domingo, 18 de janeiro de 2015

Terras de Xisto - 4ª Parte - A visita da Guarda




Regressar a 3ª parte neste link


No caminho, estacou à porta da D. Genoveva. Uma casa altaneira toda em granito ostentando um decrépito brasão em pedra deitado ao abandono sujo por limos e pelas pombas que abundavam por ali.
D. Genoveva era a irmã mais velha de André Samões, era viúva de um juiz e muito respeitada na terra. Desde pequena que Maria corria a todo o momento para casa da viúva onde todos gostavam dela. Era acarinhada pela senhora, todos os criados e até o senhor doutor juiz, do alto do seu ar austero, lhe fazia uma festa na cabeça. Quando casou com o Zé Sobreiro, a velha senhora deu-lhes uma bolsa com uma boa soma em dinheiro e lençóis em quantidade tal que os não gastariam na sua vida. Gostava muito do Zé. Apreciava o ar sério e a atenção às conversas. A opinião que sempre tinha para dar sobre todos os assuntos mas, principalmente, da sua frontalidade e honestidade fruto da rudeza da vida.
Após hesitar um pouco, bateu com o pesado batente na vetusta porta de madeira. Arranjou o cabelo, compôs o vestido, limpou as lágrimas à manga do casaco e atirou os ombros para trás mesmo a tempo da porta se abrir por mão da Maria do Reis, a governanta da casa, quase tão velha como a própria patroa.
O rosto enrugado espreitou pela frincha da porta, desde as costas curvadas, de baixo para cima até se quedar no rosto da jovem. Após um franzir de sobrolho, o rosto iluminou-se num sorriso que logo se transformou numa expressão de tristeza:
- Mariazinha, minha filha, que fez o teu Zé, valha-o Deus…
O lábio inferior da mais nova tremeu e as lágrimas quase brotaram novamente da fonte que eram os seu olhos, mas contendo-se, pediu:
- Ti Maria, preciso falar com a D. Genoveva.
A pequena velha abriu a porta de par em par e encerrou-a logo que ela entrou enquanto a fitava entristecida:
- O Quim Coxo acabou de sair daqui com um recado do senhor André. A senhora está muito aborrecida.
- Que lhe disse o excomungado?
- Já sabia que havias de passar aqui e por isso mandou o mafarrico com ameaças. Mas a senhora te contará.
Atravessaram um corredor e chegaram a uma sala, aconchegada pelo calor de uma lareira que crepitava frente a um cadeirão que se encontrava de costas para a porta. A luz da janela descia sobre ele criando uma clareira de luz que a suspensão do pó dava uma aura de santidade. Na parede da esquerda, uma prateleira erguia-se até ao tecto apinhada de livros. Tudo como se lembrava antes. Quantas tardes ali se passaram a folhear os livros cheios de letras que mal percebia e que a D. Genoveva cheia de paciência lhe foi ensinando. Ao lado do cadeirão uma pequena mesa continha vários livros e uma mão magra e ossuda mudava-os de posição. 
- Minha senhora. – Chamou a velha – Está aqui a Maria da Emília para lhe falar.
O recordar assim o nome da mãe trouxe-lhe mais um montão de lembranças. A velha senhora pegava-lhe no colo e chamava-lhe Emiliazinha pois dizia que era um retrato pequenino da mãe e ainda mais bonita que ela.
Uma cabeça repleta de cabelos de prata espreitou pela lateral do cadeirão antes de se erguer agilmente revelando uma mulher alta, rosto enrugado mas corpo esguio envolto numa camiseta aos folhos preta e uma saia de balão da mesma cor ao gosto das famílias abastadas da época. Era uma mulher dura para tempos duros e gozava de boa saúde os seus setenta anos de vida e vinte de viuvez.
