Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
POUCA SORTE
As entradas escancaradas, alinhadas com as aberturas que em tempos tiveram vidros, pareciam rostos tristes condenados à demolição, tão logo um “alto senhor” na Câmara Municipal “lavrasse a sentença”. Mas para já era a casa dele, o refugio do frio que lhe mordia os ossos e da chuva que lhe ensopava a alma.
Xico nem sempre vivera assim. Em tempos, teve um emprego numa empresa de segurança, logo depois de sair da tropa, mas a sua atração pelas coisas que não lhe pertenciam, levou-o à perdição. Foi despedido, apanhou uns meses de cadeia e, o pouco que tinha conseguido juntar, evaporou-se num ápice. Nem pensar em procurar pela mãe, de quem já não sabia há anos, na longínqua aldeia beirã. Na certa chamar-lhe-ia quantos nomes se lembrasse e ainda lhe atiraria com o que tivesse à mão. As tendências para “amigo do alheio” herdara-as do pai, falecido quando ainda era criança e não da mãe, que era pobre, mas honesta. Agora vivia por aqui e por ali, deitando a mão ao que podia e a verdade, é que se habituara rápido a não ter que dar satisfações a ninguém e a não ter horários para fazer o que quisesse. A chatice, eram a fome e o frio que o mordiam demasiadas vezes…
Abancou-se na única casa que não tinha silvados e aparentava ser ocupada por alguém. Lá dentro havia uma miserável desculpa para cama, na forma de um amontoado de cobertores em cima de um colchão velho e várias pilhas de tralha encostadas às paredes. Depositou as suas coisas a um canto, depois de arrastar um enorme saco de plástico cheio de latas de refrigerantes vazias.
Preparava-se para sair novamente quando ouviu o latido nervoso de um cão. Logo de seguida, entrou pela arruinada porta de acesso ao pátio, um homem enorme “arrastando”, na ponta de uma corda, um vira-lata que se debatia. Era o Manel Passarão e mais um dos seus eternos cães renitentes, que insistia em adotar, mesmo contra a vontade do canídeo. O apelido de Passarão era obra do Xico, porque o homem passava a vida a dar de comer às pombas e a correr à volta do pátio a bater “as asas”. À medida que o tempo foi passando, tornou-se mais calmo e a sua fixação voltou-se para os cães vadios que apanhava e tornava seus. Era um “gigante” acriançado, de quem todos abusavam, até se juntar a Xico. Este nunca fez nada muito importante para o defender, mas a sua presença parecia bastar e gradualmente, de forma mais ou menos violenta, foi expulsando todos os outros “inquilinos” da ilha abandonada.
Assim, que notou o visitante, Manel fez um movimento, como se fosse fugir do pátio, mas então reconheceu o seu hóspede:
— És tu, Xico?
— Não, é o Papa! — Respondeu o visado, sem um sorriso.
— Que foi que te fiz? Porque estás a falar comigo assim? — O homem, com a barba crescida de vários dias, fez beicinho e deixou cair os braços ao longo do corpo.
— Deixa-te de “xonices”, “Passarão”! Já sabes que não quero cá pieguices, não achas que és demasiado grande para isso?
— Julguei que eras meu amigo…
— Se não fosse teu amigo, já te tinha espetado daqui para fora com um chuto nesse teu traseiro descomunal!
Amuado, Manel arrastou o cão, que lutava com a corda, até um ferro preso na parede, onde o amarrou.
— Estiveram aqui o Vesgo e o Pinguinhas à tua procura! — Anunciou enquanto se debatia para fazer um nó na corda que fazia as vezes de trela. — Bateram-me por tua causa!
— Porque achas que tive que desaparecer estes dias todos?
— O Vesgo disse que, se te apanhasse a roubar carros naquela rua outra vez, te desancava.
— Ele que se vá encher de pulgas! Um carro com o vidro aberto, que é que ele queria?!? Está chateado é por não ter visto primeiro! Quantos carros não “gamou” já e deitou as culpas aos outros. Recebe as moedas por arrumar os carros numa rua e vai roubar os carros noutra. É um bom filho da ….
— Queriam que lhes dissesse onde andavas.
— Ainda bem, que não sabias, vês? — Sorriu satisfeito.
Manel não respondeu e sentou-se no chão, olhando-o, ressentido.
— Tens alguma coisa para comer? — Xico mudou a conversa.
— Tenho umas latas de sardinhas e uns pães, que me deu a velha que ajudei a levar as compras. — O homem ergueu-se de um salto, esquecido o agravo. — E uns iogurtes que me deram na ajuda de rua!
— Vai lá buscar, estou com uma “larica” que “nem é bom”! Vai lá, enquanto eu faço uma fogueira, a ver se espantamos o frio.
