Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
A extensa nave da igreja encontrava-se em semipenumbra. Apenas a luz do luar se coava preguiçosamente através da claraboia setecentista, muitos metros acima. Todo o espaço estava repleto de sombras e as imagens dos santos e mártires, imobilizadas no seu mutismo eterno, eram testemunhas e guardiões do silêncio.
O padre Ramiro, rondando os sessenta anos, assomou à porta
que conduzia à sacristia, antes de se mostrar completamente. Envergava um
pijama e roupão e calçava uma chinelas de tecido, surradas. Estava já deitado e
dormia a sono solto, quando uma urgência, que não sabia bem explicar, o fez
levantar-se, deixar a cama e vir até à igreja.
Na segunda fila de assentos, divisou o vulto ajoelhado, rosto
escondido entre mãos implorantes. O silêncio intimidante, impunha-se
pesadamente.
Após um minuto de hesitação, o sacerdote soprou uma pequena
coluna de vapor e apertou mais o roupão, para se defender do ar gelado que
repousava no templo. Arrastou as chinelas até junto do vulto e, com um profundo
suspiro, ajoelhou a seu lado, imitando a pose implorante, frente ao altar.
O estranho levantou a cabeça ao perceber o recém-chegado. Aparentava
uns trinta anos e tinha o cabelo comprido e desgrenhado e a barba negra e
crescida, quase tapando o rosto pálido e macilento, onde brilhavam dois olhos
pequenos, cor de carvão.
— Também tem pecados a expiar, padre? — Grasnou o homem,
ecoando na nave.
Surpreendido, o sacerdote fitou o inusitado companheiro.
— Todos somos pecadores, meu filho. — Esclareceu-o ele. —
Todos cometemos pecados, uns mais graves que outros. O importante, é a forma
como lidamos com eles. — O estranho olhou-o pensativamente, avaliando-o e
sopesando as suas palavras, enquanto o padre continuava. — Temos de reconhecer
que erramos e devemos pedir perdão a Deus por eles. Teremos de prometer que
tudo faremos para não voltar a pecar.
— E se o pecado não tiver perdão? — O outro insistiu.
— Todos os pecados têm perdão! — O sacerdote foi perentório.
— Há pecados mortais, é certo, mas a misericórdia de Deus é infinita e até o
mais vil dos pecadores, terá uma oportunidade, se se arrepender do fundo do
coração.
— O meu pecado não pode nunca ser perdoado. — O homem fez um
esgar amargo.
— Já disse, Filipe, que Deus pode perdoar todos os pecados. —
O padre Ramiro reafirmou.
— Como sabe o meu nome? — O estranho estremeceu, muito
sério.
— Conheço-te há muitos anos… — Uma lágrima refulgiu nos
olhos do sacerdote. — Não me reconheces mesmo?
O chamado Filipe pareceu incomodado com a pergunta e
levantou-se, dando uma volta sobre si mesmo, hesitante. Passou a mão pelo
cabelo e cofiou a barba fitando o interlocutor com intensidade. Por uns
segundos, um pesado manto de silêncio pesou entre os dois; um, em pé, recurvado
e o outro de joelhos no suporte do banco da igreja.
— Devia reconhecê-lo? — A voz do estranho tremia, como que
acometido do frio, que há muito mordia o padre.
— Não só a mim, como todo este templo, onde estiveste tantas
vezes… — Acusou o ministro da igreja.
— Sim, venho aqui de vez em quando… pedir perdão pelos meus
pecados… — Filipe arrastava a voz, puxando pela memória.
— E sabes quais foram os teus pecados? — Ramiro sentou-se,
observando-o. — Recordas o que tanto precisas que te seja perdoado, que te não
deixa descansar e te traz aqui amiúde? Tiveste sequer a noção de quantas vezes
me ajoelhei, como hoje, ao teu lado a rezar? Em todas essas vezes nunca me falaste,
porém, talvez não estivesses preparado.
O estranho parecia cada vez mais perturbado e acenava
negativamente com a cabeça enquanto balbuciava: “Não me lembro…”
— Há quase quarenta anos, entraste nesta igreja com uma
mulher sem vida nos braços. — Lembrou o sacerdote. — A mulher que nós amávamos!
— Armanda! — Filipe apertou as mãos contra a boca, o rosto
retorcido numa máscara de dor. — Fui eu! Oh, meu amor, fui eu quem a matou! —
Depois, num súbito reconhecimento, fitou padre nos olhos. — Ramiro? És tu,
Ramiro? Estás tão velho!
