segunda-feira, 5 de março de 2018

Uma Casa nas Ruas - 2ª parte

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.


POUCA SORTE



As entradas escancaradas, alinhadas com as aberturas que em tempos tiveram vidros, pareciam rostos tristes condenados à demolição, tão logo um “alto senhor” na Câmara Municipal “lavrasse a sentença”. Mas para já era a casa dele, o refugio do frio que lhe mordia os ossos e da chuva que lhe ensopava a alma.

Xico nem sempre vivera assim. Em tempos, teve um emprego numa empresa de segurança, logo depois de sair da tropa, mas a sua atração pelas coisas que não lhe pertenciam, levou-o à perdição. Foi despedido, apanhou uns meses de cadeia e, o pouco que tinha conseguido juntar, evaporou-se num ápice. Nem pensar em procurar pela mãe, de quem já não sabia há anos, na longínqua aldeia beirã. Na certa chamar-lhe-ia quantos nomes se lembrasse e ainda lhe atiraria com o que tivesse à mão. As tendências para “amigo do alheio” herdara-as do pai, falecido quando ainda era criança e não da mãe, que era pobre, mas honesta. Agora vivia por aqui e por ali, deitando a mão ao que podia e a verdade, é que se habituara rápido a não ter que dar satisfações a ninguém e a não ter horários para fazer o que quisesse. A chatice, eram a fome e o frio que o mordiam demasiadas vezes…

Abancou-se na única casa que não tinha silvados e aparentava ser ocupada por alguém. Lá dentro havia uma miserável desculpa para cama, na forma de um amontoado de cobertores em cima de um colchão velho e várias pilhas de tralha encostadas às paredes. Depositou as suas coisas a um canto, depois de arrastar um enorme saco de plástico cheio de latas de refrigerantes vazias.

Preparava-se para sair novamente quando ouviu o latido nervoso de um cão. Logo de seguida, entrou pela arruinada porta de acesso ao pátio, um homem enorme “arrastando”, na ponta de uma corda, um vira-lata que se debatia. Era o Manel Passarão e mais um dos seus eternos cães renitentes, que insistia em adotar, mesmo contra a vontade do canídeo. O apelido de Passarão era obra do Xico, porque o homem passava a vida a dar de comer às pombas e a correr à volta do pátio a bater “as asas”. À medida que o tempo foi passando, tornou-se mais calmo e a sua fixação voltou-se para os cães vadios que apanhava e tornava seus. Era um “gigante” acriançado, de quem todos abusavam, até se juntar a Xico. Este nunca fez nada muito importante para o defender, mas a sua presença parecia bastar e gradualmente, de forma mais ou menos violenta, foi expulsando todos os outros “inquilinos” da ilha abandonada.

Assim, que notou o visitante, Manel fez um movimento, como se fosse fugir do pátio, mas então reconheceu o seu hóspede:

És tu, Xico?
Não, é o Papa! — Respondeu o visado, sem um sorriso.
Que foi que te fiz? Porque estás a falar comigo assim? — O homem, com a barba crescida de vários dias, fez beicinho e deixou cair os braços ao longo do corpo.
Deixa-te de “xonices”, “Passarão”! Já sabes que não quero cá pieguices, não achas que és demasiado grande para isso?
Julguei que eras meu amigo…
Se não fosse teu amigo, já te tinha espetado daqui para fora com um chuto nesse teu traseiro descomunal!
Amuado, Manel arrastou o cão, que lutava com a corda, até  um ferro preso na parede, onde o amarrou.
Estiveram aqui o Vesgo e o Pinguinhas à tua procura! — Anunciou enquanto se debatia para fazer um nó na corda que fazia as vezes de trela. — Bateram-me por tua causa!
Porque achas que tive que desaparecer estes dias todos?
O Vesgo disse que, se te apanhasse a roubar carros naquela rua outra vez, te desancava.
Ele que se vá encher de pulgas! Um carro com o vidro aberto, que é que ele queria?!? Está chateado é por não ter visto primeiro! Quantos carros não “gamou” já e deitou as culpas aos outros. Recebe as moedas por arrumar os carros numa rua e vai roubar os carros noutra. É um bom filho da ….
Queriam que lhes dissesse onde andavas.
Ainda bem, que não sabias, vês? — Sorriu satisfeito.
Manel não respondeu e sentou-se no chão, olhando-o, ressentido.
Tens alguma coisa para comer? — Xico mudou a conversa.
Tenho umas latas de sardinhas e uns pães, que me deu a velha que ajudei a levar as compras. — O homem ergueu-se de um salto, esquecido o agravo. — E uns iogurtes que me deram na ajuda de rua!
Vai lá buscar, estou com uma “larica” que “nem é bom”! Vai lá, enquanto eu faço uma fogueira, a ver se espantamos o frio.
O “Passarão” desapareceu a correr no interior do casebre e regressou uns minutos depois, com um saco de papel, e uma tábua por bandeja, que pousou na pedra que muitas vezes lhes serviu de mesa. Depois correu novamente e reapareceu com duas garrafas verdes, que exibiu, triunfante:
Xico! Topa-me lá esta maravilha!
Gaita, homem! Que é isso? — Espantou-se o visado.
O Ferreira, do supermercado, sabes? Ajudei-o a arrumar umas paletes e caíram umas caixas de vinho. Só se aproveitaram quatro garrafas. Ele disse-me que não dissesse nada, ficou com duas e deu-me outras duas.
Ora vejam só! — Xico não queria acreditar na sorte do companheiro. — Parece que não te tens dado nada mal, não senhor!
O frugal almoço, doado pela velha, desapareceu num ápice. Comeram os iogurtes da assistência e duas metades de Bolas de Berlim roubadas na esplanada. Depois deixaram-se ficar ali, a fumar os cigarros roubados ao Barbas e a acabar as garrafas do supermercado.
O discurso de Xico tornava-se mais inflamado, a cada golo da garrafa que estava quase no fim. Contou ao companheiro, num grau crescente de fúria, tudo o que se passara nas últimas duas semanas; os problemas com os outros sem abrigo, para ter onde dormir e as “injustiças” da dona Amélia da limpeza. Finalmente, falou da raiva que sentiu por saber que o Barbas vai acabar por morrer naquele buraco nojento e ficar vários dias a apodrecer, até que alguém dê por ele.
Porque é que o mundo é assim? Uns com tudo e outros sem nada! — Escorreu a última gota e mirou a garrafa ainda meia do companheiro, que já se ria por tudo e por nada. — Dá cá essa porcaria, nem para beber serves! — Exigiu, tirando-lha das mãos abruptamente.
Porque é que és assim? — O outro riu-se, apesar da brutalidade. — Se tivesses pedido, eu dava-ta! Também, acho que se beber mais, deito tudo cá para fora.
Porque é que TU, és assim?!? Pergunto eu! — Xico ergueu-se e atirou a garrafa vazia, numa rasante da cabeça do companheiro, estilhaçando-se ruidosamente no chão empedrado.
Manel caiu, da pedra onde estava sentado, ao esquivar-se do míssil e ficou de costas no chão a rir-se, para uma maior fúria do outro.
Não passas de um idiota! És um burro, um pateta alegre e todos te dão umas porcarias e tu ficas feliz… sempre! — Xico estava cada vez mais furioso, os vapores do álcool a embotar-lhe o juízo. — Eu, para conseguir alguma coisa, tenho que trabalhar no duro… ou roubar!
Percebendo finalmente a fúria e frustração que dominava o amigo, Manel parou de rir, aproximou-se e consolou-o, pousando-lhe a mão no ombro:
Não importa! O que me derem a mim, também dará para ti. Não somos amigos?
Deixa-te de m… pá! — Ele sacudiu-lhe o braço com violência. — Não quero a tua piedade! Queres partilhar as coisas, é?!? Esse casaco apertadíssimo que tens vestido, dá-mo! Dá-mo já!
O outro olhou tristemente para o casaco antes de comentar:
Eu gosto deste casaco, foi um doutor do banco que mo deu!
Raios partam! Vês o que te digo? — Estilhaçou a segunda garrafa, ainda com algum vinho, no chão. — Dá-mo já! Passa para cá essa porcaria.
Como ele demorasse a reagir, Xico partiu para a violência e com alguns socos nos braços, obrigou o companheiro a tirar e entregar-lhe o casaco.
Com lágrimas nos olhos, o “Passarão” assistiu ao ar de triunfo do outro, que atirou o seu próprio casaco para o chão, em cima da mancha púrpura de vinho, enquanto envergava a nova aquisição.