A velha senhora enclavinhou as mãos ao peito enquanto caminhava na direção delas com uma expressão mista de tristeza e ternura no rosto pálido ainda belo decorado com uns enormes olhos azuis cheios de vivacidade:
- Minha Mariazinha, pobre querida, que tropelia te arranjou aquele rapaz.
Abraçaram-se com força e as mãos de pergaminho afagaram-lhe a cabeça enquanto ela se entregava livremente às lágrimas:
- Não sei o que faça da vida, minha senhora, parece que me caiu o céu em cima da cabeça.
A empregada chorava silenciosamente tapando a boca com o lenço das mãos.
- Tens que te ir daqui minha filha. Corres perigo. O André mandou cá aquele canalha do Coxo para me avisar que te não ajude.
- Não posso ir. Não quero ir sem o meu Zé. – A recusa surgia entre os soluços no rosto encostado ao peito da idosa.
- Não podes esperar. Se o Luís morre, não sei o que fará, mas estou certa que não será nada de bom.
Maria empertigou-se de repente e, de rosto corado e coberto de lágrimas afirmou na voz mais firme que conseguiu:
- Ele e os dele podem tentar o Diabo comigo, mas, ou me matam, ou hei-de eu levar o Diabo até ele.
Genoveva estremeceu com a determinação que se via no rosto dela:
- Vais precisar muito dessa força, querida menina… Dela toda, pois acho que ainda tens muito que sofrer antes que termine este drama.
- Eu sei, senhora, eu sei. – Assim como surgiu aquela força demolidora, da mesma forma desapareceu e a cabeça dela tombou envergonhada sobre o peito.
A idosa pegou uma bolsa de couro que se encontrava na mesa ao lado do cadeirão:
- Já tinha isto preparado para ti. Não to dou já porque acho que quando fugires, e vais ter que fugir, não estarás com este dinheiro contigo nem conseguirás ir por ele a casa. A Maria irá deixa-lo no forno das ruínas da casa da ribeira. Não é muito, apenas o bastante para poderes começar a vida noutro lado longe daqui. Quando te fores, corres para lá pegas a bolsa e desapareces o mais depressa possível, sozinha ou acompanhada. – Agarrou o pequeno rosto entre as mãos e encostou a cabeça olhando-a nos olhos – Promete-me.
A jovem soltou um suspiro intervalado com soluços e tornou numa voz nasalada como que uma criança apanha em falta:
- Só irei sozinha se o meu Zé estiver morto. E mesmo assim, melhor que esteja eu também.
Os intensos olhos azuis pareceram perder o brilho enquanto descia as mãos do rosto ao longo dos braços de Maria:
- Não te deixes abater pobre criança. Tens tanta vida pela frente.
- Vinha-lhe pedir para me aceitar ao seu serviço, temos tão pouco dinheiro, acaba, não tarda e não sei quanto tempo terei que esperar pelo meu homem…
- Ai valha-te Santa Luzia que te ilumine o caminho, mulher! Não sejas teimosa, corres um perigo muito grande. – A velha criada interveio.
- Estou velha demais para enfrentar aquele monstro abertamente. Dinheiro já tu tens e bastar-te-á ir busca-lo. È a única forma com que me atrevo a desafiá-lo.
Maria olhou o enorme quadro por cima da lareira com o falecido juiz Joaquim Pimentel, marido de Genoveva. Porte altivo, cartola e bengala, olhando de cima de um monte para a extensão de terras que lhe pertenciam. Sempre a fascinara aquele quadro que a fazia olhar para aquele homem como se fosse um rei.
- Se ele ainda fosse vivo, talvez a senhora me pudesse ajudar…
- Quem o pode saber agora. – Genoveva olhava agora para o quadro também – Olha que não era tão boa rês como possas pensar. Tinha muitas coisas más e só Deus sabe que partido tomaria, se o teu ou do mafarrico do meu irmão.
