Estava-se numa manhã
solarenga de um quente mês de Setembro. O sol brilhava, inclemente, sobre as
dezenas de pessoas que se afadigavam por entre as vinhas e em subidas e
descidas dos caminhos.
Era difícil de
acreditar que ainda há dois dias chovera copiosamente transformando os trilhos
em rios e as terras em lodaçais.
Há já três dias que
José dos Santos, conhecido por Zé Corrécio, trabalha nas vindimas das terras
dos Mello. Ele e todos quantos possuíam cavalos, tinham trabalho garantido nas
vindimas dos grandes proprietários com vinhedos longínquos alcantilados nas
encostas do rio.
As vinhas do Douro
produzem uvas que dão um vinho único, no entanto, o terreno agreste em que são
plantadas, tornam a sua colheita uma tarefa digna de Hércules.
Por entre as vinhas,
circulam os vindimadores, que vão enchendo os cestos dos carregadores. Estes
transportam os cestos pelos caminhos estreitos e de grandes desníveis até os
carregarem em cavalos. A partir daí, cada animal transporta-os, em cargas de
quatro, conduzido à rédea até ao caminho onde o aguarda a carroça com as
dornas. Com as dornas cheias de uvas, faz-se o transporte final até aos lagares
onde serão pisadas para produzir o néctar filho da Natureza e do suor dos
Homens.
Zé e o seu cavalo, o
inseparável Catita, passavam os dias que durasse a vindima a transportar as
uvas desde as vinhas até às carroças.
Em todos esses dias,
ele pôde ver a esposa do proprietário, Paula Mello, a descer da aldeia com a
sua montada pelo caminho que conduzia à aldeia vizinha.
Nos dois primeiros
dias, os outros carregadores estavam muito perto e ela limitou-se a uns “Bons
dias meus senhores” e um sorriso dirigido a ele. Ontem porém cruzaram-se a meio
da ladeira sem ninguém por perto.
Montada à amazona, a
jovem estacou a pequena égua parda ao pé de José que guiava o seu possante
macho pela arreata.
Ela vestia uma blusa
branca aos folhos e uma saia cinza que lhe chegava aos pés. Na graciosa cabeça
tinha um chapéu de abas preso por um lenço que a envolvia como um capuz. Os
seus olhos verdes reluziam na sombra do chapéu:
-
Olá José.
Como tens andado? - A voz suave e quente causou-lhe um arrepio.
-
Como se pode,
minha senhora. - Respondeu sem erguer os olhos.
-
Então, Zé.
Porque me tratas assim? Fomos criados juntos... depois de tudo o que se passou
entre nós...
Ele ergueu os olhos
para ela. Havia um brilho de amor e tristeza ao mesmo tempo. O seu rosto, por
barbear, tisnado do sol, exibiu uma expressão de adoração enquanto lhe passavam
pela cabeça imagens dispersas do passado comum.
Em crianças, o pai do
Zé, João Oliveira, era o feitor da Casa dos Sampaio e enquanto os seus dois
irmãos mais velhos trabalhavam já, o que podiam, nos diversos ofícios do Solar,
ele corria toda a propriedade e toda a casa sem que ninguém lhe pusesse travão.
Estava permanentemente junto com a Paulinha, filha de Luís Sampaio. Se
encontrasse um deles, o outro não andava longe.
Assim se passaram os
anos até que, quando José tinha cerca de doze anos, aconteceu uma grande
discussão entre o pai e o patrão, Luís Sampaio. Na sequencia desta, João
Oliveira foi despedido e ele e toda a família foram mandados embora da casa do
feitor e tiveram que arranjar outra casa na aldeia. Passaram a viver dos parcos
rendimentos das pequenas propriedades herdadas e de um terreno comprado uns
anos atrás.
Em plena adolescência,
viu-se atirado de uma vida boa onde não faltava nada em casa, para uma
subsistência difícil. Ali compreendeu que apesar de brincar com a filha dos
Sampaio e comer muitas vezes à mesa da família, não era um deles.
A fartura era pouca em
casa e o filho mais velho do casal acabou por se ir embora, emigrado para o
Porto, em busca de melhores paragens e vida mais fácil, enquanto o seguinte,
mais débil, acaba por falecer de uma pneumonia.
Repentinamente filho
único, as coisas pareceram melhorar.
Apesar do pai estar
proibido de entrar nas propriedades e o capataz avisado para lhe não dar
trabalho, José continuou a encontrar-se com Paula, mais ou menos às escondidas
e o romance entre os dois jovens florescia.
Alertado para a
“perigosa” situação da sua única filha se apaixonar por um pé-rapado e fazer
“algo que não tenha remédio”, Luís Sampaio deu ordens para que a filha não andasse
mais sozinha, embora nunca a tivesse proibido de ver ou falar com o rapaz.
Os anos passavam-se e
José crescia alto e forte, puxado pelo trabalho duro da terra onde se iniciara
tarde mas com afinco.
Paula fazia por estar
pelo centro da aldeia ao fim da tarde quando os trabalhadores regressavam a
casa no inverno ou após o almoço no verão para beneficiar da hora em que todos
faziam a sesta e encontrar-se “por acaso” com o jovem agora com dezasseis anos.
Cansados dos jogos de
olhares e as poucas palavras a que estavam limitados, numa tarde de verão,
Paula aproveitou a sesta da ama para fugir pela janela do quarto e correr para
os braços do seu amor de juventude que a esperava na sombra do pinheiral
próximo.
Saciaram a fome de
anos, mataram o desejo que nascia desde crianças e viveram minutos que foram
horas e horas que eram vidas inteiras... muito ou pouco tempo, foi o suficiente
para a fuga ser notada e a ama, em pânico, pôr o solar todo em alvoroço atrás
da “menina que tinha fugido de casa”.
