Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
CRIAR RAÍZES
Xico aproximou-se olhou demoradamente o amigo, antes de lhe dar um abraço. As mãos e o rosto foram bastante maltratados pelas chamas e uma parte do cabelo e da sobrancelha de um dos lados havia desaparecido.
Sentaram-se no tanque de pedra onde a sua mãe tantas vezes lavou e conversaram animadamente sobre as patifarias de infância e juventude, até chegarem às recordações mais recentes e traumáticas, longe um do outro. A história do Zé ferreiro, chamado assim porque trabalhava na serralharia com o pai, era terrível: depois da morte dele, mudou-se com a mulher para junto da mãe, sobre a pequena oficina onde trabalhou desde pequeno e que era o seu ganha pão. A vida corria-lhe bem, até que uma noite, um curto circuito pegou fogo à instalação elétrica antiga e todo o edifício foi consumido pelas chamas. Os vizinhos retiraram a família toda do incêndio, mas para a mãe, a mulher e a filha era tarde demais. Adormecidos, uns sufocaram pelo fumo e outros sucumbiram às queimaduras. Depois de uma longa estadia no hospital, regressou para as ruínas da casa. O dinheiro do seguro, feito pelos valores mínimos, mal cobriu os tratamentos e permite-lhe uma reforma miserável. Não pode trabalhar porque esquece-se do que está a fazer e por vezes fica completamente confundido, além de ter perdido três dedos da mão esquerda. Foi Maria da Luz, a mãe de Xico, quem lhe matou a fome muitas vezes e chegou mesmo a dormir ali, na velha loja onde Xico dormira. Quando ela adoeceu, Zé tomou conta dela, como pode, até que ela própria adoeceu e foi para o hospital onde morreu.
Ficaram os dois calados a olhar o chão, pensando coisas diferentes.
O melro voltou, pousou a poucos metros dos dois amigos e assobiou uma das árias típicas da espécie, terminando com o que parecia uma pequena gargalhada.
— Já andas aí outra vez? — Exclamou Xico, contrariado.
— Esse passarão já anda para aí há uns dias. — Informou o amigo.
— Passarão? — Olhou a ave, com intensidade, antes de soltar um sorriso. — Não pode ser.
O pássaro saltou num voo rodopiante em volta dele enquanto soltava o seu típico gargalhar até pousar num dos esteios da vinha, onde via tudo o que se passava.
— Parece que o bicho gosta de ti! — Riu José.
Xico ergueu-se, mirou e remirou a ave, que lhe devolveu um olhar curioso, ora com um olho, ora com o outro. Novamente a gargalhada trocista.
— Não pode ser! — Reafirmou Xico, afastando a ideia com um gesto. — Não podes ser o passarão!
Como que percebendo, o pássaro lançou-se no ares, assobiando numa alegria própria e depois de mais uma volta aos dois amigos, afastou-se num voo rápido.
— Que estás a pensar? — Zé estava curioso.
— Achei engraçado… teres chamado passarão ao bicho.
— Então não é? Não achas que é demasiado gordo para um melro?
— Sim… gordo e bem disposto… — Um sorriso misto de tristeza e saudades formou-se-lhe nos lábios.
Estava assim formada a equipa que ajudaria Xico a começar do zero, após uma longa fase, mal pensada e desperdiçada da vida. Não mais o Zé ferreiro o deixou, passando a partilhar a casa com o amigo e ajudando em todas as tarefas de recuperação, do terreno e da casa. O melro era visita constante, ao ponto de já se aproximar deles e comer as migalhas, que lhe deixavam ao alcance da mão, deixando-se até tocar por uns segundos, antes de se afastar rapidamente. Nem Maria Alice deixou que o seu contacto se limitasse à cedência de umas quantas sementes e convidou a dupla para jantar algumas vezes, na casa que partilhava com a mãe, que estava senil e o filho Daniel, com cerca de dez anos.
Xico estava a começar a ambientar-se e a sua velha vida parecia já quase esquecida, embora por vezes, nas fases críticas de Zé, em que o amigo parecia uma autómato que mal sabia quem era, dava consigo a perguntar-se que tipo de magnetismo teria ele para atrair os desmiolados.
Frequentemente reuniam-se na mercearia do Manuel e a noite estendia-se longa… e alcoolizada, apesar das discussões e interrupções frequentes da mulher deste. Inevitavelmente, acabou-se o dinheiro e a magra pensão do Zé teve que dar para ambos; “Nem eu admitia de outra forma”, exclamou este, face à fraca oposição de Xico.
Uma noite, acabados de comer a sopa que a Maria Alice deixara ao almoço, Zé estava um pouco atordoado e com dores, fruto da falta dos medicamentos para os quais começava a não haver dinheiro. Emborcando o resto do vinho que havia na garrafa, Xico assegurou-lhe que amanhã pediria uns euros emprestados ao Manuel e iria a castro Daire buscar os medicamentos. Podia pagar com algumas entregas de mercearia, só precisava de o convencer a fazê-lo sem que a mulher soubesse.
