quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quinta parte - Na Terra de Nod

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Devastada com a eventualidade de perder o seu filho, Lilian acarinhava-o e abraçava-o com força, como se temesse que este se escapulisse entre os seus braços.

Samael estava quase em permanência com ela, preocupado, sem saber o que fazer, que não fosse um desafio direto à autoridade do Criador. Também os seus dois companheiros, Samyaza e Armaros[1] visitavam-nos frequentemente, o primeiro era experiente no seu envolvimento com humanas, mas nunca se preocupara em saber que fora feito delas, o segundo, por seu turno, era hábil nas palavras mágicas e nas defesas contra os feitiços. Os três teceram uma proteção mágica sobre a mulher e a criança e, para que melhor se defendessem, Samyaza imbuiu-os de alguma da sua essência angelical tornando-os algo mais que humanos.

Aquela era a altura, segundo eles, para dar o nome à criança. Quando Samael se preparava para ditar a palavra com que selaria o filho até ao fim dos seus dias, Lilian sussurrou “Asmodai”. Os três anjos olharam-na com espanto.

A mulher, com o seu olhar ausente, repetiu, agora com voz mais decidida; — Asmodai[2], que quer dizer Espírito da Fúria, pois esta criança, filha do amor, será sempre revoltada e furiosa contra Aquele que a amaldiçoou.

— Pois que seja Asmodai. — Sentenciou Armaros, erguendo a mão direita num gesto de abençoar e crescendo enormemente para assumir a sua forma de anjo. Converteu-se numa criatura de mais de três metros de altura, a pele reluzente como ouro e com enormes asas da mesma cor. — Feitiços e dentes de bruxa não fenderão a carapaça que aqui te ponho, veneno de cobra não vingará no teu sangue, nem peçonha na tua pele, a pedra resvalará, a espada não penetrará e o pau partir-se-á.

— Serás grande entre os Homens. — Samyaza seguiu os passos do companheiro e tornou-se num gigantesco fenómeno de pele como cobre em brasa e os seus olhos soltavam chispas. — Eles seguir-te-ão até à morte e as tuas palavras serão para eles como a água no deserto.

Não ficando atrás dos seus amigos, Samael tornou-se num gigante, cor de prata, emitindo uma luz resplandecente que iluminou toda a gruta, encandeando-os a todos: — Asmodai, comandarás os Homens em batalha e vencerás mil guerras, serás chefe de milhares e não conhecerás a derrota.

Agradecida e atemorizada pelo impressionante aspeto dos seus protetores, Lilian ajoelhou frente a eles, sem largar a criança que chorava e esperneava.

— Tu, Lilian, — Armaros estendeu a descomunal mão sobre a mulher. — Enganarás a morte muitas vezes e os teus dias não terão fim, serás amada por milhares e odiada na Terra por outros tantos. O encanto que o Criador te deu, eu dobro e ponho mais, nenhum homem te conseguirá resistir. Mesmo nunca sendo rainha, os reis ajoelharão a teus pés e farão o que mandares.

— Assim seja, ámen! — Trovejaram os três poderosos seres.

Depois dos últimos ecos do encantamento retumbarem na gruta, fez-se um silêncio pesado enquanto as paredes pareciam reluzir, recobertas de palavras escritas na língua que apenas os seres divinos conhecem.

A gargalhada cristalina de uma criança quebrou o silêncio que se impunha, como se de um espelho se tratasse. O som foi contagiante e todos sorriram felizes para o bebé Asmodai que agitava as mãos e os pés com satisfação.

Para Lilian, aquela era uma criança que nascera de uma gravidez normal, mas ela não tinha experiência suficiente. Se a tivesse, saberia que as crianças humanas levavam nove e não quatro meses a formar-se no ventre da mãe… e que o seu bebé de doze semanas apresentava já o desenvolvimento de doze meses.

Nos tempos que Lilian ficava sozinha, alargava os seus horizontes, afastando-se cada vez mais da gruta que habitava. Eventualmente acabou por travar conhecimento com as pessoas da aldeia próxima, que se mostravam amigáveis, embora curiosos com as suas origens, que preferia não revelar. Asmodai crescia e aparentava já dois anos.