O “Passarão” desapareceu a correr no interior do casebre e regressou uns minutos depois, com um saco de papel, e uma tábua por bandeja, que pousou na pedra que muitas vezes lhes serviu de mesa. Depois correu novamente e reapareceu com duas garrafas verdes, que exibiu, triunfante:
— Xico! Topa-me lá esta maravilha!
— Gaita, homem! Que é isso? — Espantou-se o visado.
— O Ferreira, do supermercado, sabes? Ajudei-o a arrumar umas paletes e caíram umas caixas de vinho. Só se aproveitaram quatro garrafas. Ele disse-me que não dissesse nada, ficou com duas e deu-me outras duas.
— Ora vejam só! — Xico não queria acreditar na sorte do companheiro. — Parece que não te tens dado nada mal, não senhor!
O frugal almoço, doado pela velha, desapareceu num ápice. Comeram os iogurtes da assistência e duas metades de Bolas de Berlim roubadas na esplanada. Depois deixaram-se ficar ali, a fumar os cigarros roubados ao Barbas e a acabar as garrafas do supermercado.
O discurso de Xico tornava-se mais inflamado, a cada golo da garrafa que estava quase no fim. Contou ao companheiro, num grau crescente de fúria, tudo o que se passara nas últimas duas semanas; os problemas com os outros sem abrigo, para ter onde dormir e as “injustiças” da dona Amélia da limpeza. Finalmente, falou da raiva que sentiu por saber que o Barbas vai acabar por morrer naquele buraco nojento e ficar vários dias a apodrecer, até que alguém dê por ele.
— Porque é que o mundo é assim? Uns com tudo e outros sem nada! — Escorreu a última gota e mirou a garrafa ainda meia do companheiro, que já se ria por tudo e por nada. — Dá cá essa porcaria, nem para beber serves! — Exigiu, tirando-lha das mãos abruptamente.
— Porque é que és assim? — O outro riu-se, apesar da brutalidade. — Se tivesses pedido, eu dava-ta! Também, acho que se beber mais, deito tudo cá para fora.
— Porque é que TU, és assim?!? Pergunto eu! — Xico ergueu-se e atirou a garrafa vazia, numa rasante da cabeça do companheiro, estilhaçando-se ruidosamente no chão empedrado.
Manel caiu, da pedra onde estava sentado, ao esquivar-se do míssil e ficou de costas no chão a rir-se, para uma maior fúria do outro.
— Não passas de um idiota! És um burro, um pateta alegre e todos te dão umas porcarias e tu ficas feliz… sempre! — Xico estava cada vez mais furioso, os vapores do álcool a embotar-lhe o juízo. — Eu, para conseguir alguma coisa, tenho que trabalhar no duro… ou roubar!
Percebendo finalmente a fúria e frustração que dominava o amigo, Manel parou de rir, aproximou-se e consolou-o, pousando-lhe a mão no ombro:
— Não importa! O que me derem a mim, também dará para ti. Não somos amigos?
— Deixa-te de m… pá! — Ele sacudiu-lhe o braço com violência. — Não quero a tua piedade! Queres partilhar as coisas, é?!? Esse casaco apertadíssimo que tens vestido, dá-mo! Dá-mo já!
O outro olhou tristemente para o casaco antes de comentar:
— Eu gosto deste casaco, foi um doutor do banco que mo deu!
— Raios partam! Vês o que te digo? — Estilhaçou a segunda garrafa, ainda com algum vinho, no chão. — Dá-mo já! Passa para cá essa porcaria.
Como ele demorasse a reagir, Xico partiu para a violência e com alguns socos nos braços, obrigou o companheiro a tirar e entregar-lhe o casaco.
Com lágrimas nos olhos, o “Passarão” assistiu ao ar de triunfo do outro, que atirou o seu próprio casaco para o chão, em cima da mancha púrpura de vinho, enquanto envergava a nova aquisição.
— Então? Que achas? Fica-me bem, não fica? Pareço um artista de cinema! - Troçava Xico, radiante do seu feito. — Não pareço já o “teu doutor”?
Sem lhe responder e com lágrimas a correr no rosto bonacheirão, Manel fez o gesto de apanhar o outro casaco abandonado no chão.
— Eh lá! Que é lá isso? — Xico apanhou-o antes do companheiro. — Isto é meu!
— Mas… tu tiraste-me o… — O rosto dele, onde as lágrimas deixavam linhas verticais sulcadas na sujidade, era uma máscara de incredulidade.
— A vida é injusta, colega! Vai catar para aí outro, arranja um papalvo qualquer que te dê! Não te dão tudo? — E com esta pergunta, arremessou o velho casaco para a fogueira.
Cedendo ao peso da injustiça, Manel irrompeu num pranto soluçante e correu para o interior do casebre que lhe servia de lar.
