terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Terras de Xisto - 6ª Parte - O fim de uma era




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O dia seguinte o amanheceu gelado mas seco com o chão coberto de neve suja e calcada.
A aldeia assistiu à saída de um grupo de dois Guardas a cavalo acompanhados de alguns homens do Samões para baterem os montes atrás dos dois assassinos.
Passaram-se horas sem novidades e foi só ao anoitecer que o pequeno grupo regressou com um corpo atravessado na sela e formou frente ao solar.
Corria uma brisa cortante anunciando a aproximação de mais neve.
Quando André Samões chegou ao pátio já se encontrava um grande grupo de pessoas a assistir ao desenrolar do drama.
Um dos Guardas soltou a capa que envolvia o corpo que caiu desamparado no chão empedrado coberto de branco com um baque surdo.
Um gemido de espanto percorreu a assistência ao observar o rosto cinzento e sem vida do Zé Sobreiro.
- Já o apanhamos, senhor Samões. Estava numa gruta e já finado. – Informou o cabo da Guarda.
- Um assassino já está. – Trovejou com a voz trémula de emoção. – Agora só falta a mulher! Quero-a também. Tem que pagar pelos crimes!
Os dois guardas olharam-se interrogativamente.
-Não fiquem aí como parvos! – Tornou, furioso. – Vão! Quero aqui aquela cabra também. Morta ou viva!
Entre resmungos, guardas e lacaios tornaram indolentemente às montadas e principiaram a afastar-se deixando o cadáver estendido no chão.
Quase no mesmo instante surge, na outra ponta do largo, novo guarda montado num cavalo castanho num galope desenfreado.
- Parem! – Ordenou reduzindo a marcha do animal reluzente do esforço.
Num trote mais calmo aproximou-se dos seus dois companheiros enquanto a população, que principiara a afastar-se, tornava à cena dominada pela curiosidade que era maior que o medo da guarda.
- Manda o senhor comandante que tornem sem demora ao quartel. – Informou o recém-chegado.
- Que se passa? – Exigiu saber o Samões – Para onde vão agora que deixam um assassino à solta?
- Ordens do nosso comandante, senhor Samões. Estamos de prevenção, recolher ao quartel e aguardar ordens.
- Mas que aconteceu, homem de Deus? Fala, que houve de tão grave?
O jovem guarda olhou para os companheiros, indeciso se deveria ou não falar. Mas acabou por decidir-se:
- Mataram El-rei D.Carlos.
Um coro de gemidos e gritos de incredulidade ecoaram por entre a pequena multidão que se benzia.
Em passos largos, o fidalgo aproximou-se do guarda:
- Como?!? Não é possível! Mataram-no, ou feriram-no?
- Mataram-no, senhor! Houve um atentado no Terreiro do Paço. Mataram o rei e não se sabe quem mais. Dizem que a rainha estava cheia de sangue e os filhos estavam caídos na caleche como mortos também. Foi uma mortandade.
- Quem é responsável por tal infâmia?
- Fala-se na Carbonária. Os guardas do rei mataram um tal Buiça e mais não sei quantos que estava ligado a eles.
- Bastardos do inferno. Que o diabo os leve a todos.
- Vamo-nos. – O jovem guarda insistiu para os companheiros. – Com sua licença, senhor Samões.
Um burburinho dominava as pessoas que se quedaram na praça vendo os três guardas que se afastavam indolentemente, algo felizes: Morrera um rei, mas pelo menos não iriam passar a noite ao relento atrás de quem não queria ser encontrado.
Estas mortes, no entanto, não anunciavam o fim da tragédia mas sim o seu auge.
Luís morreu no dia seguinte. Parecia ter aguardado pacientemente a chegada do seu executor para o acompanhar no caminho para o inferno.
Louco de dor, André Samões mandou que tocassem fogo na casa de Maria e o processo levou junto duas das casas vizinhas pois as chamas descontroladas não se deixaram dominar com facilidade. Havia mais duas famílias sem-abrigo a juntar ao rol de desgraças que a luta de Luís e José de Sousa causaram.
O Linhaças e o Quim Coxo com a cabeça e uma vista ligadas por uma ligadura suja, cumpriram o odioso trabalho com gosto.
Em vão rebuscaram os escombros ainda fumegantes da habitação na esperança de encontrar o corpo calcinado da jovem que acreditavam estar algures lá dentro.