Jahi, uma das mulheres da aldeia, perdera um filho recentemente e visitava-os com frequência para estar próxima da criança. Era uma bela jovem, magra, de longos cabelos e olhos negros sobre um rosto oval de lábios carnudos. Apesar de se afirmar uma pobre aldeã, as suas mãos denunciavam a ausência de trabalhos duros.

As duas mulheres passavam longos períodos a conversar sobre os males que afligiam a população; como a longa seca prejudicara as colheitas e como os deuses não haviam abençoado os rebanhos, onde nasceram menos crias que nos anos anteriores. Por vezes, a aldeã tentava abordar o tema de onde vieram e como se mantinham isolados na gruta, onde não parecia faltar nada, mas Lilian sempre desviava a conversa.

Um dia, ela sentiu-se particularmente desconfortável quando Jahi lhe falou de Belial. Era o poderoso deus protetor da aldeia; fazia com que as colheitas fossem abundantes, os rebanhos férteis e os rios generosos. Graças ao deus, antigamente havia peixe, carne e cereais, agora, porém, parecia ter-se esquecido do seu povo e as pessoas passavam fome. Os crentes já haviam sacrificado vários animais e até crianças, aqui Lilian deitou-lhe um olhar desconfiado, mas nada resultara e agora procuravam uma razão para a ira do deus. Jahi mostrou-se um pouco nervosa quando confessou que havia quem dissesse que a recém-chegada, com a criança, eram os culpados. “Claro que eu não penso nada disso” desculpou-se “e sempre vos defendi…”

Num rasgo de oportunidade, Samael entrou na gruta. Apresentava-se, como sempre, como um humano comum, mas o seu rosto ficou sombrio ao deparar com Jahi. Também esta se mostrou perturbada e agitada com o recém-chegado, ficando aparentemente sem saber o que fazer. Embora não soubesse de quem se tratava, sentiu emanar dele um poder e uma autoridade que pareciam esmagá-la, pelo que se ajoelhou humildemente gemendo: — Sejas bem-vindo, meu senhor, perdoa a minha intromissão.

O anjo olhou interrogativamente para Lilian antes de tornar, preocupado, para a estranha mulher. — Que fazes aqui, criatura? — Trovejou com autoridade. — Quem és tu?

— Meu senhor, — ela continuou sem se atrever a levantar os olhos —, apenas mato algum tempo com a minha amiga, desculpai-me o atrevimento. Sou apenas uma pobre camponesa, viúva que perdeu o único filho.

— Não és tal! — Acusou Samael parecendo crescer. — Que queres daqui? Vejo o negrume que te guia e que se alarga para envolver tudo e todos. — Em seguida olhou para o teto da gruta e abriu os braços. Numa voz gutural, invocou algumas palavras incompreensíveis da qual apenas se distinguiu o nome Armaros.

Quase no mesmo instante o outro anjo materializou-se a seu lado. Também ele fixou imediatamente os olhos em Jahi: — Criatura! — A poderosa voz angelical fez tremer o chão e as paredes. — Que fazes aqui? És um esbirro de Belial[3], não és? Que te manda o teu negro senhor fazer?

— Mil perdões, perdoai esta pobre mortal! — Ela estava visivelmente aflita e chorava apavorada. — Não sabia estarem sob a vossa proteção, poderosos senhores. Apenas tentava arranjar mais um sacrifício para o meu amo!

— Se tornas a aproximar-te deles, far-te-ei em pedaços, antes de te atirar para os fogos eternos! — Avisou Samael.

— Volta para a escuridão onde pertences, demónio[4]! — Exorcizou Armaros.

— Piedade, nobres senhores, misericordiosos senhores… — a mulher, quase rastejando, aproximava-se gradualmente da saída, sempre com a cabeça baixa temendo ser fulminada se enfrentasse o olhar dos formidáveis seres. Assim que viu o caminho desimpedido, lançou-se numa corrida pela própria vida.



[1] Estes dois anjos faziam parte de um grupo ao qual o Criador atribuiu a responsabilidade de velar pelos seres humanos. Ficou conhecido como “Os Vigilantes”(Grigori em Grego)

[2] Asmodai ou Asmodeus tem origem no persa antigo e significa algo como demônio da ira ou espírito da fúria, derivado da figura zoroastriana de Aeshma.

