quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Solidão

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

 

Com o cotovelo derrubei o copo sobre a mesa....
Um rio de leite correu parcialmente sobre o tampo antes de cair para o chão.
- Merda. - Lamentei-me - Só faço porcarias.
Com um pano limpei rapidamente o que ainda restava na mesa enquanto, de soslaio, vigiava o olhar reprovador e silencioso da minha mulher.
Olhei para os pés. Os chinelos de pano aos quadrados estavam algo velhos e agora empapados em leite. Tenho que me lembrar de comprar outros.
Arrastei os pés pela cozinha deixando pegadas brancas até chegar à esfregona estrategicamente colocada no balde a um canto.
Silenciosamente limpei todo o chão e retornei a esfregona ao seu descanso.
Com novo copo de leite voltei a sentar-me e provei uma bolacha. Está mole, tenho que ir comprar mais um dia destes.
Ela continuava a observar-me, de rosto inexpressivo, do outro lado da mesa.
Agora nunca me falava, limitava-se a estar simplesmente ali. Não me respondia às perguntas apenas, uma vez ou outra, esboçava um sorriso ou uma careta de desagrado. Praticamente deixei de lhe falar também.
Cheguei a assustar-me a primeira vez que dei de caras com ela ali, assim parada.
Perguntei o que se passava, se se sentia bem, se precisava alguma coisa. Limitou-se a devolver-me um sorriso triste e acho que correu uma lágrima... mas não me deu uma palavra.
Desde então, quando me levanto já está acordada e sentada à mesa, à minha espera acho.
Há vários anos que não dormimos juntos, desde que ela começou a ficar doente e os meus movimentos na cama a faziam sofrer. Tratamentos e mais tratamentos, mas os ossos não se conseguiam curar e ela foi ficando, cada vez com menos mobilidade, cada vez saía menos do quarto... Agora aparece assim, veste-se sozinha e vem sentar-se ali à minha espera... não sei porquê.
Agora que penso nisso, não me lembro a ultima vez que entrei no quarto dela, que conversamos. Não me recordo mesmo. Se calhar é por isso que está zangada.
Olhei-a pelo canto do olho, continuava lá a impávida.
O chão não ficou muito limpo e viam-se as marcas da sola dos chinelos aqui e ali.
Não tem mal... hoje vem a minha filha trazer-me algumas coisas e fazer a limpeza. Ela diz que é minha filha, mas a minha filha é ainda uma criança não pode ser aquela mulher que aparenta uns quarenta e tal anos. Coitada, não deve ser boa da cabeça.
Molhei uma bolacha no leite e saboreei a textura mole e doce que me enchia a boca e parecia trazer à memória doces e antigas recordações... o meu pai na longínqua aldeia transmontana, de calça de cotim e camisola grossa de lã, com o inseparável chapéu na cabeça à minha espera para me levar à carreira que me levaria à escola, a minha mãe sempre com um "Despacha-te rapaz que o teu pai está à espera." ou "Acorda, não durmas em pé, não vês o que estás a fazer?".
Não pude evitar um sorriso, já lá vão tantos anos... sessenta, setenta? Hmmm, deixa ver, eu tenho... bolas quantos anos tenho? Também não interessa, já foi há muitos anos e os pobres coitados devem estar no céu, que Deus os tenha, porque aturar-me não deve ter sido fácil.
Estão a mexer na porta, deve ser ela, a Julia. Sim, tem o mesmo nome da minha filha, mas não pode ser ela, porque ela é ainda uma criança... deve estar na escola talvez, não sei. Por aqui não está agora.
A mulher magra de cabelo escuro e casaco comprido cumprimentou-me com um "Olá pai." e um beijo na face como de costume. Coitada, deve sentir-se sozinha, ao menos eu ainda tenho a Celeste, não fala, mas pelo menos está ali e ouve-me.
- Então? Como está hoje? - Perguntou-me na voz musical que as mulheres que nos têm carinho conseguem fazer - Como estão os ossos? Dormiu bem?
- Sim estou bem, obrigado. - Assenti enquanto ela vestia a bata que usa para fazer a limpeza à casa e que representava o passo inicial antes do ataque frenético que fazia à sujidade e desarrumação que eu, por muito que me esforçasse, não conseguia evitar.
Acabei o meu leite e o copo e o prato desapareceram da minha frente como que por magia.
- E então? - Recomeçou ela enquanto lavava a loiça que estava amontoada no balcão da cozinha - Pensou no que lhe disse?
Não me recordava de nada da ultima conversa, nem de alguma pergunta que me tivesse feito... fiquei a cismar.
- Não se lembra? - A voz entristeceu de repente - Sobre ter alguém que cuidasse de si a tempo inteiro, ir para um sitio onde as pessoas estão treinadas para o ajudar no que é preciso e lhe mantivessem a roupa limpa e o ajudassem nos banhos... enfim, melhor que eu que só posso vir uma vez por semana e a muito custo.
Franzi o sobrolho... não me lembrava nada daquela conversa e não me agradava nada a ideia:
- Sair daqui? Que queres dizer com isso, porque deixaria a minha casa?
- Oh, pai, falamos disso na semana passada. Não percebe que precisa de uma ajuda maior do que a que eu lhe posso dar? - Insistiu.- O pai não consegue cuidar de si sozinho, já tem 90 anos.
- Não, não me lembro de nada disso. - Retorqui deixando a cadeira e avançando para a a janela onde me quedei de costas voltadas para ela. - De resto, como me iria embora daqui? Deixava a tua... mãe sozinha?
- Oh meu Deus. - Havia lágrimas na voz dela mas continuava a lavar furiosamente a loiça - Outra vez isso? A mãe morreu há quase dez anos! Por favor!
- Morreu?!? - Indignei-me voltando-me para Júlia - Como,  morreu? Não a vês ali sentada? - Voltei-me para a mesa e instiguei - Celeste, diz alguma coisa... - Ela não estava lá.
Senti uma tontura e uma pressão no peito, o ar parecia faltar-me, estava sempre ali e agora não estava, uma sensação terrivel de estar a reviver algo que já tinha acontecido atingiu-me com violência.
- Pai? - A voz de Julia estava preocupada - Pai, está bem? Está muito branco, venha sente-se, desculpe falar assim, ...
Afastei os braços que me estendia e caminhei o mais rápido que podia para o quarto da minha mulher.
A porta estava fechada à chave mas com a chave do lado de fora.
Tremendo, abri-a de par em par e entrei como um furacão.
Um cheiro a naftalina invadiu-me as narinas enquanto olhava em volta; a cama estava apenas com uma coberta por cima do colchão, a arca que estava sempre aos pés da cama coberta com roupa para costurar, estava sem nada.
Abri o guarda-fatos. Vazio!
Sem forças deixei-me cair pesadamente sobre o cadeirão à cabeceira da cama... onde passei tantas horas e tantas noites a velar o sono inquieto e o respirar pesado dela nos seus últimos dias...
Agora recordava-me de tudo, as memórias vinham em catadupas dolorosas e as lágrimas corriam-me livremente no rosto. Sentia o sabor salgado na boca enquanto chorava mansamente um choro velho de anos já chorado tantas vezes.
Júlia, encostada no umbral da porta, chorava comigo a repetição da dor da perda da mãe, já tantas vezes repetida por mim.
- Pai. - Pediu - Não chores por favor.
Mas as lágrimas não paravam e eu só tinha olhos para aquela cama vazia onde em tempos esteve a mulher que amei e que foi minha companheira durante tantos.
- Deixa-me, deixa-me. - Solucei - Vai embora por favor.
Ela retornou à cozinha num passo arrastado e eu deixei-me ficar parado a tentar limpar a minha mente de todas as recordações, de toda a tristeza que me sufocava em catadupas de dor. Deixei-me ficar à espera que ela se fosse e eu pudesse ficar novamente em paz... entregue ao doce oblivio.
Deixei-me ficar, com dores na alma à espera que o Alzheimer retomasse conta de mim... e talvez então ela voltasse... mesmo sem falar.








