segunda-feira, 13 de abril de 2015

Corrécio 1ª parte - Ecos do passado



Estava-se numa manhã solarenga de um quente mês de Setembro. O sol brilhava, inclemente, sobre as dezenas de pessoas que se afadigavam por entre as vinhas e em subidas e descidas dos caminhos.
Era difícil de acreditar que ainda há dois dias chovera copiosamente transformando os trilhos em rios e as terras em lodaçais.
Há já três dias que José dos Santos, conhecido por Zé Corrécio, trabalha nas vindimas das terras dos Mello. Ele e todos quantos possuíam cavalos, tinham trabalho garantido nas vindimas dos grandes proprietários com vinhedos longínquos alcantilados nas encostas do rio.
As vinhas do Douro produzem uvas que dão um vinho único, no entanto, o terreno agreste em que são plantadas, tornam a sua colheita uma tarefa digna de Hércules.
Por entre as vinhas, circulam os vindimadores, que vão enchendo os cestos dos carregadores. Estes transportam os cestos pelos caminhos estreitos e de grandes desníveis até os carregarem em cavalos. A partir daí, cada animal transporta-os, em cargas de quatro, conduzido à rédea até ao caminho onde o aguarda a carroça com as dornas. Com as dornas cheias de uvas, faz-se o transporte final até aos lagares onde serão pisadas para produzir o néctar filho da Natureza e do suor dos Homens.
Zé e o seu cavalo, o inseparável Catita, passavam os dias que durasse a vindima a transportar as uvas desde as vinhas até às carroças.
Em todos esses dias, ele pôde ver a esposa do proprietário, Paula Mello, a descer da aldeia com a sua montada pelo caminho que conduzia à aldeia vizinha.
Nos dois primeiros dias, os outros carregadores estavam muito perto e ela limitou-se a uns “Bons dias meus senhores” e um sorriso dirigido a ele. Ontem porém cruzaram-se a meio da ladeira sem ninguém por perto.
Montada à amazona, a jovem estacou a pequena égua parda ao pé de José que guiava o seu possante macho pela arreata.
Ela vestia uma blusa branca aos folhos e uma saia cinza que lhe chegava aos pés. Na graciosa cabeça tinha um chapéu de abas preso por um lenço que a envolvia como um capuz. Os seus olhos verdes reluziam na sombra do chapéu:
-         Olá José. Como tens andado? - A voz suave e quente causou-lhe um arrepio.
-         Como se pode, minha senhora. - Respondeu sem erguer os olhos.
-         Então, Zé. Porque me tratas assim? Fomos criados juntos... depois de tudo o que se passou entre nós...
Ele ergueu os olhos para ela. Havia um brilho de amor e tristeza ao mesmo tempo. O seu rosto, por barbear, tisnado do sol, exibiu uma expressão de adoração enquanto lhe passavam pela cabeça imagens dispersas do passado comum.
Em crianças, o pai do Zé, João Oliveira, era o feitor da Casa dos Sampaio e enquanto os seus dois irmãos mais velhos trabalhavam já, o que podiam, nos diversos ofícios do Solar, ele corria toda a propriedade e toda a casa sem que ninguém lhe pusesse travão. Estava permanentemente junto com a Paulinha, filha de Luís Sampaio. Se encontrasse um deles, o outro não andava longe.
Assim se passaram os anos até que, quando José tinha cerca de doze anos, aconteceu uma grande discussão entre o pai e o patrão, Luís Sampaio. Na sequencia desta, João Oliveira foi despedido e ele e toda a família foram mandados embora da casa do feitor e tiveram que arranjar outra casa na aldeia. Passaram a viver dos parcos rendimentos das pequenas propriedades herdadas e de um terreno comprado uns anos atrás.
Em plena adolescência, viu-se atirado de uma vida boa onde não faltava nada em casa, para uma subsistência difícil. Ali compreendeu que apesar de brincar com a filha dos Sampaio e comer muitas vezes à mesa da família, não era um deles.
A fartura era pouca em casa e o filho mais velho do casal acabou por se ir embora, emigrado para o Porto, em busca de melhores paragens e vida mais fácil, enquanto o seguinte, mais débil, acaba por falecer de uma pneumonia.
Repentinamente filho único, as coisas pareceram melhorar.
Apesar do pai estar proibido de entrar nas propriedades e o capataz avisado para lhe não dar trabalho, José continuou a encontrar-se com Paula, mais ou menos às escondidas e o romance entre os dois jovens florescia.
Alertado para a “perigosa” situação da sua única filha se apaixonar por um pé-rapado e fazer “algo que não tenha remédio”, Luís Sampaio deu ordens para que a filha não andasse mais sozinha, embora nunca a tivesse proibido de ver ou falar com o rapaz.
Os anos passavam-se e José crescia alto e forte, puxado pelo trabalho duro da terra onde se iniciara tarde mas com afinco.
Paula fazia por estar pelo centro da aldeia ao fim da tarde quando os trabalhadores regressavam a casa no inverno ou após o almoço no verão para beneficiar da hora em que todos faziam a sesta e encontrar-se “por acaso” com o jovem agora com dezasseis anos.
Cansados dos jogos de olhares e as poucas palavras a que estavam limitados, numa tarde de verão, Paula aproveitou a sesta da ama para fugir pela janela do quarto e correr para os braços do seu amor de juventude que a esperava na sombra do pinheiral próximo.
Saciaram a fome de anos, mataram o desejo que nascia desde crianças e viveram minutos que foram horas e horas que eram vidas inteiras... muito ou pouco tempo, foi o suficiente para a fuga ser notada e a ama, em pânico, pôr o solar todo em alvoroço atrás da “menina que tinha fugido de casa”.