[3] Um dos anjos expulsos do Céu após a revolta de Lúcífer, acontecida durante a criação da vida na Terra.

[4] Jahi é o nome na língua avéstica da demônia da "lascívia" do Zoroastrismo. Como uma entidade hipostática, Jahi é interpretada de várias maneiras como "vadia", " libertina ", "cortesã" e "aquela que leva uma vida licenciosa". Seu epíteto padrão é "a prostituta". In Wikipedia

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sábado, 12 de outubro de 2024

Sabotagem no Paraíso - Quarta parte - O Plano B

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 


Então o Senhor Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar;

E da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão.

E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada.

 

Versículos 21, 22 e 23 do livro do Génesis

 

O fracasso dos três emissários em fazer regressar Lilian era embaraçador e só deixara o Criador ainda mais frustrado: não era possível que aquela mortal tivesse a audácia de desobedecer. O facto de a terem amaldiçoado, em nada contribuía para o Seu objetivo e era apenas uma vingança mesquinha, por despeito.

O livre arbítrio era uma coisa complicada, nem os anjos tinham tanta liberdade; podiam tomar decisões independentes e enveredar por este ou aquele caminho, mas apenas na ausência de uma ordem direta. Como poderia lidar com uma criatura que mentia e omitia sem qualquer pejo e recusava-se a cumprir o que lhe ordenavam?

Chegava à conclusão que fora um erro ter criado Adam e Lilian da mesma forma. Inexplicavelmente, embora partilhassem ambos dos mesmos elementos, da mesma inteligência, curiosidade e vontade de aprender, o homem mostrou-se mais submisso e obediente do que a mulher. É verdade que ele tentou sobrepor-se a ela desde o primeiro dia e desde essa altura ela mostrou-se insubmissa exigindo igualdade ao companheiro.

Estava decidido. Teria de arranjar nova mulher para Adam, uma mais ligada a ele, dependente e que não o desafiasse.

Quando o homem dormia, o Criador extraiu uma das suas costelas que misturou no caldo de terra, fogo, ar e água com que formou a nova mulher. Uma vez mais era uma criatura belíssima, mas desta feita com cabelo escuro e olhos castanhos. Segredou ao ouvido da concha vazia as palavras que lhe davam a vida e ela estremeceu, animou-se e sorriu ao Pai.

Chamou-lhe Rrava[1], que quer dizer vida, seria aquela que daria a vida à humanidade, a partir de Adam, que quer dizer terra[2]. Era aquela a segunda mulher do paraíso e desejou que o seu nome fosse menos enganador ou suscetível a deceções como sucedera com Lilian, que significa pura, inocente[3]. Agora queria esquecê-la e começar de novo.

Na mente do Criador, digladiavam-se agora várias fugas no segredo da existência do seu projeto; o escândalo à volta da fuga de Lilian, o facto de ela poder revelar coisas como a localização, o desconhecimento de quem fora o insidioso velhaco causador da sua fuga. Precisava de mais segurança e isso implicava envolver mais elementos; dois querubins, empunhando as suas espadas flamejantes, foram invocados para a segurança do jardim.

A paz voltou então ao paraíso. Rrava, que proveio de Adam, partilhava da sua simplicidade, sendo a sua curiosidade mais pura e menos insaciável. Ambos se quedavam fascinados a escutar o canto cristalino do rio nas pedras, o sussurrar do vento nos ramos das árvores, ou mesmo a conversar com os outros animais, que Lilian achava tão limitados.

O Criador voltara aos Seus ensinamentos, falando-lhes da Sua Criação, de como tudo se interligava, preparando-os para o dia os tiraria da segurança do jardim e esvaziaria a Terra de todas as aberrações que a conspurcavam.

