Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
** Publicado no blogue "Memórias e Outras Coisas" http://5l-henrique.blogspot.pt/2016/09/salvo-conto-de-manuel-amaro-mendonca.html
** Incluído no livro "Daqueles Além Marão"
Mariano Bento olhou o céu, de agitadas nuvens escuras, enquanto apressava o passo. Calcorreava o caminho que ia de Alijó a Sanfins, naqueles últimos dias do mês de setembro. Pela arreata, levava a sua mula cor de carvão, a Sedosa, com abundante carregamento de tecidos que lhe encomendaram entregar.
Bem que Acindina, sua mulher, lhe disse várias vezes que não saísse hoje, que se avizinhava tempestade, mas ele podia lá deixar que ela lhe desse ordens? Ainda para mais, à frente do Manel do Telheiro e do Quim de Ribatua? Excomungada mulher, que tem sempre que dar uma opinião, mesmo que ninguém lha pedisse. Ele próprio estava para recusar fazer o trabalho naquele dia… agora estava ali, a meio caminho entre um sítio e o outro, com o céu a fazer caretas cada vez mais medonhas, o vento a uivar e o eco longínquo, mas ameaçador, dos trovões. Ele até nem era ganancioso, embora o dinheiro que ganhará com este transporte lhe faça falta.
Se bem se recordava do trajeto, não estava longe, bastaria passar o maciço do monte da Senhora da Piedade, e Sanfins seria logo a seguir.
Do alto do caminho ascendente, olhou com pena os casebres, a poucas centenas de metros do sopé do monte. Pensou se não deveria reconsiderar e abrigar-se por lá à espera que o tempo melhorasse. As rabanadas de vento, obrigaram-no a segurar o chapéu, cujas abas drapejavam perigosamente.
Já embrenhado na mata de sobreiros e castanheiros, que cobria o imponente monte, o céu parecia escurecer ainda mais e, apesar de serem pouco mais que 17:00h, a luz desvanecia-se e parecia que a noite caíra rapidamente. A Sedosa, quiçá mais inteligente que o dono, a espaços fincava as patas na terra dura do caminho e não se queria mover. Só depois de alguns puxões e a ameaça da chibata, erguida alto sobre os olhos, é que se deixava convencer a dar mais umas passadas.
Também Bento se sentia mais preocupado agora, bem no coração do monte, com os altos ramos a esbracejar furiosamente, para o demover do caminho que tomava. Parou a olhar o céu e uma grossa pinga caiu-lhe sobre a testa. Depois outra e outra. Num instante, uma chuva torrencial abatia-se sem contemplações sobre a dupla, que se arrastava miseravelmente sobre o chão enlameado. Ao longe, escutava-se o toque de um sino empurrado pelo vento. “Deve ser a ermida da senhora da Piedade.” Pensou de si para si enquanto dava nova mirada para trás. Nada se via a não ser o caminho ladeado por árvores que desaparecia no escuro. “Estará muito longe, a ermida? Fica no topo do monte, bem sei, mas com certeza terá um telheiro, ou alguma sorte de abrigo.” Hesitou ao notar um carreiro estreito, ascendente, à sua esquerda. Possivelmente um atalho para a ermida. O monte deve estar cheio deles, para os romeiros e os peregrinos que vêm de toda a região. Entrou no carreiro, puxando a mula atrás de si.
A chuva e o vento não davam tréguas e, para ajudar, as nuvens negras que escureciam o céu, eram iluminadas de tempos a tempos por flashes que se repercutiam em longínquos trovões. A Sedosa estava próximo do pânico absoluto, quando eles desembocaram numa clareira sem saída. O carreiro não levava a lado nenhum, embora o fraco tinir do sino parecesse mais perto. A cavalgadura resfolegava e batia os cascos nervosamente.
A chuva que conseguia passar pelos ramos das árvores, batia com força no rosto, as horas passavam-se e, com as nuvens tão cerradas, em breve seria noite escura. Resolveu voltar ao caminho, de onde não deveria ter saído. Teve que puxar várias vezes a arreata para que o teimoso animal, de olhos esbugalhados e narinas dilatadas, o seguisse. Rápido percebeu que não estava no trilho correto e viu-se numa área com várias paredes em socalcos, possivelmente de um vinha abandonada. Mais à frente, havia um pequeno casebre. Seria o local para se abrigar e se calhar passar a noite.
Como naquele sitio a densidade das árvores era menor, ele conseguiu divisar o teto de nuvens revoltas e foi nesse momento que um enorme raio cruzou o céu. Por longos segundos, tudo ficou iluminado com uma luz branca cegante, logo diluída nas trevas. No mesmo minuto um portentoso trovão estrondeou na montanha, ensurdecendo a dupla. Foi demais para a pobre mula que, com um apavorado coice, projetou Bento num tombo rodopiante, pelas velhas paredes cheias de cotos de vinhas mortas, antes de fugir desenfreada.
