No dia seguinte, acordou decidido. Barbeou-se, tomou um banho, preparou uma mala pequena com algumas peças de roupa e saiu para a rua: Não haveriam de lhe deitar a mão sem encontrar Rute.
O céu estava forrado a nuvens escuras, ameaçando o mundo com um novo dilúvio que toda a gente parecia ignorar. Ao longe, escutavam-se já trovões.
O primeiro passo foi ir ter com um amigo na repartição de finanças e lá obteve as informações fiscais dela, (tinha mudado de residência por várias vezes e a esta hora não deveria já estar na última indicada) mas havia outra informação importante; o nome e a morada do escritório de advogados do ex-marido.
Pediu para marcar um encontro com ele, através da secretária do escritório. Alegou “assuntos do seu interesse, relacionados com a sua ex-esposa” e deixou o número do telemóvel.
Menos de vinte minutos depois recebia uma chamada:
– Boa tarde! Meu nome é Aníbal Silveira. Ligou há pouco com a minha secretária, pode esclarecer-me qual é o assunto? Não tenho nada a ver com a minha ex-mulher e não tenho nenhum contacto com ela, há alguns anos. Inclusivamente, já enviei cartas para os principais bancos e para as finanças a isentar-me de quaisquer responsabilidades com os seus atos e eventuais custos que advenham daí.
– Boa tarde. Descanse, não pretendo acusá-lo nem responsabilizá-lo de nada. - João tentou acalmar o interlocutor. – Simplesmente há um assunto para resolver com a Rute e não consigo contactá-la.
– Já tentou o apartamento na rua Cinco de maio? - A voz continuava na defensiva.
– Não sabia que tinha um apartamento nessa morada, a última que tenho é na rua da Beira Alta. - Mentiu, dando a morada anterior ao Cinco de maio que constava da sua lista. Aníbal, por uns segundos, ficou em silêncio antes de perguntar: :
– Pode vir ao meu escritório agora? Quero conversar com mais calma.
– Com certeza, dentro de dez minutos estarei aí. Obrigado e até já.
O escritório ficava num edifício elegante e as instalações tinham um aspeto usado, mas de bom gosto. Não era uma firma qualquer, via-se que deveria ter muitos (ou pelo menos bons) clientes.
Não tardou muito, após se apresentar à rececionista, até ser chamado a um gabinete.
A sala era ampla, mas mais parecida com um escritório de uma casa particular do que com o de uma firma. Havia à esquerda uma estante enorme cheia de livros, uma lareira e um conjunto de sofás em pele, voltados em semicírculo para ela. Mesmo em frente, a alguns metros da entrada, uma imponente secretária em madeira maciça bem envernizada, mas de aspeto antigo. Encostada a ela, um homem alto de cabelos platinados, aguardava em pé com os braços cruzados sobre o peito.
João aproximou-se em passos largos e esticou a mão apresentando-se:
– João Ferreira, muito obrigado por ter a amabilidade de me receber.
– Aníbal Silveira, muito prazer. Queira sentar-se por favor. - O anfitrião aceitou a mão estendida, após o que indicou os sofás.
Sentaram-se ambos e João mudou várias vezes de posição enquanto ganhava tempo, sem saber como começar.
– O senhor é da polícia? - Aníbal sentou-se num gesto apenas, ficando estático no sofá, de costas direitas. - Investigador? Advogado?
– Não, não!. - Desmentiu rapidamente – Sou um ex-colega de trabalho que tem uma necessidade urgente de a encontrar para resolver uns assuntos pendentes; ela abandonou o emprego e ninguém sabe onde a encontrar.
– Lamento dizer-lhe isto, mas se ela desapareceu assim de repente, quer dizer que já fez uma malandragem qualquer e tratou de desaparecer de circulação. E o facto de você estar aqui, não sendo nenhum dos três tipos de pessoas que enunciei, então quer dizer que, ou é vítima ou achava que era cúmplice. Perdoe-me a franqueza.
João olhou aquele homem, conhecedor de todas as vertentes do problema que era Rute.
– Não sei bem por onde começar. - João rendeu-se.
– Podemos começar pelo princípio. Aceita uma bebida? - O anfitrião ergueu-se para servir, agora que já tinha percebido todo o enredo.
A narrativa da história demorou apenas uns minutos, tendo sido interrompida por algumas perguntas de Aníbal. João foi sincero e narrou praticamente tudo, desde a relação deles até às histórias que ela lhe contara e à forma como teve conhecimento de tudo. No fim, ficaram ambos em silêncio de olhar perdido no copo vazio que mantinham entre as mãos.
Foi Aníbal que interrompeu a meditação e olhando-o nos olhos informou:
– Não há uma maneira simpática de dizer o que tenho a dizer. Por isso aqui vai; Rute é uma vigarista e uma ladra. - Fez uma pausa para que a afirmação fosse digerida. - Não foi sempre assim. Quando casamos, ela trabalhava neste escritório na contabilidade, era altamente eficiente e honesta. O seu trabalho era muito apreciado por todos.