Ele não interferia, mas olhava com preocupação para o que acontecia para lá dos muros invisíveis do Jardim do Éden. Os humanos selvagens, para além das suas limitações em termos de força e tamanho, conseguiam sobrepor-se a outros seres mais possantes. Derrotavam centauros, gigantes e ogres, ainda que com grandes perdas. Os outros deuses pareciam desinteressados em proteger as suas criações, ou haviam resolvido deixar os selvagens à sua vontade, na luta pela sobrevivência. A sua tenacidade e inteligência acabavam por compensar a falta de força da espécie humana. Alguns pequenos agrupamentos de casas de adobe tonavam-se aldeias à medida que mais casas iam sendo construídas para albergar a população que crescia.

Nunca fora intenção do Criador que os humanos dominassem o fogo, ou utilizassem os ossos dos animais que matavam para fazerem armas e as suas peles para vestuário, mas reconhecia que, se assim não fosse, não teriam nenhuma hipótese contra as outras espécies criadas para os exterminar. O equilíbrio natural era quase perfeito e, nesse aspeto concordava com as vozes contra a criação dos humanos, eles eram uma rotura nesse equilíbrio. O animal-inteligente, ao contrário do animal-força-bruta,, estaria predestinado ao sucesso. Nada de répteis gigantescos, desajeitados e brutos como aqueles que povoavam a Terra na primeira fase… ainda bem que acabara com praticamente todos, ou quase, os que restaram desapareceriam com o tempo. Chegara à conclusão que detestava cobras e lagartos.

O ser humano era o mais próximo que podia existir da face mais frágil dos anjos, que Ele amava profundamente. Como estes últimos eram imortais e tinham em si um demónio furioso, removeu na sua criação a capacidade de se transformar, ficar invisível ou incorpóreo, deu-lhes, contudo, a capacidade de questionar e tomar decisões de moto próprio. O ser humano não se sentiria compelido a seguir as ordens do Criador, se tal não pretendesse, mas também o seu tempo de vida seria finito, se algum deles Lhe desagradasse, bastaria ignorá-lo até que chegasse ao fim dos seus dias… embora por vezes a Sua Infinita Paciência se esgotasse e mandasse Samael acabar com ele, ou eles. Sabia que o arcanjo nem sempre cumpria a totalidade das missões e a sua compaixão acabava por deixar vivos alguns elementos dispersos das tribos que fora incumbido de eliminar até à última alma, mas não se importava, também Ele sofria por mandar castigar os Seus filhos.

Lilian estava agora também a testar a Divina Paciência e a desafiar as Suas ordens. Ignorá-la, seria fácil e apenas teria de esperar algumas centenas de anos até que ela envelhecesse e morresse, para Ele seria o mesmo que uns minutos na escala temporal divina. A simples existência dela, porém, incomodava-o e prejudicava a sua atenção ao projeto. Quem sabe se não mandaria Samael visitá-la para eliminar o problema.

Também não pretendia, assim que os dois humanos do Seu jardim estivessem prontos, deixar vivos os outros, cheios de vícios e maldade no coração cultivados nas constantes lutas pela sobrevivência. O Seu jardim produziria aqueles que iriam povoar o mundo; humanos e outros animais a coexistirem livremente. A Terra teria de ser um lugar de paz e concórdia, para isso, sofreria uma purga quase total. O próximo evento de extermínio seria para apagar da face do planeta todos os seres com algum nível de inteligência, que não estivessem sob o seu controlo e não fossem da Sua Própria Criação.



[1] Eva em hebraico é Chava, que deriva da palavra "vida". CH em hebraico tem o som de RR, logo Chava = Rrava.

[2] Adão em hebraico é adam. Assim ele se chama, pois a Torá nos conta que Deus tirou-o da terra, que significa adamá em hebraico. Com esse mesmo radical temos a cor vermelha, adom que pressupõe que a terra era vermelha como o barro. Todos somos descendentes de Adão, por isso ser humano é ben adam, que literalmente significa filho de Adão.

https://www.hebraicosimples.com/post/nomes-b%C3%ADblicos-significado-em-hebraico

[3] Como este texto trata-se de uma adaptação livre do Génesis, assumi que Lilith, a existir, não se chamaria assim, terá tido um nome hebraico, daí ter escolhido Lilian (porque não?). Só terá começado a ser chamada de Lilith mais tarde, associando-a ao demónio feminino Liliu da Mesopotâmia.

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