No caminho,
estacou à porta da D. Genoveva. Uma casa altaneira toda em granito ostentando
um decrépito brasão em pedra deitado ao abandono sujo por limos e pelas pombas
que abundavam por ali.
D. Genoveva era a
irmã mais velha de André Samões, era viúva de um juiz e muito respeitada na
terra. Desde pequena que Maria corria a todo o momento para casa da viúva onde
todos gostavam dela. Era acarinhada pela senhora, todos os criados e até o
senhor doutor juiz, do alto do seu ar austero, lhe fazia uma festa na cabeça.
Quando casou com o Zé Sobreiro, a velha senhora deu-lhes uma bolsa com uma boa
soma em dinheiro e lençóis em quantidade tal que os não gastariam na sua vida.
Gostava muito do Zé. Apreciava o ar sério e a atenção às conversas. A opinião
que sempre tinha para dar sobre todos os assuntos mas, principalmente, da sua
frontalidade e honestidade fruto da rudeza da vida.
Após hesitar um
pouco, bateu com o pesado batente na vetusta porta de madeira. Arranjou o
cabelo, compôs o vestido, limpou as lágrimas à manga do casaco e atirou os
ombros para trás mesmo a tempo da porta se abrir por mão da Maria do Reis, a
governanta da casa, quase tão velha como a própria patroa.
O rosto enrugado
espreitou pela frincha da porta, desde as costas curvadas, de baixo para cima
até se quedar no rosto da jovem. Após um franzir de sobrolho, o rosto
iluminou-se num sorriso que logo se transformou numa expressão de tristeza:
- Mariazinha,
minha filha, que fez o teu Zé, valha-o Deus…
O lábio inferior
da mais nova tremeu e as lágrimas quase brotaram novamente da fonte que eram os
seu olhos, mas contendo-se, pediu:
- Ti Maria,
preciso falar com a D. Genoveva.
A pequena velha
abriu a porta de par em par e encerrou-a logo que ela entrou enquanto a fitava
entristecida:
- O Quim Coxo
acabou de sair daqui com um recado do senhor André. A senhora está muito
aborrecida.
- Que lhe disse
o excomungado?
- Já sabia que
havias de passar aqui e por isso mandou o mafarrico com ameaças. Mas a senhora
te contará.
Atravessaram um
corredor e chegaram a uma sala, aconchegada pelo calor de uma lareira que
crepitava frente a um cadeirão que se encontrava de costas para a porta. A luz
da janela descia sobre ele criando uma clareira de luz que a suspensão do pó
dava uma aura de santidade. Na parede da esquerda, uma prateleira erguia-se até
ao tecto apinhada de livros. Tudo como se lembrava antes. Quantas tardes ali se
passaram a folhear os livros cheios de letras que mal percebia e que a D.
Genoveva cheia de paciência lhe foi ensinando. Ao lado do cadeirão uma pequena
mesa continha vários livros e uma mão magra e ossuda mudava-os de posição.
- Minha senhora.
– Chamou a velha – Está aqui a Maria da Emília para lhe falar.
O recordar assim
o nome da mãe trouxe-lhe mais um montão de lembranças. A velha senhora
pegava-lhe no colo e chamava-lhe Emiliazinha pois dizia que era um retrato
pequenino da mãe e ainda mais bonita que ela.
Uma cabeça
repleta de cabelos de prata espreitou pela lateral do cadeirão antes de se
erguer agilmente revelando uma mulher alta, rosto enrugado mas corpo esguio
envolto numa camiseta aos folhos preta e uma saia de balão da mesma cor ao
gosto das famílias abastadas da época. Era uma mulher dura para tempos duros e
gozava de boa saúde os seus setenta anos de vida e vinte de viuvez.
A velha senhora
enclavinhou as mãos ao peito enquanto caminhava na direção delas com uma
expressão mista de tristeza e ternura no rosto pálido ainda belo decorado com
uns enormes olhos azuis cheios de vivacidade:
- Minha
Mariazinha, pobre querida, que tropelia te arranjou aquele rapaz.
