sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

O Encontro

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.




Acordou com o calor imenso que sentia.
Estava completamente encharcado em transpiração e os lençóis, amarrotados aos pés da cama, mais pareciam trapos acabados de limpar a loiça.
-          Que coisa incrível – gemeu António – Terceira noite sem dormir com este calor infernal.
Desceu da cama, esgotado, e encaminhou-se para a janela apenas vestido com os boxeurs verde tropa.
Ainda era noite e a pequena praça em frente à decrépita pensão da vila estava completamente deserta. À luz da lua cheia, papeis dispersos brincavam com o vento aos pulos na calçada.
Abriu a janela procurando um pouco de frescura e recebeu em pleno rosto a aragem morna daquela noite alentejana de Setembro.
-          Mais uma noite. – Concluiu – Amanhã é Sexta e já irei embora deste calor dos infernos.
Há perto de duas semanas que circulava de terra em terra a instalar o novo sistema informático em cada uma das localizações da sua empresa e estava a começar a ficar farto. Não era definitivamente o tipo de trabalho que lhe agradava – Afinal, sou um técnico de informática ou um caixeiro-viajante? – Costumava lamentar-se.
Esta vilazita representava o final de uma etapa da sua ronda que cumpria já mais de dois mil quilómetros percorridos... – Pff, venham cá dizer-me que o nosso país é pequeno.
Tornou a fechar o vidro e encaminhou-se para o duche enquanto resmungava de si para si repetindo a ladainha da dona da pensão:
- O ar condicionado dos alentejanos são as portas e as janelas fechadas, se assim as mantiverem, o calor não entra no verão nem sai no Inverno.
Sentiu-se um pouco mais fresco após o banho e, após secar-se, envergou uma t-shirt amarela, uns jeans e uns pequenos sapatos de lona.
Desceu preguiçosamente as escadas desertas da estalagem adormecida.
Abandonou o edifício e caminhou na desolada calçada envolvido na brisa que não refrescava.
- Este é o Suão. O vento do deserto. – Concluiu para os seus botões. – Traz com ele os ares de África, onde repousam as saudades, as expectativas e as almas dos grandes heróis portugueses… Eh, que românticos que nós estamos hoje. – Resmungou enquanto vagueava pelas ruas, sem destino.
Um gato miou do cimo de um telhado lamentando-se, como ele, de estar sozinho num mundo esquecido. Um cão passou atravessando a rua apressado para um qualquer dos afazeres que os cães têm quando andam assim apressados.
- Parece impossível que consigam suportar o calor que está dentro das habitações, não se vê vivalma. – Ia apreciando a arquitetura das janelas e das frontarias das casas.
Havia edifícios para todos os gostos. Desde a casa de aspeto vetusto com fachadas de cantaria bem lavrada, até à típica alentejana com faixa de rodapé azul ou castanho a contrastar com o imaculado branco. Todas elas guardadas pela sombra protetora do castelo imponente no alto do morro.
No seu deambular chegou à porta do cemitério: Uma enorme porta de ferro com mais de 3 metros de altura encimada por uma inscrição em latim agradecendo a um qualquer nobre do século dezanove a construção do local.
A imensa entrada apresentava sinais de decrepitude; uma das laterais ligeiramente fora dos gonzos, vestígios de ferrugem aqui e além…
Empurrou-a. Com um lamento que ecoou em toda a rua, a vetusta porta obedeceu franqueando-lhe a passagem.
O calor abafado que se fazia sentir provocava um estranho efeito de condensação por entre a floresta de mármore e calcário que se adivinhava envolta num espesso caldo de algodão.
Não era o sítio mais alegre para se passear, mas parecia provir dali uma frescura que contrariava as emanações das paredes e das calçadas. Havia uma sensação de tempo suspenso naquele nevoeiro despropositado que já sentira por diversas vezes nos cemitérios e nas igrejas.
Afastando a névoa, caminhou por entre as lápides experimentando um prazer quase mórbido em ler os epitáfios que os que ficam dedicam aos que foram…
“José Ferreira Telles”, N-13-06-831, F- 25-05-897, “Pai do Céu, velai por vosso filho, como ele velou pelos dele”
“Ermelinda da Mata”, N- 01-02-907, F- 17-01-938, “Cedo Levaste Senhor o amor razão da minha vida”
O típico “Eterna saudade da mulher e filhos” e alguns bem originais: “Numa madrugada Deus contigo nos abençoou. Numa fatídica noite um anjo consigo te levou.”
Ausente, embrenhou-se cada vez mais na cidade dos que não acordam, focando com dificuldade os dizeres das lápides mal iluminados por uma lua agora mais ténue.
