Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Samael resolveu ficar invisível e explorar cada pedaço do jardim escondido pelo Criador. Cada dia que passava, sentia-se mais fascinado pela fantástica Obra que havia sido feita. Conseguia perceber, pelos seus olhos divinos, a graciosidade, a mestria do intrincado das Palavras que terão sido usadas e reconheceu o poder e sabedoria do Criador.
Ocasionalmente, tornava a revelar-se a Lilian e deixava-se bombardear pelas perguntas da inocente criatura, cada dia mais fascinado pela sua perfeição e pelo encanto da voz e da aparência. Ao fim de algum tempo, porém, aborrecia-se do interrogatório e partia intempestivamente, como da primeira vez. Voltava no dia seguinte, assim que a encontrasse sozinha.
Desde o primeiro dia, Samael solicitou-lhe que não mencionasse os seus encontros a Adam ou ao Criador; era o primeiro pecado cometido por omissão no paraíso. Ele próprio, não revelara aos seus irmãos que descobrira o esconderijo. Primeiro, fizera-o porque pretendia exibir-se junto deles por conseguir desvendar o segredo sem ajuda, depois, porque queria saber mais, antes que tudo fosse destruído, finalmente, sentia-se culpado pela ocultação e pelo carinho que nutria pela criatura.
Se Miguel ou Rafael soubessem o que ele descobrira, em pouco tempo todos os outros acabariam por saber. Samael enfrentaria forte resistência aos seus intentos e seria rapidamente denunciado. Havia muitos, como aqueles dois, que defendiam as Intenções do Criador cegamente, enquanto outros não teriam descanso enquanto não matassem as criaturas e abrissem o Jardim do Éden a todas as outras. Nem queria imaginar o que faria Lúcifer com esta informação…
Claro, que o Criador não permitiria que o Seu segredo fosse divulgado ou o Seu trabalho destruído…, mas, para isso, era preciso que soubesse o que acontecia. Samael teria de esforçar-se enormemente para não se denunciar, pois, se fosse confrontado com uma pergunta direta, não conseguiria mentir, como qualquer entidade angelical.
Os lamentos de Lilian sucediam-se à medida que sabia mais sobre o mundo que não conhecia. Ela ridicularizava Adam, que se divertia a escutar o falar limitado dos pássaros ou das cabras e até a observar as evoluções que uma folha fazia ao cair das árvores. Isso era muito pouco para ela, queria conhecer mais. A parte pior, porém, era quando ele queria que ela se lhe submetesse e ficasse por baixo e quieta, durante as relações sexuais, que só aconteciam quando ele desejava.
O anjo percebeu, ali, a possibilidade de minar o trabalho do Criador; aumentando o descontentamento da mulher, traria a infelicidade e o desequilíbrio à relação. Como já estava fragilizada, bastaria uma pequena ajuda.
Os contactos com Lilian tornaram-se mais frequentes e prolongados. Quando o tema “das coisas do mundo” se esgotava, Samael ensinava-lhe as palavras para fazer surgir fogo ou água, ou para provocar um pequeno remoinho de vento que erga uma pilha com os galhos caídos na clareira. Por fim, ensinou-lhe a palavra que lhe permitia sair do jardim e ver com os seus próprios olhos, sempre acompanhada, como era o mundo para lá do lugar onde vivia.
Ela não ficou muito impressionada com o que viu do exterior. Lá fora, havia casas e roupas, mas também deserto, calor imenso e falta de água, alguns animais eram perigosos e nenhum falava ou dava mostras de a perceber! O jardim era muito mais bonito e organizado; tudo era calma, havia muita sombra e água e os animais eram pacíficos e faladores. Aqui não precisava de usar roupas, no entanto, sentia-se amarrada no jardim e parecia-lhe que se respirava melhor fora, mesmo no ar seco do deserto.
Um dia, durante uma das longas conversas, foi inevitável, as bocas de ambos tocaram-se e Lilian conheceu, naquela tarde, o verdadeiro significado de clímax e êxtase. Foi a primeira traição do paraíso…, mas repetiu-se muitas vezes a partir daí.
Claro que, se o sexo de Lilian com Adam já era muitas vezes uma situação tensa, por recusa dela em fazê-lo ou submeter-se aos desejos dele, a partir daquela altura piorou. A mulher recusava ser possuída e a harmonia do paraíso estava ameaçada; quando estavam juntos discutiam e, quando separados, ficavam amuados e sombrios.
Adam solicitou ajuda ao Criador e, juntos, questionaram Lilian, com o Pai tentando demonstrar doçura e compreensão, ao contrário do companheiro. Ela mostrou-se obstinada e recusou-se a responder a algumas perguntas, para estupefação do Criador, que começava a ficar altamente desconfiado de que havia elementos estranhos na equação.
Por fim, o Pai confrontou-a com uma pergunta direta: — Diz-me, minha filha, falaste com mais alguém além de nós e os animais do jardim?
Lilian abriu muito os olhos. Desprezava Adam, pois já percebera as suas limitações, mas tinha medo da reação do Criador. Hesitante, com o rosto muito corado e os braços estendidos, como que afastando os interrogadores, deu uns passos atrás, sem saber o que fazer. Balbuciou, no entanto, um tímido “Não.” Foi a primeira mentira do paraíso.
O Pai sorriu tristemente e repetiu a pergunta.
Para espanto dos dois, Lilian proferiu a palavra que Samael lhe ensinara e evaporou-se em pleno ar.
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