Abraçaram-se com
força e as mãos de pergaminho afagaram-lhe a cabeça enquanto ela se entregava
livremente às lágrimas:
- Não sei o que
faça da vida, minha senhora, parece que me caiu o céu em cima da cabeça.
A empregada
chorava silenciosamente tapando a boca com o lenço das mãos.
- Tens que te ir
daqui minha filha. Corres perigo. O André mandou cá aquele canalha do Coxo para
me avisar que te não ajude.
- Não posso ir.
Não quero ir sem o meu Zé. – A recusa surgia entre os soluços no rosto encostado
ao peito da idosa.
- Não podes
esperar. Se o Luís morre, não sei o que fará, mas estou certa que não será nada
de bom.
Maria
empertigou-se de repente e, de rosto corado e coberto de lágrimas afirmou na
voz mais firme que conseguiu:
- Ele e os dele
podem tentar o Diabo comigo, mas, ou me matam, ou hei-de eu levar o Diabo até
ele.
Genoveva
estremeceu com a determinação que se via no rosto dela:
- Vais precisar
muito dessa força, querida menina… Dela toda, pois acho que ainda tens muito
que sofrer antes que termine este drama.
- Eu sei,
senhora, eu sei. – Assim como surgiu aquela força demolidora, da mesma forma
desapareceu e a cabeça dela tombou envergonhada sobre o peito.
A idosa pegou
uma bolsa de couro que se encontrava na mesa ao lado do cadeirão:
- Já tinha isto
preparado para ti. Não to dou já porque acho que quando fugires, e vais ter que
fugir, não estarás com este dinheiro contigo nem conseguirás ir por ele a casa.
A Maria irá deixa-lo no forno das ruínas da casa da ribeira. Não é muito,
apenas o bastante para poderes começar a vida noutro lado longe daqui. Quando
te fores, corres para lá pegas a bolsa e desapareces o mais depressa possível,
sozinha ou acompanhada. – Agarrou o pequeno rosto entre as mãos e encostou a
cabeça olhando-a nos olhos – Promete-me.
A jovem soltou
um suspiro intervalado com soluços e tornou numa voz nasalada como que uma
criança apanha em falta:
- Só irei
sozinha se o meu Zé estiver morto. E mesmo assim, melhor que esteja eu também.
Os intensos
olhos azuis pareceram perder o brilho enquanto descia as mãos do rosto ao longo
dos braços de Maria:
- Não te deixes
abater pobre criança. Tens tanta vida pela frente.
- Vinha-lhe
pedir para me aceitar ao seu serviço, temos tão pouco dinheiro, acaba, não
tarda e não sei quanto tempo terei que esperar pelo meu homem…
- Ai valha-te
Santa Luzia que te ilumine o caminho, mulher! Não sejas teimosa, corres um
perigo muito grande. – A velha criada interveio.
- Estou velha
demais para enfrentar aquele monstro abertamente. Dinheiro já tu tens e
bastar-te-á ir busca-lo. È a única forma com que me atrevo a desafiá-lo.
Maria olhou o
enorme quadro por cima da lareira com o falecido juiz Joaquim Pimentel, marido
de Genoveva. Porte altivo, cartola e bengala, olhando de cima de um monte para
a extensão de terras que lhe pertenciam. Sempre a fascinara aquele quadro que a
fazia olhar para aquele homem como se fosse um rei.
- Se ele ainda
fosse vivo, talvez a senhora me pudesse ajudar…
- Quem o pode
saber agora. – Genoveva olhava agora para o quadro também – Olha que não era
tão boa rês como possas pensar. Tinha muitas coisas más e só Deus sabe que
partido tomaria, se o teu ou do mafarrico do meu irmão.
