terça-feira, 29 de junho de 2021

Idiossincrasia

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Image by Gerd Altmann from Pixabay 

— Sim, ouviu bem. Peço desculpa! — Humberto mostrava-se verdadeiramente contristado a falar com o Inácio, quando se encontraram casualmente ao sair do bloco de apartamentos onde ambos residiam. — Por toda a razão do mundo que eu pudesse ter, nada me dava o direito de falar consigo da forma como falei.

Ele estava consciente da expressão apatetada de Inácio, de quem era vizinho vai para dez anos, que não sabia como reagir a esta sua nova atitude completamente discordante da que sempre lhe conhecera.

 Como a maior parte dos habitantes de prédios, conheciam-se mais ou menos superficialmente, fruto de contactos esporádicos em reuniões de condomínio, ou na frequência das áreas comuns do edifício, como as garagens, átrios, escadas ou elevadores. A relação entre ambos, porém, sempre fora tensa e desagradável, devido ao péssimo feitio de Humberto, que explodia ao mínimo contratempo e partia para o insulto pessoal e a ameaça física. Não era, de resto, apenas com Inácio esta atitude, a fama dele alargava-se a todo o bloco… e à maior parte dos locais frequentados por ele.

— Mas que se passa consigo? — Interrogou o baixo e anafado vizinho, entre o receoso e o divertido. — Está doente? Alguma doença em fase terminal?

— Não, Graças a Deus que não… penso eu. — Humberto sorriu, para maior espanto do interlocutor. — Apenas estou a pôr a mão na consciência e a perceber que não tenho agido bem consigo estes anos todos e, principalmente ontem, quando discutimos por causa do seu cão a ladrar no corredor quando você entrava em casa. O barulho incomoda-me e peço-lhe por favor que evite que o animal o faça naquele local onde ecoa imenso. Tenha um bom dia.

Com estas palavras, voltou-lhe as costas e caminhou pelo passeio, deixando o vizinho olhando-o assombrado, segurando a porta da entrada com uma mão e o saco de papel da padaria na outra.

Humberto tinha consciência do seu péssimo feitio e muitas das vezes arrependia-se, algumas horas depois, das coisas que dizia ou fazia. Mas o simples relembrar da situação, trazia de volta o azedume e acabava por rematar com um sentenciador “Foi-lhe bem feita!”

Não era nenhum “hércules”. Nos seus quarenta e muitos anos, sempre fora magro, alto e seco de carnes; era a violência latente nas suas palavras e gestos, aliada à transfiguração instantânea de uma pessoa educada noutra sem qualquer filtro, que surpreendia e deixava sem reação as “suas vítimas”. Não poucas vezes, se vira envolvido em trocas de socos com alguns objetos da sua raiva, menos preparados ou educados, ou que simplesmente não aceitaram ser desaforados de ânimo leve. A coisa resolvia-se em poucos segundos; ou ficava-se, ou os presentes envolviam-se e separavam os contendores, permitindo-lhe manter a face (intacta).

A sua existência decorria num mundo onde as pessoas pareciam fazer fila para o desfeitear, desprezar, ou simplesmente aborrecer e ele fazia questão de se manifestar ruidosa e odiosamente, sempre que tal acontecia. Mesmo no emprego, a maior parte dos colegas de trabalho, temiam-no ou evitavam-no, apesar de lhe reconhecerem a diligência e eficiência profissionais. A grande exceção era Lucília, sua mulher, que conhecera nesse mesmo emprego e com quem casara, rendido aos seus encantos e à surpreendente capacidade de dulcificar o seu comportamento. Apenas a ela aquiescia quando censurado e só a ela reconhecia o seu problema. Após a violenta discussão com Inácio na noite anterior, Lucília, cansada e envergonhada dos problemas com os vizinhos, repreendeu-o asperamente e apresentou-lhe um ultimato: Ou ele mudava de atitude, ou ela mudava de casa… sozinha.

Humberto não conseguia conceber a sua existência de regresso à solidão dos tempos antes dela. Quando discutia no emprego, bastava um vislumbre da sua presença, para que o possante dragão que cuspia fogo pelas ventas, se transformasse num dócil cordeiro, ou no mais cordial dos colegas de trabalho. Quando regressava a casa, era como se saísse de um túnel quente, escuro e sujo e entrasse num imenso vale ensolarado, fresco e florido. A sua “fada do lar” recebia-o com o “solvente de mau-humor” que só ela possuía. Por isso, decidiu que aquele dia seria o primeiro do resto da sua vida mais tolerante e afável.

Envolvido nessas doces vibrações, sonhava acordado com a admiração e alegria que esperava ver mais logo nos belos olhos da sua doce Lucília. Ignorou de forma estoica o buzinar insolente do camionista quando se demorou a atravessar a passadeira, não resmungou, como sempre fazia, pelo ruído das motos e deu os bons dias a muitos dos conhecidos, alguns dos quais se imobilizaram no passeio, para confirmar se tinham ouvido bem.

