpo.

— Que até ficou barato, comparado com a perspetiva de uma boa temporada na cadeia, não achas? — Comparou o irmão, num sussurro.

— Sim, claro, mas ainda penso muito nela… — Duas grossas lágrimas soltaram-se dos olhos de André. — … eu amava-a muito, sabes?

— Agora esquece! — Ordenou Filipe, enquanto erguia a caneca e elevava os olhos ao céu. — Brindemos a Laurinda, um sonho de mulher bela e maravilhosa! — Depois de tilintar a vasilha com a do irmão, bebeu dois largos tragos e concluiu: — Agora, temos de arranjar outra!

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1 comments:

Fernando Morgado disse...

Até há uns tempos, eu guardava o dia 29 de cada mês para escrever um poema ou um texto dedicado a um dos meus maiores amores, o meu neto. Agora são dois, derivou a forma de os escrever e, assim, essa data passou a ser livre. Ou não!
O Manuel Amaro Mendonça instalou-se nesse dia e, agora, espero o 29 de todos os meses para me deliciar a ler o conto que ele, renovadamente, escreve e publica neste blog.
Não, não é rotina! É prazer!
A Laurinda, curiosamente o nome da minha sogra, atravessa este conto de uma forma quase burlesca, ou vexante, não houvesse um crime pelo meio, e uma palavra não escrita mas inscrita no conto - sangue!
O conto deixa muitas pontas soltas, e ainda bem, permitindo que o leitor acrescente os seus pensamentos à história, mas também toca noutros temas incontornáveis, como são o alcoolismo, a violência, o deboche e a perturbação mental. O final, que eu esperava de arrependimento, surpreende e deixa-me uma curiosidade: será que apenas um copo de cerveja embriaga mais que uma bebedeira de caixão à cova?
Eu acho é que, estes dois irmãos, caíram na cova e de lá não saíram.
É esta interpretação inquieta que lhe dá valor, e eu gosto que um texto me inquiete.
Parabéns, Manuel Amaro.

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