- Vou embora
então. – Os olhos vermelhos e tristes enfrentaram a idosa – Não sei mais a quem
recorrer mas, como lhe disse, não irei sem o meu marido. Acho que estou grávida
e ele ainda não sabe. – A criada sufocou um soluço com o lenço e recomeçou a
chorar - Mas penso que devo ao meu filho um pouco mais do que a minha mãe me
deixou porque não quero que cresça sem saber o que é ter um pai. Assim que
conseguir falar com ele ou tiver forma de lhe entregar um recado com toda a
certeza, ir-me-ei. Antes não. Obrigado pelo carinho, amor e apoio que sempre me
deu e continua a dar agora, nunca me esquecerei de si minha senhora.
Pegou ambas as
mãos da idosa que agora chorava também e levou-as aos lábios antes de se afastar
em passos para a porta com a criada a correr atrás dela.
- Não te
esqueças! – Genoveva gritou ainda em voz trémula sem abandonar a sala – No
forno da casa da ribeira, não te vás sem o levar… Pela alma da minha querida
amiga Emília, tua mãe, a quem eu queria mais que uma irmã.
Saiu para a rua
após beijar apressadamente a velha criada que chorava inconsolável.
O ar estava mais
denso e, desaparecida a névoa, um vento cortante fazia-se sentir debaixo do céu
escuro que anunciava neve.
Limpava ainda as
lágrimas à manga do casaco quando chegou à porta e, pelo canto do olho,
apercebeu-se do mau agoiro que significava o Quim do outro lado da rua
embrulhado numa manta e que, com um ar jocoso lhe gritou antes de soltar uma
gargalhada:
- Foste ver a
tiazinha? Não pode fazer nada pois não?
Uma vez mais
bateu-lhe a porta com força quando entrou.
Sentou-se na
cama, no seu quarto nas traseiras da casa, pensando no que deveria fazer…
Deveria fugir como todos recomendavam? Devia esperar pelo Zé para fugirem
juntos? De que seria capaz o André Samões? Será que é mesmo pai e não se
atreverá a fazer-lhe mal ou estará aqui a oportunidade de se livrar de uma
filha incómoda?
Repentinamente
apercebeu-se do silêncio.
Todo o barulho
normal da aldeia, os risos das crianças, as vozes das pessoas, os passos na
rua. De repente tudo desapareceu ouvindo-se apenas o vento que vinha do vale a
assobiar nas janelas.
O sapatear
ritmado de cavalos ferrados ouvia-se próximo até estacar junto da porta.
- Ela está lá
dentro! – Ouviu-se a voz odiosa e acusadora do Coxo.
- Ò da casa! –
Uma outra voz tonitruante chamou do exterior. – Está aí alguém?
No exterior, a
voz não insistiu mas Maria abriu a meia porta superior e espreitou.
Dois Guardas
montados em imponentes cavalos esperavam frente à porta com o Coxo mais atrás.
O vento estava
mais forte e pequenos fiapos de neve esvoaçavam aqui e ali empurrados à deriva.
- Que me querem?
– Interrogou o óbvio tentando dar uma firmeza que não sentia à voz.
- És a mulher de
José de Sousa, conhecido por Zé Sobreiro? – O mais forte e aparentemente mais
velho, dos dois falou com os lábios escondidos por um bigode farfalhudo e com
um olhar vivo que procurou imediatamente o dela.
- Sim, sou. Mas
ele não está.
- Pois não deve
estar, não. – Riu o outro Guarda enquanto desmontava. – Bem bruto seria se
estivesse aqui à espera que viesses à pergunta dele.
- Mas temos que
verificar a casa. – Recomeçou o outro de cima do cavalo. – Vem aqui para o meu
lado rapariga. Que aí o quarenta e três vê se o meliante lá está ou não.
Obedientemente
aproximou-se da montada e postou-se de frente para a porta enquanto o Guarda
mais novo, de sabre em punho, entrava na casa.
- Ele num ‘tá aí
sôr Guarda. – A voz do Quim sentenciou por trás dos dois – Tenho-lhe a porta
debaixo d’olho desde ontem e cá não abeirou.
O Guarda
permitiu-se um olhar por cima do ombro antes de avisar:
- Sai-me de trás
da montada para que te veja.