- Vou embora então. – Os olhos vermelhos e tristes enfrentaram a idosa – Não sei mais a quem recorrer mas, como lhe disse, não irei sem o meu marido. Acho que estou grávida e ele ainda não sabe. – A criada sufocou um soluço com o lenço e recomeçou a chorar - Mas penso que devo ao meu filho um pouco mais do que a minha mãe me deixou porque não quero que cresça sem saber o que é ter um pai. Assim que conseguir falar com ele ou tiver forma de lhe entregar um recado com toda a certeza, ir-me-ei. Antes não. Obrigado pelo carinho, amor e apoio que sempre me deu e continua a dar agora, nunca me esquecerei de si minha senhora.
Pegou ambas as mãos da idosa que agora chorava também e levou-as aos lábios antes de se afastar em passos para a porta com a criada a correr atrás dela.
- Não te esqueças! – Genoveva gritou ainda em voz trémula sem abandonar a sala – No forno da casa da ribeira, não te vás sem o levar… Pela alma da minha querida amiga Emília, tua mãe, a quem eu queria mais que uma irmã.
Saiu para a rua após beijar apressadamente a velha criada que chorava inconsolável.
O ar estava mais denso e, desaparecida a névoa, um vento cortante fazia-se sentir debaixo do céu escuro que anunciava neve.
Limpava ainda as lágrimas à manga do casaco quando chegou à porta e, pelo canto do olho, apercebeu-se do mau agoiro que significava o Quim do outro lado da rua embrulhado numa manta e que, com um ar jocoso lhe gritou antes de soltar uma gargalhada:
- Foste ver a tiazinha? Não pode fazer nada pois não?
Uma vez mais bateu-lhe a porta com força quando entrou.
Sentou-se na cama, no seu quarto nas traseiras da casa, pensando no que deveria fazer… Deveria fugir como todos recomendavam? Devia esperar pelo Zé para fugirem juntos? De que seria capaz o André Samões? Será que é mesmo pai e não se atreverá a fazer-lhe mal ou estará aqui a oportunidade de se livrar de uma filha incómoda?
Repentinamente apercebeu-se do silêncio.
Todo o barulho normal da aldeia, os risos das crianças, as vozes das pessoas, os passos na rua. De repente tudo desapareceu ouvindo-se apenas o vento que vinha do vale a assobiar nas janelas.
O sapatear ritmado de cavalos ferrados ouvia-se próximo até estacar junto da porta.
- Ela está lá dentro! – Ouviu-se a voz odiosa e acusadora do Coxo.
- Ò da casa! – Uma outra voz tonitruante chamou do exterior. – Está aí alguém?
No exterior, a voz não insistiu mas Maria abriu a meia porta superior e espreitou.
Dois Guardas montados em imponentes cavalos esperavam frente à porta com o Coxo mais atrás.
O vento estava mais forte e pequenos fiapos de neve esvoaçavam aqui e ali empurrados à deriva.
- Que me querem? – Interrogou o óbvio tentando dar uma firmeza que não sentia à voz.
- És a mulher de José de Sousa, conhecido por Zé Sobreiro? – O mais forte e aparentemente mais velho, dos dois falou com os lábios escondidos por um bigode farfalhudo e com um olhar vivo que procurou imediatamente o dela.
- Sim, sou. Mas ele não está.
- Pois não deve estar, não. – Riu o outro Guarda enquanto desmontava. – Bem bruto seria se estivesse aqui à espera que viesses à pergunta dele.
- Mas temos que verificar a casa. – Recomeçou o outro de cima do cavalo. – Vem aqui para o meu lado rapariga. Que aí o quarenta e três vê se o meliante lá está ou não.
Obedientemente aproximou-se da montada e postou-se de frente para a porta enquanto o Guarda mais novo, de sabre em punho, entrava na casa.
- Ele num ‘tá aí sôr Guarda. – A voz do Quim sentenciou por trás dos dois – Tenho-lhe a porta debaixo d’olho desde ontem e cá não abeirou.