Foi então que ouviu o fraco soluçar… Estacou e olhou em volta. A tímida névoa parecia ter-se adensado e passado de bruma a nevoeiro baixo e mais cerrado.
Os soluços continuavam, baixinho, quase como um miar suave.
Seguiu o som e deparou com o Querubim de calcário, com uma asa partida, de joelhos, na pose de quem chora.
Um arrepio percorreu-o de alto abaixo enquanto o cabelo da nuca se eriçava de pavor.
De novo o soluçar. Estava alguém para além da estátua que o assustara. Expirou lentamente apercebendo-se que tinha ficado sem respirar.
Aproximou-se passo a passo da figura frágil de negro debruçada numa laje. Sobre ela dominava, quase em tamanho natural, um Serafim em toda a sua pujança, de armadura Romana empunhando a espada em chamas ao longo da perna direita.
Parou junto da mulher, magra e pequena que suspendeu o pranto sem contudo levantar o rosto. Pressentira-o mas aguardava o seu movimento.
- Boa noite. – A voz saiu-lhe como um grasnido em conjunto com uma baforada de vapor.
Ela levantou o rosto para ele.
O cabelo negro ondulante emoldurava um rosto redondo decorado com duas estrelas por olhos, pequenos e vivos e um pequeno botão de rosa fogo por boca. O nariz, pequeno e afilado, complementava a obra de arte que Deus criara.
Pequenas manchas nas faces de mármore marcavam o traçado das lágrimas como pequenas pérolas que escorriam para o queixo pequeno e bem torneado.
O olhar que lhe devolveu tinha um misto de indignação e curiosidade:
- Que quer? – Brusquidão numa voz sussurrada.
- Nada, peço que me perdoe – Desculpou-se – Apenas pretendia saber se precisava de ajuda.
- E que pode fazer para me ajudar? – Ergueu-se revelando perto de um metro e sessenta bem torneado e cheio de atitude.
Um sorriso trocista e desafiador surgiu-lhe nos lábios perante o silêncio dele.
- Eh? – Insistiu – Vamos, diga como me pode ajudar.
- Para podermos ajudar uma pessoa temos de saber o que a atormenta, ou pelo menos o que necessita. – Recuperou a voz e a lucidez após um olhar demorado àquela pequena beleza morena que cruzava os braços numa atitude de desafio.
Ela mirou-o de alto a baixo apreciando o pouco à-vontade que lhe causava e que ele mal conseguia disfarçar:
- Não lhe pedi nada. – Sentenciou – Se quer ouvir histórias, arranje quem lhas leia, se não tem que fazer, vá procurar noutro lado.
- Assim farei.
Com o orgulho ferido, fez uma meia volta dramaticamente marcial e começou a afastar-se atirando para trás um “– Tenha uma boa noite.”
- Espere! – A voz dela ecoou, metálica.
Ele estacou mas não se voltou, aguardando.
- Espere, não vá. Peço que me desculpe. – Agora era toda suavidade.
António voltou-se lentamente. Estava sentada na campa onde estava debruçada há pouco, de perna cruzada, exibindo-a, bem torneada, um pouco acima do joelho.
A respiração dele soltava uma pequena nuvem de vapor a cada expiração… Como baixara a temperatura tão de repente.
- Estou muito nervosa – Recomeçou – Não sei o que digo, além de que não o conheço de lado nenhum, é normal que suspeite das suas intenções…
- Ok. Tentou ele. Vamos recomeçar. Peço que me desculpe mas não pude evitar de a ouvir chorar e como um bom idiota intrometido que sou, vim ver se necessitava de ajuda.
O seu sorriso foi como se a noite se tornasse dia.
- Obrigada. Eu não sou muito boa a lidar com pessoas, tenho pouco contacto e como tal pouco tato. Eu é que peço desculpas.
Sentiu-se a atmosfera a aliviar e embora o ar tivesse arrefecido imenso, havia calor nas palavras dela.
- Chamo-me António. – Instigou ele dando um passo na direção dela que se ergueu.
- Eu sou a Susana. – De novo o sorriso quente.
- Mas claro, “A Susana”. - Brincou ele. - Não uma Susana qualquer. Muito prazer. – A mão estendida amigavelmente ficou sem retribuição durante uns segundos, antes que ela se convencesse a aperta-la.
Por fim uma mão pequena e gelada tocou a dele. De leve e rapidamente.
- Que mão tão fria. Parece incrível como este local é frio enquanto lá fora há tanto calor.
- Como queres encontrar calor entre aqueles que o perderam há muito? – O rosto sério era de uma beleza clássica. – A morte é fria e negra.
Também António assumiu um rosto sério. – Mas veio procurar consolo junto dela.
- Não vim procurar consolo, estou para além de qualquer consolo. Aqui vai havendo alguma paz, entre aqueles que conseguem repousar.
- Com isto estou a esquecer a minha atitude cavalheiresca e não a estou a ajudar em nada, apenas a conversar.