Agoniado, Zé levantou-se da mesa e cambaleou na direção do quarto mas, imediatamente antes de abandonar a cozinha, desequilibrou-se e caiu pesadamente, agarrado a um dos vários casacos pendurados. A madeira apodrecida do cabide cedeu e ele terminou enrolado numa bola de tecido, imóvel.
— Raios partam! — Exclamou Xico ao erguer-se para ajudar o amigo caído. — Que se passa aí? Queres estragar-me a casa? Depois de tanto trabalho a recupera-la?
Ele próprio cambaleou, mas a causa era outra, em vez de falta de medicamentos, havia “medicamento” a mais. Mesmo assim, ajudou Zé a erguer-se do meio da roupa que estava amontoada no cabide. Na mão, ele trazia o casaco branco, imundo, com que chegara à aldeia.
— Que faz isto aqui? — Perguntou Xico surpreendido. — Não te disse para o deitares ao lixo, que me traz más recordações?
— Eu deitei. — O outro respondeu, meio atordoado. — Mas o “estupor” do passarão não deixava de o comer.
— Pois, se calhar também lhe trazia más recordações! — Riu alto.
— Mas que tem o casaco afinal? — Sentado no chão, Zé preparou-se para ouvir a história.
Xico sentou-se ao pé dele e falou-lhe do Passarão, do Vesgo, do Pinguinhas, do Manel Preto, do Manco, enfim, de todos aqueles que partilharam a sua vida na rua, nos últimos anos. As tareias que apanhou do Vesgo, por roubar e não lhe dar parte, do medo que tinha do Manel Preto, chefe dos “mafiosos”, que, dizia-se, já matara dois homens. Contou-lhe e riram, das patifarias e das “patuscadas” que fez com o seu amigo, de como o tratou mal, que não merecia e as vezes que o defendeu dos outros vagabundos como eles. Tinham ambos os olhos húmidos, quando relatou os últimos momentos do Manel Passarão, caído no asfalto da rua, com o olhar vítreo nas pombas que esvoaçavam nas alturas.
Evitou alguns pormenores mais sórdidos, mas relatou o tempo que viveu, como um covarde, enfiado num cubículo de um prédio condenado, de onde expulsou outro “rato” mais fraco que ele. O frio que entrava por baixo da porta, meio partida e o cheiro a urina e excrementos que infestava aquele espaço recôndito onde foi reunindo a sua “fortuna” de cartões e cobertores. O medo que sentia, quando ia comer a sopa que traziam os voluntários da ajuda de rua, de que alguém o visse e avisasse o infame Vesgo. Só o fazia quando a fome era mesmo muita. Gradualmente, revivia todo o episódio na sua memória.
****
Tinha o cabelo e a barba enormes e enriçados, que até os habitantes do bairro lhe tinham medo, quando saiu do seu cubículo e “tropeçou” com o Pinguinhas. Deu-lhe uma tareia e expulsou-o dali, após o fazer dizer o que andava a fazer por lá: o Manel Preto queria “tirar-lhe o couro”. Quando se preparava ele próprio para fugir, viu o caminho cortado pelo enorme Vesgo, envergando um casaco branco sujo, que vinha na sua direção. Correu pelas escadas, antes de ser visto, mas foi a voz do Pinguinhas que o denunciou: “Está ali! Vai a subir!”
Os seus pés voaram pelos degraus e subiu, nem ele sabe quantos pisos. Não podia continuar assim, tinha que o despistar e correu pelo corredor de portas fechadas, completamente deserto. As paredes cobertas de grotescos grafittis, parecia zombar da sua aflição.
— Sei que estás aí, passarinho! — A temível voz do Vesgo ecoou no corredor. — Vens cá ou vou-te buscar?
— Vou avisar o Manel! — O odioso Pinguinhas exclamou alto o suficiente para que fosse ouvido.
Desesperado, Xico escondeu-se num apartamento que estava aberto, com vários sacos de lixo a impedir a porta de fechar. Lá dentro, pouco restava das paredes das divisórias e as janelas, sem caixilharia, eram entradas perfeitas para o vento que soprava, dominador, enchendo o ar de poeira.
Escondeu-se no cubículo que parecia o que restava de uma dispensa e apertou-se nas sombras. Na sua mão estava um velho tubo galvanizado, ferrugento: Não iria apanhar sem dar também.
— Passarinho! — A voz estava agora na entrada do apartamento.
Ouviu e contou os passos com dificuldade, acima do barulho que fazia o seu coração galopante, quase a sair pela boca. O barulho do colchão, que vira no chão, a ser arrastado, possivelmente para ver se estava por baixo.
Os passos aproximaram-se até à entrada do esconderijo e Xico ergueu o cano e desfechou uma pancada com toda a força. Com o nervosismo, esqueceu-se da padieira da porta e foi lá que bateu, assustando-se e assustando o seu perseguidor com o estrondo.
Perdida a “arma” e a surpresa, tentou fugir por entre a nuvem de pó que levantou, mas uma mão de ferro do Vesgo esmagou-lhe braço esquerdo, enquanto a outra lhe acertava violentamente na nuca.