Não sabe quanto tempo esteve ali caído, mas despertou, cheio de dores no corpo e na cabeça, com um ruído estranho. Já era noite e a chuva parara. Sentou-se, dolorosamente e escutou uma vez mais o som que o despertara, um rosnar ameaçador; um lobo, com os pelos do dorso eriçados, enfrentava-o a poucos metros. Conseguia ainda divisar o brilho dos olhos de mais uns quantos.
Percebeu que a sua hora chegara. Mesmo que conseguisse salvar-se contra um deles, não tinha qualquer hipótese contra a alcateia. Involuntariamente, vendo os restantes quatro predadores abandonando as sombras, uma prece saiu espontânea dos seus lábios trementes:
- Oh minha Senhora da Piedade, acudi a este pecador nesta hora de aflição, não deixeis que morra aqui nos dentes destas feras.
Ergueu-se cautelosamente, empunhando um bocado de uma videira e procurou colocar-se de forma a dificultar o salto que o mais próximo dos animais preparava.
De repente, a atitude dos lobos pareceu alterar-se e, mesmo o mais próximo, passou de uma posição de ataque para outra de hesitação. Por fim, resolveu virar costas ao seu “jantar” e desatou a fugir, seguido de perto pelo resto da alcateia.
Atónito, Bento não percebia o que estava a acontecer e olhou para trás para descobrir uma jovem e pálida mulher. Os cabelos negros, estavam caídos sobre os ombros, tapados por um longo vestido azul que não deixava ver os pés. Empunhava um varapau com uma mão e uma tocha flamejante na outra. Ele deixou-se cair de joelhos e de rosto em terra. Não podia ser outra, senão a resposta à sua prece!
A mulher segurou-o por um braço e obrigou-o a erguer-se. De perto, era ainda mais bela. Ele tentou balbuciar um aparvalhado agradecimento, mas ela, exibiu um sorriso maravilhoso, que pareceu tornar a noite em dia e pousou um dos seus delicados dedos sobre os seus lábios. Obedientemente, deixou-se guiar até uma gruta formada por um enorme bloco de granito aparentemente suportado por duas contorcidas oliveiras de aspeto centenário. Todas as árvores em redor eram também oliveiras, muito velhas, envoltas em mato e silvas.
A senhora apontou-lhe o fundo da pala e fez um gesto, com as duas mãos debaixo do rosto, indicando que deveria descansar ali. Em seguida, com a tocha que empunhava, acendeu o molho de gravetos à entrada da gruta.
Hesitante, ele obedeceu e contornou a aconchegante fogueira, sentando-se numa fofa capa de folhas secas. Tentou agradecer novamente mas, uma vez mais, aquele sorriso desarmante deixou-o sem fala e ela repetiu o gesto de silêncio completando-o com outro, com a palma da mão voltada para baixo, indicando que esperasse. Depois, voltou-lhe as costas afastando-se silenciosamente ainda com o varapau e a tocha. Ele ficou, imóvel, a ver a luz bruxuleante a desaparecer nas trevas.
O tempo passou-se e ela não voltava. Bento, aquecido pela fogueira, atenuados o medo e as dores da queda, acabou por adormecer na cama de eremita.
Já tinha nascido o sol quando acordou. O céu continuava coberto de nuvens e um nevoeiro denso escapava-se do chão atapetado por séculos de folhas. A fogueira apagara-se e não havia sinal da mulher que o salvara, que não podia ser outra senão a Senhora da Piedade que era venerada na ermida no cume daquela serra.
Ergueu-se, com as pernas trementes, esperando, mas ao mesmo tempo temendo, encontrar a mulher. Percebeu então, aos seus pés, um saco de lona de aspeto bastante usado. Pegou-lhe e abriu-o; tinha um punhado de bolotas de ouro maciço! Ficou estarrecido e pousou o saco onde estava, vendo então que havia um outro em tudo igual, mesmo ao lado. Abriu-o e estava meio de figos, apetitosos figos, que o seu estômago, que não comia nada desde o meio da manhã do dia anterior, reclamou.
Ficou-se sem saber o que fazer, mas, por fim, a fome mandou mais forte. Pegou uma mão cheia de figos, não todos e fechou novamente o saco. Colocou-os no bolso e saiu da gruta a mastigar um deles.
Vagueou em volta mas não viu ninguém, nem vestígios da passagem de quem quer que seja no olival abandonado onde se encontrava. Acabou por achar o caminho de onde se perdera na tarde anterior e tomou a direção que achava ser a de Sanfins. Tinha um aspeto miserável, com o rosto cortado e com sangue seco em vários sítios, nódoas negras e roupas rasgadas. Comeu mais um figo, que pareceu dar-lhe alento e apercebeu-se que estava já a sair da parte mais densa da mata e o caminho iniciava um declive suave no sentido descendente.