As palavras foram bem recebidas pois o belo sorriso retornou. – Estar a conversar consigo já é uma boa ajuda. Há muito tempo que não falo com ninguém… Que valha a pena.
- Por vezes as coisas parecem melhores depois de falarmos sobre elas… Não parecem tão negras e muitas vezes acabamos por rir da nossa atitude. – Tentou o jovem sentando-se na laje onde ela se sentara anteriormente.
- Acredite que o meu… Chamemos-lhe problema, não é para rir e… Algo definitivo.
Sentou-se ao lado dele.
- Mas trata-se de algo que um estranho possa ajudar?
- Não. De todo.
- Assim, sem mais.
- Sem mais. E preferia não falar do assunto.
- Como queira.
Instalou-se um silêncio incómodo, de súbito interrompido por Susana. - Não fique aborrecido. Não quero parecer malcriada, mas incomoda-me falar do assunto.
- Podemos falar de outras coisas… Do tempo?
Ela devolveu-lhe um olhar crítico. Mesmo assim a beleza dela era impressionante.
- Pronto, está bem. Vamos falar da sua terra! É muito bonita, adoro estas casas… E o castelo? Qualquer coisa de impressionante. – A expressão de admiração dele provocou uma gargalhada curta mas que lhe soou como a mais bela melodia.
- Pare! Não seja assim, o castelo está em cacos e esta vila é terrivelmente aborrecida. Além de que esta não é a minha terra.
- Não?
- Não. Eu nasci e vivi longe daqui. Ao pé do mar. Figueira da Foz.
- Maravilha. Eu sou de Aveiro.
- Como tenho saudades do mar…
Por momentos o seu rosto pensativo e silencioso foi como uma pintura de um anjo de um qualquer mestre italiano.
- Também gosto muito do mar. Por vezes, mesmo no Inverno, passo horas a caminhar ao longo do areal. - Ele aproveitou
O rosto ausente pareceu despertar, como se só agora se apercebesse da sua presença, para logo se tornar absorto outra vez: - Também eu caminhei muitas vezes junto ao mar mas agora… Desde que casei e vim para aqui…
Ela estava a abrir-se e ele optou pelo silêncio, escutando:
- No início estava tudo bem e nós gozávamos a vida e vivíamos um para o outro. Mas um dia convenceu-me a virmos para cá cuidar da mãe, sozinha e doente.
O rosto belo estava absorto como se revivesse cada um daqueles momentos passados uma vez mais.
- Também aqui tudo pareceu correr bem durante algum tempo até que a velha, lenta, mas firmemente começou a “envenená-lo” contra mim. Fazia-lhe queixas, a maior parte das vezes infundadas ou maldosamente interpretadas.
Uma lágrima teimosa correu ficando a tremeluzir no queixo como uma pedra preciosa.
- Conseguia traduzir os erros que eu cometia inocentemente em maquiavélicos atos destinados a humilha-la ou a fazer troça dele, do filho dela, meu marido. Pouco a pouco a minha vida foi-se tornando num inferno onde eu era incessantemente castigada sem culpa.
Ele pousou o braço sobre os ombros dela e apertou-a sentindo o seu corpo gelado de encontro ao seu.
Susana ergueu-se soltando-se nervosamente do abraço.
Ficou parada olhando-o nos olhos. Ele manteve-se sentado, com a respiração pausada transformada em colunas de vapor…
- Desculpe-me. – O sorriso dela era uma desculpa encantadora – Vou passar a noite a pedir desculpas.
Ele retribuiu o sorriso e ergueu-se também:
- Você é que tem que me desculpar. Não a conheço de lado nenhum e já estava a abraça-la. No entanto acredite que se tratava apenas de a acalmar um pouco. Não se tornará a repetir.
- Não, a sério. Eu deveria ter entendido e não reagido desta maneira…
- Não falemos mais do assunto. Já nos desculpamos um ao outro.
Um silêncio comprometido ocupou o exíguo espaço entre ambos enquanto os olhares se cruzavam intensamente.
- Voltamos a sentar nesta pedra gélida? – Foi a sugestão dele que ela aceitou sem responder.
Novamente ao lado um do outro, António sentia o frio penetrante que vinha da laje e perguntava-se como conseguia ela aguentar aquele frio e estar assim gelada.
- Eu não vou aguentar esta vida muito mais tempo. – Susana concluiu ao fim de algum tempo de meditação. – Vou ter que fazer alguma coisa antes que ela dê conta de mim.
- Já tentou falar com ele?
- Sim. Acabamos sempre a discutir. Ele acha que eu só quero pô-lo contra ela e que quero realmente humilha-la… Por várias vezes a discussão foi tão violenta que chegou a bater-me.
- Não é possível que ele tenha assim uma confiança tão cega na mãe que não consiga perceber que as coisas não podem ser todas como lhe são contadas. Nem ao menos o beneficio da dúvida?
- Não, nada! Obediência cega e confiança absoluta.
Ele acariciou lentamente o rosto dela enquanto limpava outra pérola que corria livremente pela face:
- Como há homens que não sabem aproveitar o amor de um anjo do céu… – O sorriso triste dela era como se um raio de sol o atingisse – Tivesse eu a sorte de ter o amor de uma mulher maravilhosa como você.
- O destino não é justo. Também eu sinto como deveria ser doce a vida ao seu lado, embalada no seu carinho…
De repente o rosto de Susana escureceu numa onda de preocupação e sobressalto enquanto olhava atentamente para a parte mais distante do cemitério.
- Que foi? – Preocupação nele.
- Já deram pela minha falta. Chamaram-me, tenho de ir!
- Espera! – Segurou-lhe o braço – Voltas ainda?
- Não. Não posso.
- Amanhã. A esta hora?
- Não sei. – Ela estava a ficar ansiosa. – Não sei se posso. Tenho de ir, deixa-me.
Soltou-se com um gesto brusco e começou a correr.
- Onde moras? – Ele gritou com as mãos em concha.
A jovem parou e olhou-o indecisa.
Por fim ergueu um braço e indicou o vulto de uma casa encostada ao muro do cemitério onde uma janela tinha a luz acesa.
- Amanhã? – Insistiu ele.
- Veremos! – Gritou ainda enquanto recomeçava a correr.
António percorreu o caminho de volta à pensão com uma alegria imensa enquanto o calor da noite se fazia sentir novamente a cada passo que dava para longe daqueles muros que guardavam a morte.
Chegado à pensão, deitou-se sobre os lençóis completamente vestido e adormeceu com um sorriso no rosto.
Na manhã seguinte, após umas poucas horas de sono, estava fresco e renovado como não se sentia há muitos anos.
Passou uma boa hora a convencer o chefe que precisava de mais um dia para concluir o trabalho após o que telefonou para a pensão a confirmar que ficaria mais esta noite e Sábado.
O resto das horas pareceram uma eternidade.
Pela meia-noite já António trotava alegremente para o mesmo local onde encontrara Susana na noite anterior.
Localizou rapidamente o anjo da asa partida, sentou-se na mesma campa onde se sentaram anteriormente e ali esperou olhando na direção onde ela desaparecera no dia anterior.
A noite estava completamente diferente. Desta vez não havia nevoeiro nem frio e a lua dominava todo o céu sem nuvens.
A espera tornou-se longa e os minutos tornaram-se em horas e as horas em tristeza.
Acabou por dormitar encostado à estela da campa e a claridade da madrugada já ameaçava um dia abrasador quando tornou a abrir os olhos.
Ergueu-se entorpecido e, sem disfarçar o seu desalento, caminhou em passo arrastado de volta à pensão.
De novo se deitou completamente vestido mas não havia alegria e caiu num sono pesado povoado de pesadelos que pouco ou nada o descansou.
Quando acordou já era perto do meio-dia e, após o banho matinal, desfazia a barba enquanto questionava o indivíduo com olheiras profundas e rosto sério que o enfrentava ao espelho:
- Que faço? Vou procurar por ela? De certeza que lhe arranjo problemas.
Só depois do almoço tomado no restaurante em frente à pensão tomou uma decisão; Iria rondar a casa mas não sairia do carro e esconder-se-ia se a visse, não fosse ela trair-se e meter-se em sarilhos ainda maiores.
Assim enfrentou o calor da tarde de Sábado e conduziu na direção daquela parte da vila que mal conhecia.
Após contornar o cemitério apercebeu-se da Igreja que não conseguira divisar na noite anterior e, na tentativa de localizar a casa de Susana, apercebeu-se não existir nenhuma casa encostada aos muros, nem perto o suficiente para ser vista de dentro.
Estacionou o carro do outro lado da rua e atravessou ainda confundido com a situação e parou junto do adro do pequeno templo, pensativo.
Resolveu continuar a pé ao longo do muro sem dar conta que estava a ser observado pelo velho padre que, curioso, acompanhava todos os passos do jovem.
Ao dobrar a esquina encontrou as paredes derrubadas de uma ou duas casas que em tempos existiram ali. Vestígios negros anunciavam que o fogo poderá não ter sido estranho ao abandono e ruína destas casas.
Ao voltar-se para contornar as ruínas quase chocou com o pequeno e rotundo padre de ar simpático, cabelos brancos e batina preta:
- Hei. – Exclamou surpreendido.
- Oh. – Também ele se assustou – Desculpe-me, estava curioso com a sua curiosidade.
Uma gargalhada bem disposta sublinhou a frase.
- Parece que saiu do nada. – Riu António – Nem me tinha apercebido de si.
- Já estou a observa-lo desde que saiu do carro. Eu sei que ser curioso é feio, mas estava com um ar tão enigmático e pensativo que me deixou muito intrigado.
- Realmente estou aqui muito cismado. – Concordou – Tanto que lhe vou fazer uma pergunta; Conhece uma jovem aí de uns vinte e poucos, com mais ou menos um metro e sessenta, cabelo escuro e curto?