A fúria consumia o fidalgo que mandou espancar o tio de Maria em plena rua para que lhe dissesse onde se escondia a sobrinha:
- Diz-me onde está essa cabra! – Gritou Samões fora de si para o corpo contorcido de dores e coberto de sangue e hematomas do homem. – Só podes ser tu e a puta da tua mulher quem a esconde.
Atemorizadas, as pessoas não se atreviam a sair à rua. Espreitavam a medo à janela atraídos pelos gritos de socorro do velho e sendo rapidamente despachados para dentro por ameaças dos esbirros do senhor da aldeia.
Como a vítima se limitava a gemer que não sabia de nada, foi agraciado com um forte pontapé nas costelas antes do fidalgo se afastar com uma ameaça:
- Cura-te depressa. Se a bruxa da tua sobrinha não aparecer até à próxima semana, virei cá dar-te outra malha. E assim será todas as semanas até que a tenha nas minhas mãos para lhe dar o corretivo que merece antes de a entregar à Guarda.
Afastou-se a passos largos seguido pelos dois meliantes que lhe guardavam as costas.
Os homens de Samões ainda bateram os montes vizinhos por alguns dias indo até às aldeias vizinhas em busca de informações da fugitiva, mas tudo foi inútil. Maria tinha-se esfumado no ar.
A semana passava-se lenta mas inexoravelmente enquanto a vida na aldeia ameaçava voltar a um normal mas tenso movimento. André Samões fechou-se em casa e saía poucas vezes a não ser para insultar este ou aquele empregado que por infelicidade passava mais próximo das suas fúrias.
Na distante Lisboa coroaram D. Manuel II, filho do infeliz D. Carlos I, que tentava a todo o custo unir o reino órfão debaixo da sua coroa.
Faltava um dia para fazer uma semana sobre a tareia dada a Joaquim e o Linhaças fez questão de ir lembrar o pobre velho e escarnecer da chorosa mulher que lhe pedia pelos Santos todos que tivesse piedade do marido que ainda estava de cama muito mal.
Naquela noite nevou forte. O chão estava coberto com um espesso manto branco e o ar gelado queimava a pele. Parecia congelar até o vapor de água que se soltava da respiração.
No solar, André Samões, entontecido pela embriaguez a que não dava tempo de curar, levantou-se da cama apenas com a longa camisa de noite vestida e o chapéu de dormir na cabeça. Patinhou com os pés descalços no soalho gelado encaminhando-se para as escadas que davam para a cozinha.
Desceu o primeiro degrau da grande escadaria e parou tentando manter o equilíbrio.
Por entre o zumbido que vivia há alguns dias na sua cabeça, escutou, nas suas costas, o patinhar suave do pastor alemão que dormia dentro de casa e que vinha observar o que se passa.
Voltou-se e, qual não é seu espanto, vê o vulto humano calmamente ao lado do cão.
- Que diabo... – A expressão morreu-lhe na boca ao reconhecer a jovem Maria que lhe deitava um olhar de ódio. Uma mão segurava o animal pela trela e a outra empunhava um cajado. – Que estás aqui a fazer sua bruxa? Como entraste? – Repensando a situação, viu que estava em má situação e gritou. - Quim!
O grito morreu-lhe na boca com a bordoada que a jovem lhe acertou na cabeça. O estampido da pancada fez perceber que já estava morto quando rolou desamparado pela escada em cambalhotas grotescas.
O corpo do velho fidalgo quedou-se no fundo encostado à parede dobrado num ângulo impossível para um corpo com vida.
A jovem baixou-se junto do pastor alemão, seu velho amigo, fez-lhe uma festa e beijou-o sobre a fronte antes de se afastar a passos largos para sair por onde entrara.
Quando a Guarda investigou o que se passara, concluiu que o homem, embriagado, perdera o equilíbrio ao descer as escadas e morrera na queda. Não havia sinais de arrombamento e o cão que dormia dentro de casa daria o alarme na eventualidade de haver um intruso. Até porque foi encontrado calmamente sentado ao lado do corpo do dono.
A única suspeita que pôs alguns a pensar foi o relato da filha de uma das criadas internas, com 5 anos, que afirmou ter visto um fantasma todo negro acompanhado de um lobo a vaguear pela casa. Mas as autoridades não fizeram caso da criança.
O ar aqueceu. Maio trouxe as cerejas e os dias de Agosto os calores do inferno que abrasaram a aldeia. Setembro trouxe as vindimas e as idas e vindas das populações que corriam as aldeias a trabalhar nesta ou naquela colheita.