Dirigiu-se para a janela atrás da secretária e, de costas, continuou:
– Tudo começou quando apareceu o irmão dela. Estava desaparecido há uns tempos e regressara, vindo de uma cura de desintoxicação. Tinha uma relação muito próxima com ela e ficou a viver lá em casa, connosco, durante algum tempo. Os problemas começaram a partir daí.
Relembrar aquele período estava a ser tremendamente penoso, mas ao fim e ao cabo, mesmo indo embora, Rute nunca saíra da sua vida com os constantes ecos das suas tropelias. Continuou:
– Começou a desaparecer a meio do expediente e a deixar trabalhos por concluir ou com defeitos. Como era minha esposa, os restantes empregados evitavam de dizer fosse o que fosse e acabavam encobrindo as suas ausências e os trabalhos mal feitos. – Tossiu para clarear a voz .– Andava constantemente com o irmão e gradualmente o desleixo começou a invadir o lar… Não dava instruções, à empregada, para as refeições e não lhe pagava. Já não fazíamos amor. Estava sempre com sono ou já dormia quando eu me deitava.
– Então não reclamava? – João interveio.
– No início não me apercebia de tudo. O facto de estar uma fase sem sexo não era muito grave. Era mesmo isso, uma fase. Mas, um dia a empregada veio falar comigo e contou-me que não recebia há dois meses e que a senhora quase não falava com ela e quando lhe perguntava as ordens para as refeições respondia “Qualquer coisa”. Paguei-lhe, pedi-lhe desculpas… e fiquei preocupado.
– E mesmo assim não falaste com ela?
– Tentei puxar conversa para ver o que dizia. Mas respondeu com incongruências e queixas sem sentido a meu respeito e do meu trabalho excessivo e falta de atenção para com ela.… Enfim, a culpa era minha. E se calhar era. Com as filhas no colégio ela deveria sentir-se muito sozinha.
Aníbal quedou-se um pouco em silêncio, olhando pela janela e continuando de costas para o seu interlocutor:
– Um dia, no escritório, um dos meus sócios abordou-me por causa de algo que lhe chegou aos ouvidos; o comportamento de Rute nos últimos meses.
Não estava preparado para ouvir o que ouvi. Havia de tudo, maus tratos verbais ao pessoal, desleixo, falta de profissionalismo geral e… desvio de fundos.
Furioso, procurei-a no escritório, claro que não estava lá. Corri para casa e entrei como um furacão, dirigindo-me até à sala onde ouvia vozes. Sentia-se um cheiro estranho, adocicado e havia fumo no ar. Foi então que os vi. - Não conseguiu reter um suspiro. – Enrolados, dois amantes… irmãos. Os charros fumegantes, sabe-se lá de que porcarias, que estavam a fumar criavam uma atmosfera nublosa e irreal. Mas eu não conseguia parar de olhar, paralisado. Até que ela me viu.
Cobriu-se como pôde, chorou, implorou, arranjou desculpas e explicações esfarrapadas, para algo que a minha mente ainda se recusava a aceitar.
Por fim, consegui recuperar o autocontrolo e com a voz que consegui arranjar disse-lhe que queria os dois fora da minha casa imediatamente. Ela passou das súplicas às ameaças e por fim deu-me um estalo ao qual eu respondi com toda a raiva que me dilacerava a alma. Ela caiu e aquele animal, que era o irmão dela, atirou-se a mim e lutámos. Ele era mais novo, mas não estava com todas as faculdades e dei-lhe uma grande tareia enquanto ela gritava como cabra que é.
Em seguida, fui buscar a minha arma e só lhes dei tempo para se vestirem, antes de os pôr fora da porta.
Ela apresentou queixa por maus tratos e eu exigi o divórcio que se arrastou por vários anos. Eu consegui a casa, mas ela levou-me um dos carros (o meu) e muito dinheiro.
De vez em quando, chegam-me notícias das patifarias daquele par; mais umas pessoas enganadas e roubadas e a polícia acaba sempre por me vir bater à porta a fazer perguntas.
… O resto é a sua história.
João estava sem palavras. Não conseguia digerir toda aquela informação e ainda estava de boca aberta a olhar o seu anfitrião, quando ele se voltou e, de lágrimas nos olhos, acrescentou:
– Ah, já me esquecia, realmente temos duas meninas maravilhosas num colégio interno caríssimo. Rute nunca foi uma mãe extremosa e ficou felicíssima com a ideia de se ver livre delas e da responsabilidade de as educar. Sim, aquele colégio foi exigência minha mas sou EU quem está a pagar, nunca ela.
Agora, se não se importa, gostaria de ficar sozinho.
– Com certeza. – O aturdido João levantou-se meio trôpego sem saber o que mais dizer e encaminhou-se para a entrada balbuciando – Obrigado pela sua ajuda.
– Espere!. – Aníbal abriu a gaveta da secretária e trouxe junto dele, já à porta, um papel e algo envolvido num pano de camurça castanha. – Este papel tem a morada de um apartamento meu que sei que eles utilizam de vez em quando e aqui... – mostrou o embrulho – está uma arma que comprei no mercado negro, sem número de série, para matar aqueles dois canalhas… nunca tive coragem. Leve-a, pode precisar de se defender. E agora, adeus.
Suave, mas firmemente, empurrou-o para fora do gabinete.
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