- Assim com essa descrição não há muitas por aqui. A vila não é assim tão grande…
- Chama-se Susana.
- Com esse nome, não. – O padre foi categórico.
- Não conhece nenhuma moça com esse nome?
- Não. Estou certo que não. Acho que não conheço cá nenhuma Susana, só se for de alguma das aldeias vizinhas.
- Não. Ela disse-me que vivia aqui na vila mas que era da Figueira da Foz.
O ar permanentemente risonho do padre desapareceu do seu rosto.
- Susana? Da Figueira da Foz?
- Sim, foi o que ela disse.
- A única que eu conheci, sim correspondia a essa descrição, morava aí na casa onde agora estão essas ruínas.
António devolveu o rosto sério ao sacerdote:
- Está a brincar comigo?
- Acha-me com cara de brincar com coisas sérias?
- Ela morava aqui nesta casa?
- Sim morava aí até que a casa ardeu.
- E agora onde mora?
- Agora mora dentro destes muros. Morreu no incêndio junto com a sogra e o marido. Deve estar a fazer um ano por estes dias. – Rapidamente agarrou o braço do jovem quando ele oscilou com o choque – Que se passa? Está a sentir-se bem?
- Sim, estou bem, obrigado. Foi só uma tontura.
- Venha comigo, vamos até à Igreja que está mais fresco e sair deste sol que nos abrasa a cabeça.
Caminharam lado a lado com o velho sacerdote apoiando o braço de António.
Dentro do pequeno templo estava realmente mais fresco e sentados em frente ao altar, ele contou todos os pormenores do seu encontro na noite passada com a doce Susana e da forma abrupta como terminou.
O abade confirmou que a pobre jovem muitas vezes tinha chorado junto a ele com o sofrimento que passava nas mãos da sogra e consequentemente do seu próprio marido.
- Uma noite de Setembro, – Os olhos do padre vidrados no vazio pareciam reviver a tragédia – os gritos das pessoas acordaram-me e, quando cheguei à rua, a imensa casa onde eles viviam era uma gigantesca tocha, como se o próprio demónio atiçasse as brasa para manter um lume forte.
Ficou imóvel e pensativo durante uns segundos: - Quando os bombeiros chegaram já nada podiam fazer. Era impossível tirar fosse quem fosse daquele inferno e limitaram-se a apagar o fogo. Só no outro dia se resgataram três corpos completamente carbonizados dos escombros.
- É incrível.
- Diz-se que um dos cadáveres, o da sogra, tinha uma faca espetada e achavam que o fogo fora provocado.
- Foi a Susana?
- Suspeita-se que sim. Mas os mortos não falam.
- Normalmente não. – Alertou António.
- Sim, meu filho. – Concordou o padre. – Normalmente não.
O jovem levantou-se bruscamente: - Quero ver a campa.
Entraram pela mesma porta de ferro que ele usara anteriormente e caminharam pelo meio das sepulturas, contornaram o anjo com a asa partida e o sacerdote apontou a campa em frente com um enorme Serafim de armadura Romana empunhando uma espada em chamas ao longo da perna direita.
Sobre a campa havia três placas de mármore e, numa delas, o rosto inconfundível de Susana: Susana Moreira – N.13.05.1977 F. 28.09.2005
- Fez ontem um ano. - Concluiu o padre – A ideia do Serafim foi da irmã. Disse que queria um anjo que representasse a vingança do sofrimento que ela viveu.
- Foi aqui que estivemos anteontem… Precisamente nesta campa.
- Há ainda muitas coisas na terra que não sabemos explicar…
- Ela era maravilhosa, senhor padre.
- Vem, meu filho, vamo-nos daqui. Deixa descansar os mortos. Deixa o reino deles em paz e dedica-te ao dos vivos que é aquele onde pertences.
Seguiram até ao carro em passo arrastado com António sustendo uma dor do tamanho do mundo sobre as suas costas.
Abriu a porta, sentou-se e lamentou:
- Porque tem que ser assim? Porque me apareceu justamente a mim?
- Quem pode saber? Talvez a sua alma vagueie por aí sem sossego porque tirou a sua própria vida e a de outros. Talvez porque procure ainda o amor a que acha que tem direito… E conseguiu regressar temporariamente no aniversário da sua morte.
- Não é justo! – Lamentou-se antes de agradecer tristemente ao padre e fechar a porta.
O velho sacerdote ficou imóvel vendo o veiculo afastar-se e sentindo a mágoa e dor que transportava dentro de si e que se espalhava em volta como algo invisível mas sensível.
As últimas casas da vila ficavam já para trás quando António, regressando a casa, ainda subjugado por uma dor intensa, tomou uma decisão:
- Vou voltar Susana! Dentro de um ano estarei aqui novamente. Hei-de voltar aqui todos os anos da minha vida até conseguir encontrar-te uma vez mais.