O Guarda permitiu-se um olhar por cima do ombro antes de avisar:
- Sai-me de trás da montada para que te veja.
Obedeceu à ordem com um ar jocoso enquanto repetia:
- O fideputa num está aí, o senhor Samões mandou-me guardar a porta e aqui estou desde ontem.
- És empregado do André Samões? – Inquiriu o Guarda com ar desconfiado e medindo-o de alto abaixo.
- Sim senhor. – Confirmou com uma mesura – O mais dedicado deles, posso assegurar a vossa senhoria.
Maria exibiu uma expressão de asco e afastou-se dele.
- Eh lá cachopa. – Advertiu o cavaleiro – Quietinha aí.
Ela obedeceu com relutância.
Da casa ouvia-se remexer e barulho de panelas a cair.
- Que anda ele a cirandar lá dentro? – Maria impacientava-se. – Dois quartos e uma cozinha demoram tanto tempo a espiolhar?
- Caluda rapariga. – Tornou a advertir. – Ele faz o que precisar de ser feito.
No mesmo instante a porta abre-se e o segundo Guarda sai empunhando uma chouriça inteira que trincava com um ar de satisfação:
- Casa de pobres, eh? Um tinto de estalo e uns enchidos de chorar por mais…
- E o mafarrico? – Inquiriu o outro?
- Num o vi por lá nem rasto dele. – Afirmou enquanto montava. – Por esta altura nem os diabos lhe deitam a mão.
Voltando-se para Maria o mais velho admoestou:
- Nós vamos voltar e ele há-de dar com os costados na jaula. Se estiveres com ele ou o ajudares vais lá parar também. Olha por ti que nós voltamos.
- E vê lá se tens mais um copito e um chouricito prá gente. Não te importas que tenha comido este, pois não? Já estava ali à mão e tudo. – O mais novo riu.
- Não, não tem mal. – Afirmou ela com arrogância. – Já estamos habituados a ser roubados e aqueles chouriços eram mesmo para os porcos.
Maria esquivou-se por um triz ao pontapé que ele lhe atirou enquanto procurava desembainhar a espada.
- Eh lá! Pára lá com isso ò Fonseca. – Gritou o Guarda mais velho rindo-se e segurando-lhe o braço. – Mereceste a resposta. Vamo-nos daqui.
Embora relutante, o outro obedeceu dando a volta à montada e deitando um olhar de ódio à jovem que lhe virou as costas dirigindo-se para casa.
Os primeiros flocos mais pesados começavam a chegar ao chão contra a força do vento que não dava tréguas.
Os dois cavaleiros afastam-se pela rua deserta indolentemente observados por alguns moradores que se atrevem a pôr a cabeça de fora após a sua passagem.
O Quim interceptou-a antes de entrar em casa. Agarrou-lhe o braço, aproximou o rosto do dela e segredou:
- Deixa-o enquanto é tempo. Vem comigo e eu farei de conta que o não vejo. O menino Luís é um bastardo que bem mereceu o que lhe aconteceu.
Num gesto brusco para soltar o braço do aperto, Maria acertou-lhe com a ponta dos dedos de raspão no rosto:
- Vade retro, sorte maldita! Antes ir prá cama com uma ninhada de lacraus.
 Feito isto correu para casa e bateu com a porta deixando o pretendente sozinho na rua sob a observação da vizinhança que, passado o perigo, assomava às janelas sem receio.
- Hás-de pagá-las, cabra maldita. Tu e o cabrão que te montou. És uma cabra estéril mas eu hei-de montar-te até me fartar. – Gritou o desprezado furioso antes de se afastar mancando para o seu posto de vigia.
Os vizinhos começam a fechar as janelas e a recolher-se pois está frio e o espectáculo terminou.
Dentro de casa, atirou-se para cima da cama a chorar a sua desdita e assim esteve tempos infindos até se deixar adormecer pelo cansaço da dor e da noite por dormir.

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