Então? Que achas? Fica-me bem, não fica? Pareço um artista de cinema! - Troçava Xico, radiante do seu feito. — Não pareço já o “teu doutor”?
Sem lhe responder e com lágrimas a correr no rosto bonacheirão, Manel fez o gesto de apanhar o outro casaco abandonado no chão.
Eh lá! Que é lá isso? — Xico apanhou-o antes do companheiro. — Isto é meu!
Mas… tu tiraste-me o… — O rosto dele, onde as lágrimas deixavam linhas verticais sulcadas na sujidade, era uma máscara de incredulidade.
A vida é injusta, colega! Vai catar para aí outro, arranja um papalvo qualquer que te dê! Não te dão tudo? — E com esta pergunta, arremessou o velho casaco para a fogueira.
Cedendo ao peso da injustiça, Manel irrompeu num pranto soluçante e correu para o interior do casebre que lhe servia de lar.
Xico, embalado no efeito do álcool e na excitação da enormidade do que havia feito, saiu para a rua, vagueando sem destino. Levou ainda muito tempo, para que o peso do remorso se fizesse sentir e começasse a pensar que o companheiro não merecia tal tratamento.
Começava a anoitecer e ele, a caminhar por uma rua secundária, olhava atentamente para o interior dos estabelecimentos e para os carros estacionados. Por fim, a sua busca foi recompensada; um casaco abandonado no assento traseiro de um automóvel… fechado. Olhou em volta, para se certificar que não havia ninguém por perto e tirou de uma bota um pequeno martelo plástico com  ponta de metal, que “palmara” num autocarro há algum tempo. Partiu o vidro traseiro e desatou a correr com a presa debaixo do braço.
Já longe, remexeu nos bolsos do saque, achou um molho de chaves e uma carteira, que aliviou de umas quantas notas, antes de a atirar para o balde do lixo. “Está feito, —  Pensou. — está aqui um casaco catita para o “Passarão” e dinheiro para o jantar… bem, ele não precisa de jantar, está bem gordo…
Saiu do beco e entrou numa pequena tasca em frente.
Que andas aqui a fazer, Xico? — O homem careca e baixo, mas entroncado, materializou-se ao pé dele, assim que se sentou numa das poucas mesas vagas. — Não vens armar confusão, pois não? Tens dinheiro, ou ponho-te já lá fora?
Eh, senhor Fernando! Que antipatia! — Fingiu-se ofendido e escarneceu de imediato. — Claro que tenho dinheiro, senão, não entraria neste estabelecimento de luxo.
Bem, vais mesmo para a rua! — Concluiu o outro arregaçando as mangas e pegando-o por um braço.
Não, espere! Estava a brincar! Tenho dinheiro, veja. — Exibiu as notas. — Só venho comer uma “sandocha” de presunto e beber um “tintito”.
Já apanhaste algum desprevenido não foi? — Fernando sabia bem quem ele era e não resistiu a comentar, antes de dar meia volta para ir aviar o pedido. Alguns dos clientes olharam o recém chegado com sobranceria.
Duas bem aviadas sandes de presunto e quatro copos de maduro tinto depois, já todos os vestígios de remorsos estavam diluídos. Recostou-se na cadeira de madeira, o mais cómodo que conseguiu, para ver as notícias que passavam no telejornal. Foi então confrontado com os resultados do concurso do Euromilhões. A tremer, assistiu à exibição de cada um dos “seus” números; lá estavam o 13 da sexta em que se encontravam, o 3 e o 5 da sua data de nascimento, o 31 e o 32 da sua idade… estava rico!!!! Febrilmente, começou a vasculhar os bolsos em busca do talão que furtou ao Barbas, cada vez mais ansioso. Até que, de repente, recordou-se! Estava no bolso do casaco que atirou para a fogueira!
— Demónios dos infernos!!!! — Gritou, assustando toda a gente na atarracada taberna. — P… de sorte a minha! Sacanas malditos, deram-me a sorte quando sabiam que não podia ser minha!!!! Só podem estar a gozar comigo!
Continuou as imprecações atirando com tudo o que estava em cima da mesa para o chão e derrubando as cadeiras vazias à sua volta.
— Já sabia que ias acabar por dar problemas, meu animal! — Gritou-lhe Fernando, agarrando-o pelos colarinhos. — Andor daqui para fora imediatamente e se tornas a cá por “as patas”, dou-te uma tareia que nunca mais te levantas!
O pequeno, mas robusto homem, arrastou literalmente Xico para a porta de onde o chutou para a rua.
— Espera, não! — Protestou o vagabundo sem qualquer resultado. — Não percebe? Foi sem querer! Desculpe! — Caiu pesadamente sobre as mãos e sentou-se, desanimado, vendo o tasqueiro regressar ao “covil”. — E o dinheiro que estava na mesa? E o meu casaco?
A resposta foi dada por dois casacos que saíram a voar pela porta, contra a cara do infeliz que agora se levantava.
Queres o dinheiro, filho da p…? — Gritou-lhe o taberneiro de dentro do estabelecimento. — Vens cá amanhã, quando te passar a borracheira, depois vemos quanto sobra da porcaria toda que partiste aqui!
Não posso acreditar! — Gemeu Xico, quase a chorar, enquanto vestia o seu casaco e dobrava o que levaria para o “Passarão”. — Que filha da p… de sexta feira 13. Tive a fortuna na mão e deitei-a ao lume… tive algum dinheiro e o cabrão do taberneiro ficou com ele… maldita sexta feira 13…
Está ali, senhor guarda! — Ouviu uma voz atrás dele. — Foi aquele que me partiu o vidro do carro, ainda tem o meu casaco debaixo do braço!


*** Fim da 2ª parte ***

1-Oportunista
3-Ausência Forçada
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