FIM
Share:

0 comments:

Receba as últimas novidades

Receba as novas publicações por correio eletrónico:

Número total de visualizações de páginas

Mensagens populares

Publicações aleatórias

Colaborações


Etiquetas

Contos (100) Marketing (57) Samizdat (56) Lançamentos (35) Contos Extensos (32) Contemporaneo (31) Eventos (30) Antologias (24) Autobiográfico (23) Poesia (23) religião (23) TDXisto (22) pobreza (22) roubo (22) Na Madrugada dos Tempos (21) Noticias (21) pre-historia (21) primitivo (21) sobrenatural (19) criminalidade (18) Crónicas (16) Sui Generis (16) homicidio (14) DAMarão (13) biblico (13) A Maldição dos Montenegro (12) Indigente (12) Recordações (12) sem-abrigo (12) separação (12) Pentautores (9) Suporte a criação (9) Século XIX (9) Uma Casa nas Ruas (9) genesis (9) publicações (9) Distinção (8) perda (8) solidão (8) Entrevistas (7) livros (7) terceira idade (7) Na Pele do Lobo (6) Rute (6) Terras de Xisto (6) Trás-os-montes (6) intolerancia (6) lobisomens (6) mosteiro (6) Apresentações (5) Papel D'Arroz (5) Revista (5) guerra (5) medo (5) morte (5) opressão (5) traição (5) Corrécio (4) Divulga Escritor (4) geriatria (4) sofrimento (4) vicio (4) LNRio (3) Portugal (3) Violência doméstica (3) dor (3) Carrazeda de Ansiães (2) Entre o Preto e o Branco (2) Ficção (2) Humor (2) Projetos (2) ambição (2) apocaliptico (2) cemiterio (2) culpa (2) futurista (2) isolamento (2) jogo (2) lendas (2) sonhos (2) Abuso sexual (1) Covid-19 (1) Extraterrestres (1) Minho Digital (1) Pandemia (1) Perversão (1) Viagens do tempo (1) abel e caim (1) bondade (1) desertificação (1) dificuldades (1) emigração (1) escultura (1) hospital (1) materialismo (1) mouras (1) natal (1) sorte (1) suspense (1) transfiguração (1)

Imprimir

Print Friendly and PDF