Abandonou a proteção das árvores e contemplou o enorme vale que se estendia à sua frente, meio encoberto pelo nevoeiro baixo. Mais ao fundo, no caminho que o levaria à povoação, viu dois homens que traziam pela arreata a sua mula Sedosa.
Quase correu para junto dos homens.
- Oh, Deus seja louvado! - Exclamou, felicíssimo a afagar o focinho do animal. - Encontraram a minha Sedosa! - Muito obrigado aos senhores!
- Deus dê um santo dia a vosmecê! - Saudou o homem mais velho com um sorriso. - Porque a noite não deve ter sido nada boa, da forma como está “embuldrigado”!
- Eu não disse “ca” mula vinha da serra, pai? - Perguntou o mais novo.
- Oh, sim, espantou-se ontem à tarde, com a trovoada! - Explicou Bento. - “Amandou-me” com um coice aqui do lado, que é de admirar não me ter “arrebentado” as costelas!
- Ontem, pela noitinha, demos por ela a pastar lá à porta, percebemos que devia haver alguém em trabalhos, mas a serra não é um bom lugar para se andar à noite. - Continuou o mais novo. - Guardamos para ver o que se passava agora pela manhã.
- Ainda bem que o bom Deus olhou por vosmecê. Andam coisas muito estranhas por esta serra à noite, ninguém gosta de ser apanhado por lá! - Afirmou o mais velho.
- Pois vosmecês não querem saber que ia sendo comido por lobos?
O homem mais velho benzeu-se enquanto o mais novo arregalou os olhos e perguntou:
- Atacaram vosmecê? E morderam-no?
- Não, Deus seja louvado! Pedi ajuda à Senhora da Piedade e não querem saber que uma mulher com um varapau e um archote correu com os lobos?
Os dois estranhos olharam-se com expressões de incredulidade.
- Juro! Não sou nenhum “aldrúbias”, nem “borrachão”! - Exclamou Bento.
- E… apareceu a Nossa Senhora? - O mais velho fez uma careta.
- Pois, quando ela apareceu, também pensei que sim. Era muito bonita, com cabelos compridos e um vestido azul. Mas ela não me deixou ajoelhar e levou-me para uma pala para descansar. Ao fim e ao cabo, “tiranto” aparecer não sei de onde, não fez nenhum milagre, os lobos fugiram foi da tocha que trazia!
- Levou-o para uma pala, diz? - Perguntou o mais novo com uma expressão de desconfiança.
- Sim! - Bento foi convicto. - Achou-me no meio de umas vinhas velhas e levou-me para uma pala ao pé de um olival abandonado.
- A pala da moira! - Exclamaram o velho e o novo em uníssono!
- Moira? Qual moira?
- Como era a mulher que viu vosmecê? - Interrogou o velho.
- Muito branca, cabelos pretos e um vestido comprido azul! Levou-me para uma pala onde tinha um saco de figos.
- Figos! - Riu-se o mais novo. - Não há figueiras umas boas léguas em redor!
- Que demónio… - Bento perdeu a paciência e mergulhou a mão no bolso. - Vejam, ainda aqui trago alguns! - Mas a mão estava preta de carvão e o que ele segurava eram apenas algumas pedras pretas que atirou para o chão. - Que m** é esta?!?
Os dois estranhos soltaram uma gargalhada.
- “Caçoais” de mim?!? Estou a dizer-vos! Foi uma mulher que vive na serra que me ajudou! Ainda há pouco comi um dos figos que estavam na pala!
- Escute, amigo! - O mais velho parou de rir e explicou. - Não vive ninguém nesse monte! Lá para cima, há umas vinhas e olivais muito “intigos” que dizem que eram dum rei mouro que aí vivia com a filha e que foram mortos pelos cristãos. As ruínas do castelo, nunca ninguém as achou, embora se diga que a ermida foi construída nas suas fundações. O que é certo, é que acontecem coisas muito estranhas nesse monte e é por isso que ninguém gosta de andar por lá, se o puder evitar. Contam-se histórias de gente que achou muito ouro, mas nunca conseguiu sair do monte...
- Mas eu...
- … por isso, bom homem, - Continuou o velho. - se está vivo, de saúde e recuperou os seus pertences também, dê Graças a Deus e deixe o que aconteceu entre vosmecê e Ele. Por mim, fico “sastisfeito” que esteja “bô” e que possa seguir a sua vida. Se precisar de alguma coisa, pergunte pelo Quim Moleiro, vivemos mesmo ali à entrada de Sanfins.
E com isto, sem aguardar resposta, deixaram-no com a mula e afastaram-se a conversar um com o outro.
Obrigado… - Bento agradeceu, quase distraidamente, enquanto olhava para o chão, para o local onde atirara as pedras negras, que antes eram figos… e que agora eram bolotas de oiro.
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