No Pão Quente, não se incomodou pelo facto do funcionário ter atendido primeiro os que estavam sentados, nem por ter três outros clientes à sua frente. Quando chegou à sua vez, sorriu e saudou o empregado, deixando-o ainda mais nervoso e confundido. Quando este pousou o saco de papel com o seu pedido em cima do balcão, um dos pães rodou para o tampo de granito e ele colocou-o rapidamente de volta à embalagem. Humberto estremeceu e arregalou os olhos, corou, mas controlou-se e expeliu ruidosamente o ar do peito.

— Meu caro. — Avisou apaziguadoramente para o jovem funcionário que parara de respirar, pois percebia ter cometido uma falta, embora não soubesse ainda qual. — Esse pãozinho, rolou num balcão duvidosamente limpo e você apanhou-o com a sua mãozinha descuidada, pois a luva ficou ali em cima da prateleira. Importa-se de o substituir?

 Como um foguete e quase em pânico, o rapaz calçou a luva de plástico, pegou novo pão da caixa e trocou-o pelo “conspurcado”. O sorriso condescendente de Humberto estremeceu e desmoronou-se quando, o solícito funcionário, arremessou a unidade recusada para a caixa onde se encontravam os restantes pães para venda.

“Lembra-te, este é o primeiro dia de uma nova vida!” Humberto recomendou para si próprio, quando virou as costas ao balcão onde deixara as moedas para pagamento, sem agradecer nem se despedir. “Pelo menos aquele pão já não será para mim.”

Regressou a casa, satisfeito consigo mesmo, enquanto contornava alguns dejetos canídeos abandonados no passeio. Evitou os seus comentários a meia voz contra os amantes de animais, porcos, ignorantes e menos inteligentes que o seu animal de estimação. Não insultou a criança que quase o atropelou com a bicicleta nem se sentiu incomodado com o cão que o veio farejar, no limite da trela do dono.

Estava realmente um belo dia de primavera, com sol e uma temperatura amena, os pássaros chilreavam nos fios elétricos e nos beirais dos telhados. Tudo para ser feliz, não percebia como podia estar sempre zangado.

Em frente à porta de entrada, com o saco do pão debaixo do braço enquanto procurava a chave no bolso, recebeu sobre o ombro os generosos dejetos de uma das pombas, “que a estúpida da velha do quinto esquerdo insistia em alimentar”. Algumas pingas, perante o olhar escandalizado dele, caíram sobre os alimentos.

Simultaneamente, a porta do prédio abriu-se e de forma intempestiva, Inácio saiu, arrastado pelo enorme e trapalhão Retriever que possuía, quase derrubando Humberto. O saco de papel estatelou-se no chão; pães rolaram pelo passeio em todas as direções.

— Grandessíssima besta! — Explodiu Humberto, descontrolado, apontando o indicador espetado diretamente aos olhos do outro. — Que tens nessa cabeça de balofo gorduroso? Não sabes controlar o “cavalo”? Em qual das pontas da trela está o animal inteligente? Devia de te rebentar essas fuças!

Manuel Amaro Mendonça
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2 comments:

Fernando Morgado disse...

Este texto é um retrato real do dia-a-dia, uma anomalia social que afecta várias pessoas, sem grande folga entre a psicose e a educação. Conforme descreves o Humberto, penso tratar-se de um individuo irascível, de horizonte curto, onde julga todos os outros sem a inteligência de saber que o mundo não gira à volta dele.
Consegues uma narrativa clara, bastante cromática da situação apresentada, deixas que a metafisica possa, eventualmente, explicar o comportamento e, muito do meu agrado, crias uma plasticidade interessante na tríade entre ele, a mulher e os outros.
Como se diz popularmente, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita: não é bem este caso; nem todos os comportamentos mentais não vêm do berço, alguns crescem e definem-se pela educação.
Um excelente texto, como de costume, na pertinente voz que os teus leitores já bem conhecem. Todos os meses uma nova pedra, qualquer dia fazes uma aldeia de castelo. E ainda bem.
Parabéns, Manuel Amaro.

Suzete Fraga disse...

Só tu para fintar o leitor! Ler é entrar noutra dimensão que, por mais corriqueira que seja, sabemos que foi ficcionada. No entanto, nesse mundo de "faz de conta" onde tudo é cor de rosa, se assim quisermos, deixas uma brecha de realidade, uma realidade que desejamos ludibriar, mas que faz parte da da nossa condição humana.
É isto que este conto transmite: somos humanos com capacidade para evoluir, mas em situações limite é o animal que existe dentro de nós que impera. Esta descarga de realidade no final é uma grande lição a ter em conta.

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