— Passaram-se muitos anos, querido irmão. — As lágrimas
assomaram com força aos olhos do ancião.
— Perdoa-me, meu irmão! — Implorou o outro atirando-se ao
chão, quase junto aos pés do sacerdote.
— Eu é que te peço perdão, por ter permitido que ela se
aproximasse de mim, depois de estar casada contigo. Peço perdão a Deus todos os
dias, por ser o causador de toda desgraça que nos atingiu. — O padre
enclavinhou as mãos numa oração. — Amaldiçoo-me eternamente por me ter deixado possuir
por aqueles belos olhos, durante as férias do seminário em tua casa.
— Eu não podia suportar! — Gemeu Filipe, caminhando até ao
meio da igreja, no espaço entre os bancos e ajoelhando no tabuado, em pranto. —
Foi aqui que a deitei, depois de a ter estrangulado no carro! Eu não queria
matá-la, mas não podia suportar que a mulher que eu mais amava no mundo me
trocasse por outro homem… ainda que fosse o meu próprio irmão!
Com visível esforço, Ramiro aproximou-se e ajoelhou no chão,
junto do outro, os olhos cheios de lágrimas: “Perdoa-me!”, gemeu.
Os dois, ajoelhados no soalho, não passavam de sombras na
vastidão da nave do templo.
— Achas que Deus me perdoa? — Ao fim de uns segundos, Filipe
estendeu as mãos para o padre. — Achas que ela me pode alguma vez perdoar? E tu,
meu irmão, perdoas-me?
— Alguma vez Lhe deste essa possibilidade? A qualquer um de
nós? — O sacerdote rouquejou. — A tua solução foi atirares-te ao rio e
desaparecer para sempre. O teu espírito vagueou sempre por aqui, incapaz de
assumir o mal que fizeste, escondido do julgamento, assim como de qualquer
forma de perdão.
Aparentando agora ter mais quarenta anos às costas, Filipe
ergueu-se a custo, com os olhos rasos de lágrimas fitos no chão onde em tempos repousou
a mulher ambos amaram. Soluçou audivelmente e pousou a mão direita sobre o
coração.
Ramiro chorava com ele, mas engoliu em seco e o seu rosto
tornou-se uma máscara cheia de majestade e levantou-se apoiando-se nas costas
do banco mais próximo. Ergueu os dedos indicador e médio da mão direita, numa
autoridade que o seu cargo lhe permitia, enquanto sentenciava “Ego te
absolvo, in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen”.
Filipe, atordoado, cambaleou na direção da porta que levava
ao exterior da igreja e que abriu de par em par. Uma onda de luz imensa ofuscou
todo o espaço, rebrilhando no ouro dos altares, iluminando os rostos tristes das
imagens neles contidas, ressaltando nos cristais dos candelabros e nos vitrais
das janelas, como uma onda de esperança que Ramiro, tombando de joelhos no meio
do templo, recebeu de braços abertos.
Foi de manhã bem cedo, que a equipa de limpeza encontrou o
velho abade da freguesia, tombado no soalho frente ao altar. Aparentemente,
sofrera um ataque fulminante que lhe levara a vida, antes mesmo de se aperceber
do que estava a acontecer, pois o seu rosto exibia um sorriso, sinal de que
partira em paz.
2 comments:
Parabéns por mais um belo texto! Perturbador enquanto a culpa pesa sobre a alma e, ao mesmo tempo, reconfortante. Pois, a arte da reconciliação e do perdão, demore o tempo que demorar, não é para qualquer um.
Este conto vagueia entre a realidade e o sobrenatural, fazendo do pecado um mal universal, nomeando o arrependimento e o perdão de Deus como caminho para uma nova vida. A vida de pecado que ensombra a seriedade de qualquer um, desde que crente na doutrina do erro, do castigo, do sofrimento. Deus é mais caminho que procura, é mais o que somos do que aquilo que queremos, e o que somos depende da nossa consciência perante o mundo, nos seus valores humanos e incorpóreos. Gosto deste género de narrativa, desta abordagem ao sobrenatural, como uma viagem ao interior do medo mas também da esperança.
A parte menos agradável deste conto é quando tu chamas de ancião a um homem de 60 anos (sessenta, se-ssen-ta, se...ssen...ta...!!!). Ora balhamedeus! Já sou ancião há uns anos, e não sabia! :)
Parabéns, Manuel Amaro, um belo conto com a tua chancela.
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