Estatelou-se no chão como uma boneca de trapos, mas o seu pesadelo não queria ficar por ali, por isso agarrou-o pelo cabelo e deu-lhe um tabefe com tanta força que a face em chamas e o potente zumbido nos ouvidos se uniram numa dor única.
— Não vou perder tempo a falar contigo. — O Vesgo agarrou Xico pelo cabelo e pelos colarinhos e fê-lo cambalear através da porta para o corredor. — O Manel vai “dar-te umas poucas”. — Soltou uma forte gargalhada. — Pode ser que até me deixe cortar-te os “tintins”.
— Por favor, Tone. — Implorou entre empurrões, a limpar o sangue que lhe escorria da boca. — Deixa-me fugir, diz que não me apanhaste. Eu compenso-te, o meu próximo “trabalho” vai todo para ti!
— És mesmo burro! Desconfio que, depois de hoje, vais ter menos uma mão, para poder meter no bolso alheio. — Este diálogo, enquanto atravessavam o corredor, era acompanhado por olhos que espreitavam pelas frinchas das portas.
— Por favor…
— Cala-te, monte de m**! — Empurrou-o com violência contra a balaustrada das escadas. — Desce! E tens sorte de não te obrigar a levar-me às costas!
Xico agarrou-se com força ao corrimão e o outro debruçou-se sobre ele, batendo-lhe nas mãos e na cara, para o fazer largar. Repentinamente, a vítima passou ao ataque e usou a parte de trás da cabeça para desfechar uma violente cabeçada sobre a boca e o nariz do seu agressor, que deu um passo atrás.
— Ah, seu filho da p**! — Exclamou o gigante ao ver o liquido púrpura que gotejava profusamente nas mãos. — Nem Manel, nem meio Manel, vais morrer agora mesmo! — Lívido de raiva, ergueu as enormes manápulas ensanguentadas, armadas para estraçalhar e avançou para ele.
O pânico não deixava Xico pensar que, naquele momento, tudo o que fizesse, para além de fugir, só seria pior e chutou o Vesgo com força entre as pernas, empurrando-o depois contra o corrimão oposto, assim que ele se curvou com as dores.
O homem enorme abateu-se como um castelo de cartas e rolou pelo cimento do lanço de escadas, em cambalhotas descontroladas, até ao patamar. Tão depressa caiu de chapa na placa de cimento como se levantou de um salto e numa máscara de fúria, da cor de ferro em brasa, ergueu um ameaçador punho fechado, enquanto gritava:
— Vais morrer!!!!!
Foram apenas as suas últimas palavras. Caiu de borco sobre os degraus, olhos esbugalhados e boca a escorrer saliva e sangue.
A chorar de pavor, Xico procurou avidamente por uma arma, acabando por se decidir por um pedaço de cimento, do tamanho da mão. Com o improvisado armamento em riste, desceu as escadas o mais apertado à parede contrária que conseguiu.
O Vesgo continuava imóvel, pelo que se aproximou, cautelosamente e desferiu-lhe um pontapé num braço. Não reagiu. Mais forte que o medo, era a existência como ladrão e aproveitou de imediato para lhe tentar tirar a carteira, reparando então no casaco do morto e mirando o seu, rasgado e sujo. Revistou-lhe os bolsos das calças e despojou-o do casaco, certificando-se da presença da carteira, que parecia recheada.
Estava quase para se ir embora, mas não o fez sem apanhar a pedra que levava para se defender e bater com ela várias vezes na cabeça daquele maldito que tantas vezes o agredira e roubara.
Depois, enrolou o seu próprio casaco debaixo do braço e fugiu.
****
Zé, sentado no chão em frente ao amigo, olhava-o incrédulo, enquanto levantava o casaco sujo e rasgado.
— Mataste-o? Não estás a brincar? — Perguntou. — O dono deste casaco?
— Não o matei, já estava morto. A queda tinha acabado com ele, ou teve um ataque, sei lá. — Xico já não estava seguro de ter feito bem em contar aquilo, mas sentia-se muito mais aliviado. — Já não respirava quando lhe bati. — Ergueu-se e foi à mesa onde pegou a garrafa do vinho e esgotou-a diretamente pelo gargalo, antes de concluir. — De resto, era um bom filho da p**, merecia tudo o que lhe pudesse acontecer.
— Já reparaste que a parte da frente é mais grossa e dura do que o resto do casaco? — Zé estava a revirar a peça de vestuário, como que a decidir se a lava a ou não.
— Sim, já tinha visto. Aquele cabrão deve ter posto aí uma proteção, não fosse alguém atirar-lhe um tiro ou espetar-lhe uma facada, tão bom ele era.
— Não é isso. — O outro insistia em revirar o tecido, até que por fim, encolhendo os ombros, rasgou ruidosamente o forro e sacudiu-o. — Parece que tem aqui qualquer coisa… — No chão caiu, com um baque seco, um saco plástico transparente, cuidadosamente embalado e fechado, contendo vários maços de notas de cem euros.
*** Fim da 7ª parte ***
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