Xico, embalado no efeito do álcool e na excitação da enormidade do que havia feito, saiu para a rua, vagueando sem destino. Levou ainda muito tempo, para que o peso do remorso se fizesse sentir e começasse a pensar que o companheiro não merecia tal tratamento.
Começava a anoitecer e ele, a caminhar por uma rua secundária, olhava atentamente para o interior dos estabelecimentos e para os carros estacionados. Por fim, a sua busca foi recompensada; um casaco abandonado no assento traseiro de um automóvel… fechado. Olhou em volta, para se certificar que não havia ninguém por perto e tirou de uma bota um pequeno martelo plástico com ponta de metal, que “palmara” num autocarro há algum tempo. Partiu o vidro traseiro e desatou a correr com a presa debaixo do braço.
Já longe, remexeu nos bolsos do saque, achou um molho de chaves e uma carteira, que aliviou de umas quantas notas, antes de a atirar para o balde do lixo. “Está feito, — Pensou. — está aqui um casaco catita para o “Passarão” e dinheiro para o jantar… bem, ele não precisa de jantar, está bem gordo…
Saiu do beco e entrou numa pequena tasca em frente.
— Que andas aqui a fazer, Xico? — O homem careca e baixo, mas entroncado, materializou-se ao pé dele, assim que se sentou numa das poucas mesas vagas. — Não vens armar confusão, pois não? Tens dinheiro, ou ponho-te já lá fora?
— Eh, senhor Fernando! Que antipatia! — Fingiu-se ofendido e escarneceu de imediato. — Claro que tenho dinheiro, senão, não entraria neste estabelecimento de luxo.
— Bem, vais mesmo para a rua! — Concluiu o outro arregaçando as mangas e pegando-o por um braço.
— Não, espere! Estava a brincar! Tenho dinheiro, veja. — Exibiu as notas. — Só venho comer uma “sandocha” de presunto e beber um “tintito”.
— Já apanhaste algum desprevenido não foi? — Fernando sabia bem quem ele era e não resistiu a comentar, antes de dar meia volta para ir aviar o pedido. Alguns dos clientes olharam o recém chegado com sobranceria.
Duas bem aviadas sandes de presunto e quatro copos de maduro tinto depois, já todos os vestígios de remorsos estavam diluídos. Recostou-se na cadeira de madeira, o mais cómodo que conseguiu, para ver as notícias que passavam no telejornal. Foi então confrontado com os resultados do concurso do Euromilhões. A tremer, assistiu à exibição de cada um dos “seus” números; lá estavam o 13 da sexta em que se encontravam, o 3 e o 5 da sua data de nascimento, o 31 e o 32 da sua idade… estava rico!!!! Febrilmente, começou a vasculhar os bolsos em busca do talão que furtou ao Barbas, cada vez mais ansioso. Até que, de repente, recordou-se! Estava no bolso do casaco que atirou para a fogueira!
— Demónios dos infernos!!!! — Gritou, assustando toda a gente na atarracada taberna. — P… de sorte a minha! Sacanas malditos, deram-me a sorte quando sabiam que não podia ser minha!!!! Só podem estar a gozar comigo!
Continuou as imprecações atirando com tudo o que estava em cima da mesa para o chão e derrubando as cadeiras vazias à sua volta.
— Já sabia que ias acabar por dar problemas, meu animal! — Gritou-lhe Fernando, agarrando-o pelos colarinhos. — Andor daqui para fora imediatamente e se tornas a cá por “as patas”, dou-te uma tareia que nunca mais te levantas!
O pequeno, mas robusto homem, arrastou literalmente Xico para a porta de onde o chutou para a rua.
— Espera, não! — Protestou o vagabundo sem qualquer resultado. — Não percebe? Foi sem querer! Desculpe! — Caiu pesadamente sobre as mãos e sentou-se, desanimado, vendo o tasqueiro regressar ao “covil”. — E o dinheiro que estava na mesa? E o meu casaco?
A resposta foi dada por dois casacos que saíram a voar pela porta, contra a cara do infeliz que agora se levantava.
— Queres o dinheiro, filho da p…? — Gritou-lhe o taberneiro de dentro do estabelecimento. — Vens cá amanhã, quando te passar a borracheira, depois vemos quanto sobra da porcaria toda que partiste aqui!
— Não posso acreditar! — Gemeu Xico, quase a chorar, enquanto vestia o seu casaco e dobrava o que levaria para o “Passarão”. — Que filha da p… de sexta feira 13. Tive a fortuna na mão e deitei-a ao lume… tive algum dinheiro e o cabrão do taberneiro ficou com ele… maldita sexta feira 13…
— Está ali, senhor guarda! — Ouviu uma voz atrás dele. — Foi aquele que me partiu o vidro do carro, ainda tem o meu casaco debaixo do braço!
*** Fim da 2ª parte ***
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