Quando Paula regressou
tinha o pai e mais dois homens preparados para sair pelos montes à sua procura
enquanto a mãe e a ama choravam agarradas uma à outra. Um drama tão grande que
ela não percebia, nem mesmo quando a mão do pai lhe acertou no rosto com força
pela primeira vez na sua vida.
Zé, felicíssimo por seu
turno, deu uma volta larga de forma a aparecer na aldeia pelo lado contrário
àquele onde estivera.
O sol estonava as
pedras da calçada e as paredes das casas causando ondulações de calor que
faziam parecer que tudo era irreal. A rua deserta que levava ao centro da
aldeia e à sua casa era um forno que o cozia lentamente sem que ele notasse.
Ao chegar à ultima
curva já as vozes masculinas iradas se ouviam acompanhados de choros de mulher.
Correu a ver o que se passava
e deparou com Luís Sampaio, de pistola em punho, acompanhado de dois dos seus
trabalhadores, a gritar furioso com seu pai enquanto a mãe gritava desesperada
à porta de casa.
O jovem correu a
postar-se na frente do fidalgo:
-
Senhor
Sampaio. - Interpelou assustado, com o rosto afogueado e a transpiração a
escorrer por baixo do chapéu braguês preto. - Que aconteceu? Que fez o meu pai
a vossa Senhoria?
O olhar baço fixou-se
no rapaz, o homem que se tornava a partir da criança que permitira que
brincasse em sua casa, com a sua filha. A sua menina!
-
Que fez o teu
pai, celerado? Que fez o teu pai, seu bandido, seu corrécio? - O velho fidalgo
que tantas vezes vira com ar benevolente estava estava fora de si. - O que ele
fez de mal foi parir-te mais a tua mãe! E tu, celerado, traíste a minha
confiança!
-
Senhor Luís,
por favor. - O pai de José, recuperada um pouco a serenidade tentou passar o
rapaz para trás de si. - Tenha calma, vai ver que não se passou nada.
-
Nada! - O
patriarca dos Sampaio não estava com vontade de deixar passar o agravo – Nada!
Diz ele. Não se passou nada, diz o pai do bandalho!
No mesmo momento
empurrou João na direção da casa e bateu com a pistola na cabeça do
aterrorizado José atirando-o para os pés dos seus homens.
Os gritos lancinantes
da mulher transformaram-se em pedidos desesperados de socorro que não aparecia
de lado nenhum. As testemunhas acompanhavam todo o drama por trás das portadas
entreabertas e das frinchas das portas.
-
Joaquim, dá
umas malhas nesse filho da puta desse corrécio! - Luís Sampaio gritou para um
dos seus homens enquanto apontava a pistola para os pais do jovem.
Todos se calaram
enquanto o homem chamado Joaquim olhava com ar interrogativo para o jovem que
conhecia desde criança e para o seu patrão.
-
Ouviste bem,
seu palerma. Dá umas malhas nesse corrécio... - o fidalgo insistiu – Ou
preferes que eu lhe dê um tiro e te despeça a seguir?
-
Não, Quim,
por amor de Deus, olha que podia ser teu filho! - Maria da Anunciação gritava
desesperada não se atrevendo a enfrentar a arma que estava apontada na sua
direção.
Em movimentos muito lentos, o enorme Joaquim
ergueu o atordoado adolescente pelos colarinhos e desfechou-lhe uma bofetada
com as costas da mão que atirou salpicos de sangue para o lado. O segundo homem
virou a cara para o lado.
-
Mais! -
Exigiu Sampaio.
Nova bofetada no rosto
do jovem que não se movia, desacordado. O choro de Maria transformara-se num
uivo continuo misturado com uma prece. João Oliveira, lívido, mantinha-se
debaixo da ameaça da arma, de punhos cerrados a esperar uma oportunidade para
reagir.
-
Mais! -
Tornou.
-
Não! - A voz
forte de Joaquim fez-se ouvir.
-
Não?!? - O
fidalgo não queria acreditar.
-
Não senhor.
As minhas desculpas mas eu não o quero matar e tenho a certeza que vossa
senhoria também não quer matar um miúdo.
Luís Sampaio deitou-lhe
um olhar de ódio mas depois concordou:
-
Tens razão. O
responsável pela desonra da minha filha não é o filho, é o pai que nunca soube
respeitar os seus superiores. - Terminou a frase com uma violenta pancada com o
cano da pistola na cabeça de João fazendo-o o cair atordoado.
Joaquim pousou o corpo
do jovem no chão cuidadosamente enquanto o
outro homem empurrava João que fez o gesto de atacar o fidalgo.
-
Vossa
senhoria fala de respeito. Que respeito posso eu ter por um homem que manda
bater numa criança? - Replicou João
-
A honra da
minha filha e portanto a minha e da minha família, está acima desses
preconceitos. Para limpar a minha honra posso até matar-vos a todos. - Firmou o
que dizia com um pontapé no jovem desacordado. - E fica-te já aqui uma
promessa, João Oliveira, reza para que a minha filha não emprenhe ou acabarei
com ele e contigo pessoalmente.
Voltou as costas às
vítimas e afastou-se em passos largos seguido de perto pelos dois homens que
vigiavam as costas.
Maria da Anunciação e
João Oliveira, com a testa a sangrar, correram para o filho que continuava
tombado no chão.
Paula Sampaio não
engravidou da sua aventura adolescente. O fidalgo aumentou a vigilância sobre a
rapariga até conseguir o casamento, dois anos depois, com o médico Henrique de
Mello.
José escapou de morte certa com uns dentes a
abanar e uma costela partida. Sobreviveu, mas ficou-lhe, gravada a ferros, a
alcunha do Zé Corrécio.
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