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domingo, 24 de novembro de 2013

Desolação

Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.

De olhos fechados, trincou com força a maçã vermelha sentindo-a explodir na boca numa volúpia de açúcar.
Mastigou calmamente saboreando cada gota do fruto e, desejando manter uns segundos mais aquela sensação, engoliu, quase contrariado.
Entre dentadas, espreitou de olhos semicerrados as nesgas de sol que logravam romper por entre as nuvens escuras, trazendo uma vaga lembrança do calor de outras eras.
Deixou-se ficar sentado nas enormes pedras da ruina onde descansava fazendo durar a maçã enquanto escutava as vozes algo longínquas dos companheiros no exterior.
Pouco restava do descomunal edifício que escolhera para descansar. Apenas as paredes erguidas para o céu onde já não existia telhado, numa caricatura de mãos que imploravam aos céus.
O chão, pejado de escombros negros, era a evidência de um longínquo crime do qual este edifício fora testemunha e vitima.
Ergueu-se finalmente, com o uniforme camuflado já a ficar puído e enfrentou os restos do altar que ocupavam completamente uma das paredes. Com a maçã quase comida numa mão e a espingarda automática na outra, acenou um adeus respeitoso à cruz queimada que teimosamente resistia no meio da desolação.
Caminhou em passos indolentes e atravessou o pórtico, de onde a enorme porta desaparecera, para o exterior onde várias dezenas de homens e mulheres de uniforme igual se afadigavam com braçados de armas, munições e outras cargas.
O cenário deixara de ser o de um edifício em ruinas para se converter num mundo de destruição a perder de vista. Prédios com janelas sem vidros, como olhos sem vida, inclinavam-se em ângulos improváveis sobre outros reduzidos a escombros.
Aqui e ali, na praça que se estendia à sua frente, misturados com pedras e detritos, repousavam restos calcinados de automóveis arrumados para os lados para rasgar uma passagem para os veículos militares.
Um dos soldados aproximou-se e com uma continência desleixada anunciou “Meu sargento, o nosso comandante deu a ordem de reunir no ponto de encontro para partida imediata.”. Com a velocidade com que aparecera assim se afastou.
O sargento deu a ultima mordida na maçã e começou a caminhar na mesma direção que o soldado tomara, contornando a ruina da igreja.
Parou uns segundos a olhar a gigantesca cratera que engolira metade da cidade. A pouca água que ainda corria do rio caía desamparada numa suja cascata para qualquer lado prometendo que a enorme depressão se tornaria um lago em breve.
“Este primeiro ano é apenas o princípio de muitos outros de morte e destruição antes de podermos recomeçar a pôr ordem no mundo. Mas um dia havemos de conseguir. – Pensou – Havemos de trazer a ordem e a paz e taparemos estes buracos hediondos.”
Como que para começar o que prometia, arremessou o caroço roído da última maçã do mundo para a cratera que levara parte de Paris.
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