Quando Paula regressou tinha o pai e mais dois homens preparados para sair pelos montes à sua procura enquanto a mãe e a ama choravam agarradas uma à outra. Um drama tão grande que ela não percebia, nem mesmo quando a mão do pai lhe acertou no rosto com força pela primeira vez na sua vida.
Zé, felicíssimo por seu turno, deu uma volta larga de forma a aparecer na aldeia pelo lado contrário àquele onde estivera.
O sol estonava as pedras da calçada e as paredes das casas causando ondulações de calor que faziam parecer que tudo era irreal. A rua deserta que levava ao centro da aldeia e à sua casa era um forno que o cozia lentamente sem que ele notasse.
Ao chegar à ultima curva já as vozes masculinas iradas se ouviam acompanhados de choros de mulher.
Correu a ver o que se passava e deparou com Luís Sampaio, de pistola em punho, acompanhado de dois dos seus trabalhadores, a gritar furioso com seu pai enquanto a mãe gritava desesperada à porta de casa.
O jovem correu a postar-se na frente do fidalgo:
-         Senhor Sampaio. - Interpelou assustado, com o rosto afogueado e a transpiração a escorrer por baixo do chapéu braguês preto. - Que aconteceu? Que fez o meu pai a vossa Senhoria?
O olhar baço fixou-se no rapaz, o homem que se tornava a partir da criança que permitira que brincasse em sua casa, com a sua filha. A sua menina!
-         Que fez o teu pai, celerado? Que fez o teu pai, seu bandido, seu corrécio? - O velho fidalgo que tantas vezes vira com ar benevolente estava estava fora de si. - O que ele fez de mal foi parir-te mais a tua mãe! E tu, celerado, traíste a minha confiança!
-         Senhor Luís, por favor. - O pai de José, recuperada um pouco a serenidade tentou passar o rapaz para trás de si. - Tenha calma, vai ver que não se passou nada.
-         Nada! - O patriarca dos Sampaio não estava com vontade de deixar passar o agravo – Nada! Diz ele. Não se passou nada, diz o pai do bandalho!
No mesmo momento empurrou João na direção da casa e bateu com a pistola na cabeça do aterrorizado José atirando-o para os pés dos seus homens.
Os gritos lancinantes da mulher transformaram-se em pedidos desesperados de socorro que não aparecia de lado nenhum. As testemunhas acompanhavam todo o drama por trás das portadas entreabertas e das frinchas das portas.
-         Joaquim, dá umas malhas nesse filho da puta desse corrécio! - Luís Sampaio gritou para um dos seus homens enquanto apontava a pistola para os pais do jovem.
Todos se calaram enquanto o homem chamado Joaquim olhava com ar interrogativo para o jovem que conhecia desde criança e para o seu patrão.
-         Ouviste bem, seu palerma. Dá umas malhas nesse corrécio... - o fidalgo insistiu – Ou preferes que eu lhe dê um tiro e te despeça a seguir?
-         Não, Quim, por amor de Deus, olha que podia ser teu filho! - Maria da Anunciação gritava desesperada não se atrevendo a enfrentar a arma que estava apontada na sua direção.
 Em movimentos muito lentos, o enorme Joaquim ergueu o atordoado adolescente pelos colarinhos e desfechou-lhe uma bofetada com as costas da mão que atirou salpicos de sangue para o lado. O segundo homem virou a cara para o lado.
-         Mais! - Exigiu Sampaio.
Nova bofetada no rosto do jovem que não se movia, desacordado. O choro de Maria transformara-se num uivo continuo misturado com uma prece. João Oliveira, lívido, mantinha-se debaixo da ameaça da arma, de punhos cerrados a esperar uma oportunidade para reagir.
-         Mais! - Tornou.
-         Não! - A voz forte de Joaquim fez-se ouvir.
-         Não?!? - O fidalgo não queria acreditar.
-         Não senhor. As minhas desculpas mas eu não o quero matar e tenho a certeza que vossa senhoria também não quer matar um miúdo.
Luís Sampaio deitou-lhe um olhar de ódio mas depois concordou:
-         Tens razão. O responsável pela desonra da minha filha não é o filho, é o pai que nunca soube respeitar os seus superiores. - Terminou a frase com uma violenta pancada com o cano da pistola na cabeça de João fazendo-o o cair atordoado.
Joaquim pousou o corpo do jovem no chão cuidadosamente enquanto o  outro homem empurrava João que fez o gesto de atacar o fidalgo.
-         Vossa senhoria fala de respeito. Que respeito posso eu ter por um homem que manda bater numa criança? - Replicou João
-         A honra da minha filha e portanto a minha e da minha família, está acima desses preconceitos. Para limpar a minha honra posso até matar-vos a todos. - Firmou o que dizia com um pontapé no jovem desacordado. - E fica-te já aqui uma promessa, João Oliveira, reza para que a minha filha não emprenhe ou acabarei com ele e contigo pessoalmente.
Voltou as costas às vítimas e afastou-se em passos largos seguido de perto pelos dois homens que vigiavam as costas.
Maria da Anunciação e João Oliveira, com a testa a sangrar, correram para o filho que continuava tombado no chão.
Paula Sampaio não engravidou da sua aventura adolescente. O fidalgo aumentou a vigilância sobre a rapariga até conseguir o casamento, dois anos depois, com o médico Henrique de Mello.
José escapou de morte certa com uns dentes a abanar e uma costela partida. Sobreviveu, mas ficou-lhe, gravada a ferros, a alcunha do Zé Corrécio.

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