Corriam os
primeiros anos do século XX.
O rei, reinava,
o governo legislava, os regedores mandavam, os proprietários enriqueciam e os
pobres trabalhavam…
Engordavam os
primeiros, enriqueciam os segundos e morriam de fome os últimos.
Tempos duros
aqueles, com o pão de cada dia arrancado à força de braço nos terrenos de
xisto. Longínquas as terras, agora tornadas próximas por auto-estradas lavradas
nas montanhas e máquinas possantes que devoram quilómetros.
Nos remotos
montes do Norte do país, muito para trás dos montes, havia uma aldeia igual a tantas outras.
Vista de cima,
até não era pequena, com quase dois quilómetros de ponta a ponta. O casario
estendia-se ao longo de uma sinuosa rua monte acima ramificando-se em pequenos
becos. O ponto mais baixo da rua central era dominado pelo palacete
setecentista onde vivia a família mais importante da região e no extremo mais
alto pela Igreja tornada rica pelo fervor dos pobres e ostentação dos ricos.
O extremo da
aldeia, próximo do palacete, estava sossegado e as luzes das casas apagadas há
algum tempo. Já passava das 23:00 horas e amanhã avizinhava-se um novo dia de
árduo trabalho.
O céu excepcionalmente
sem nuvens daquela noite de Inverno era dominado pela lua cheia cujos raios
prateados iluminavam a paisagem.
Passadas
apressadas de tamancos de madeira perturbaram a paz da noite ecoando rua fora.
Na casa verde
junto da fonte, as pancadas violentas na porta acordaram a jovem mulher que
ainda há pouco adormecera.
- Ò ti Maria –
Uma voz esganiçada de jovem gritava num dueto com as pancadas na porta – Ti
Maria, abra a porta!
A jovem
ergueu-se gritando um “Quem é?” mal-humorado enquanto desamarrotava a camisa de
noite e se cobria com uma pequena manta. Usava cabelos negros compridos que lhe
chegavam ao meio das costas, tinha um nariz fino e afilado e olhos azuis.
As pancadas e os
chamamentos repetiam-se como se a não ouvissem: - Ò ti Maria!
- Mafarricos te
levem rapaz! Já lá vou! – Gritou novamente enquanto atravessava a cozinha e se
dirigia para a entrada.
- Acuda à porta
depressa. – Os gritos insistiam.
Abriu a porta com
brusquidão surpreendendo o ofegante adolescente escanzelado de cabelos negros
revoltos que a olhava entre o surpreendido e o assustado.
- Que foi? Que queres
rapaz, que acordas as almas deste mundo e do outro? – Maria, senhora dos seus vinte e poucos anos, enfrentou o jovem.
- Venha
depressa. – Ofegou – Venha depressa, foi o Ti Zé…
Estas últimas
palavras disse-as já em corrida de regresso para onde viera, tamanqueando rua
fora e insistindo – Venha depressa.
- Espera, rapaz!
– Gritou ela – Rapaz! Tiago! Espera! Que aconteceu com o meu Zé? Fala!
Era inútil. Já
não a ouvia, batendo os tamancos de volta para donde viera.
Correu para o
interior da casa gemendo – Mafarrico… que terá acontecido? Aquele endemoninhado
já se meteu em sarilhos outra vez.
Vestiu uma saia,
cobriu-se com um xale e saiu correndo atrás do rapaz.
Agora eram os
tamancos dela que ecoavam na rua ritmados com a respiração ofegante em
crescendo com a sua aflição:
- Não há ninguém
na rua… que terá acontecido… está toda a gente para lá…
O seu marido,
Zé, não perdia uma festa... nem os problemas. Era normal, como era grande e forte, haver sempre
alguém com um copito a mais que resolvia medir as forças com ele. A maior das
vezes saia vitorioso, arranhado, pisado, mas vitorioso.
Maria sentia-se
cada vez mais inquieta e, ao chegar à taberna, onde começavam os archotes
iluminados, ouvia já o burburinho que havia para lá da esquina.
O frio mordia-a
nas pernas mal protegidas e queimava-lhe as mãos e o rosto deixando-a corada. O
seu respirar ofegante transformava-se em nuvens de vapor que saiam da boca.
Reduziu a
velocidade instantaneamente assim que encontrou o ajuntamento.
Todos se
começaram a calar e a abrir alas à sua chegada, rostos apreensivos,
preocupados, ou mesmo zangados.
- Que aconteceu?
– Perguntava à direita e à esquerda sem que lhe respondessem – Que houve,
vizinha? – Perguntava à mais próxima que a olhava tristemente com as lágrimas
nos olhos. – Diga-me por amor de Deus o que aconteceu Ti Eduardo. – Perguntou,
sem parar os passos cada vez mais curtos, ao homem dos olhos grandes que
desviou o olhar para o chão.
Acabou chegando
ao centro do ajuntamento… uma obscena poça de sangue negro como a noite
estendia-se no meio do círculo.
Uma nascente de
lágrimas brotou dos olhos de Maria ao deparar com tão terrível vestígio e
colocando as mãos enclavinhadas ao peito, chorou desesperadamente:
- Ai, valha-me
Deus, o meu Zé! Ai, meu Senhor Misericordioso, valei-me.
- Cala-te
mulher! – A ordem com uma voz forte carregada de desprezo veio do outro lado da
poça. – Cala-te que choras por quem o não merece. - Por entre os soluços, olhou
surpreendida o fidalgo que a olhava com porte altivo com o pingalim na mão
esquerda batendo no cano da bota – Maldita és que trouxeste a desgraça a minha
casa.
Com as mãos no
peito, ela olhava incrédula em todas as direcções à procura de uma alma
caridosa que lhe explicasse o que se passava e porque era ela a causa da fúria
do Senhor Samões, o homem mais importante da aldeia.
- Esse sangue que
aí vês, pertence ao meu filho que acabaram de levar daqui entre a vida e a
morte vítima do maldito assassino que é o teu marido. – Apontou o pingalim ao
peito dela, como se tratasse de uma espada e ameaçou – Cautela, Maria Sobreiro,
hoje mesmo o Zé Sobreiro há-de ser caçado como um cão e trazido de rastos aos
meus pés para responder pelo crime que cometeu. Se te atravessares no meu
caminho ou dos meus homens hás-de levar tamanha tareia que nunca mais poderás
andar pelo teu pé. Palavra de André Samões. Que sejas maldita tu e o perro
canalha com quem te casaste com a minha bênção, amaldiçoada a hora. A ele,
hei-de esfola-lo de chibatada como a um miserável que é e tu, se me voltas a
aparecer à frente, mato-te com as minhas próprias mãos.
Terminou a
ameaça com uma chibatada na diagonal muito perto do rosto da tão apavorada como
espantada jovem e fez meia volta empurrando da sua frente os mais lentos à
medida que se afastava em passos rápidos e decididos.
1 comments:
Estou imprssionado. Muito bom o argumento e o texto. Tem umas palavras que eu vou ter de buscar ao dicionario, claro está... mas o enredo te dá vontade de seguir lendo. Vamos ao próximo capítulo...
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