Obedeceu à ordem
com um ar jocoso enquanto repetia:
- O fideputa num
está aí, o senhor Samões mandou-me guardar a porta e aqui estou desde ontem.
- És empregado
do André Samões? – Inquiriu o Guarda com ar desconfiado e medindo-o de alto
abaixo.
- Sim senhor. –
Confirmou com uma mesura – O mais dedicado deles, posso assegurar a vossa
senhoria.
Maria exibiu uma
expressão de asco e afastou-se dele.
- Eh lá cachopa.
– Advertiu o cavaleiro – Quietinha aí.
Ela obedeceu com
relutância.
Da casa ouvia-se
remexer e barulho de panelas a cair.
- Que anda ele a
cirandar lá dentro? – Maria impacientava-se. – Dois quartos e uma cozinha
demoram tanto tempo a espiolhar?
- Caluda
rapariga. – Tornou a advertir. – Ele faz o que precisar de ser feito.
No mesmo
instante a porta abre-se e o segundo Guarda sai empunhando uma chouriça inteira
que trincava com um ar de satisfação:
- Casa de
pobres, eh? Um tinto de estalo e uns enchidos de chorar por mais…
- E o mafarrico?
– Inquiriu o outro?
- Num o vi por
lá nem rasto dele. – Afirmou enquanto montava. – Por esta altura nem os diabos
lhe deitam a mão.
Voltando-se para
Maria o mais velho admoestou:
- Nós vamos
voltar e ele há-de dar com os costados na jaula. Se estiveres com ele ou o
ajudares vais lá parar também. Olha por ti que nós voltamos.
- E vê lá se
tens mais um copito e um chouricito prá gente. Não te importas que tenha comido
este, pois não? Já estava ali à mão e tudo. – O mais novo riu.
- Não, não tem
mal. – Afirmou ela com arrogância. – Já estamos habituados a ser roubados e
aqueles chouriços eram mesmo para os porcos.
Maria
esquivou-se por um triz ao pontapé que ele lhe atirou enquanto procurava
desembainhar a espada.
- Eh lá! Pára
lá com isso ò Fonseca. – Gritou o Guarda mais velho rindo-se e segurando-lhe o
braço. – Mereceste a resposta. Vamo-nos daqui.
Embora
relutante, o outro obedeceu dando a volta à montada e deitando um olhar de ódio à jovem
que lhe virou as costas dirigindo-se para casa.
Os primeiros
flocos mais pesados começavam a chegar ao chão contra a força do vento que não
dava tréguas.
Os dois
cavaleiros afastam-se pela rua deserta indolentemente observados por alguns
moradores que se atrevem a pôr a cabeça de fora após a sua passagem.
O Quim
interceptou-a antes de entrar em casa. Agarrou-lhe o braço, aproximou o rosto
do dela e segredou:
- Deixa-o
enquanto é tempo. Vem comigo e eu farei de conta que o não vejo. O menino Luís
é um bastardo que bem mereceu o que lhe aconteceu.
Num gesto brusco
para soltar o braço do aperto, Maria acertou-lhe com a ponta dos dedos de
raspão no rosto:
- Vade retro,
sorte maldita! Antes ir prá cama com uma ninhada de lacraus.
Feito isto correu para casa e bateu com a
porta deixando o pretendente sozinho na rua sob a observação da vizinhança que,
passado o perigo, assomava às janelas sem receio.
- Hás-de
pagá-las, cabra maldita. Tu e o cabrão que te montou. És uma cabra estéril mas
eu hei-de montar-te até me fartar. – Gritou o desprezado furioso antes de se
afastar mancando para o seu posto de vigia.
Os vizinhos
começam a fechar as janelas e a recolher-se pois está frio e o espectáculo
terminou.
Dentro de casa,
atirou-se para cima da cama a chorar a sua desdita e assim esteve tempos
infindos até se deixar adormecer pelo cansaço da dor e da noite por dormir.
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