A D. Genoveva, como irmã do falecido, tomou o controlo das propriedades e despediu os dois facínoras que colaboraram em todo o drama.
O Quim Coxo morreu pouco depois. Regressava da sua horta, bêbado e caiu do cavalo batendo com a cabeça numa pedra. Não faltou quem anunciasse a visão de uma mulher de negro a vaguear nos montes.
O Linhaças foi-se da aldeia e nunca mais lhe puseram a vista em cima.
Com o tempo, criava-se a ideia da criatura solitária que vagueava de monte em monte à procura do marido falecido.
A D. Genoveva acabou por falecer também, quase dez anos depois. Esteve no funeral um carro de praça do Porto com alguém da família mas ninguém saiu dele e só a velha criada da senhora falou com o passageiro.
Passado pouco tempo ela própria foi para o Porto para a casa de uns familiares e também não mais se ouviu falar dela.
A propriedade passou para as mãos dos familiares do Porto mas nunca nenhum cá apareceu, era tudo tratado por advogados e mandatários
….
De regresso aos nossos dias, os dois homens conversavam em frente ao imponente solar que acabara de sofrer remodelações.
O mais baixo e gordo, de cabelos curtos e ar risonho e bonacheirão, concluía a história da propriedade de André Samões ao forasteiro aparentando uns trinta anos que sorria prazenteiro:
- Diz-se que a pobre Maria, chamam-lhe a Maria Negra, ainda vagueia por esses montes sem encontrar o marido, morto pelos Guardas e os esbirros do fidalgo. E o solar e as terras estiveram nas mãos da família até agora que o senhor apareceu.
- As terras ainda estão nas mãos da família senhor Botelho. – A voz grave do desconhecido estava decorada com o sorriso que não lhe abandonava o rosto. – O solar foi arranjado porque vai tornar-se uma das Pousadas de Portugal.
- Sabe o meu nome? – O homem mais baixo ficou surpreendido. – Trabalha para a família?
- Então não hei-de saber o nome do presidente da Junta de Freguesia da aldeia onde tenho as minhas propriedades? É verdade, eu sou da família.
Botelho ficou felicíssimo com tal revelação:
- Verdade? Então sempre é verdade que havia um ramo afastado da família Samões no Porto? Dizia-se que era apenas um escritório de advogados que geria tudo.
- Dizem-se muitos disparates meu caro senhor. Na realidade, não sou um ramo afastado, sou bisneto de André Samões. – O estranho arranjou os óculos escuros para apreciar o trabalhador que, suspenso com cordas do telhado, limpava com afinco o brasão de pedra que decorava a testa do solar.
- Bisneto? – O presidente não queria acreditar. – Mas o velho Samões só teve um filho, Luís, que foi assassinado pelo Zé Sobreiro, marido da Maria.
- Correção, meu senhor. – O sorriso do jovem desaparecera do rosto quando se voltou para o interlocutor. – Luís Samões morreu numa luta provocada por ele próprio e que não conseguiu ganhar. José de Sousa matou-o numa situação infeliz e involuntária.
- Mas como pode ser bisneto. Como se chama?
- Meu nome é Bernardo Sobreiro. Sou neto de Maria, viúva de José de Sousa, conhecido por Zé Sobreiro. Nome que a minha avó adotou.
Perante o ar do mais completo pasmo do homem, Bernardo continuou:
- D. Genoveva, minha tia-bisavó, não deixou apenas dinheiro à minha avó Maria, deixou-lhe também um papel que ela, como não sabia ler, só algum tempo mais tarde soube do que se tratava: Era uma cópia do registo de nascimento de uma Maria filha ilegítima de Emília e de André Samões assinada pelo próprio pai.
- E… A sua avó… - Balbuciou o homem
- A minha avó faleceu o ano passado, velhinha mas bem tratada com muito amor pelos seus três netos. Era uma comerciante abastada e estimada no Porto. – Continuou -  Como pode ver, a Maria Negra não reside senão na mentalidade do povo ignorante. Agora se me dá licença, tenho que ir falar com o empreiteiro. Tive muito gosto em conhece-lo pessoalmente e espero vê-lo mais vezes.
Botelho quedou-se mais uns segundos em frente ao imponente solar cheio de vida e operários, observando o jovem herdeiro que caminhava a passos largos para uma herança forjada no sangue dos seus ascendentes.




Fim
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1 comments:

Everson disse...

Me diverti bastante com esta estória. Recomendo. E voce, Manuel, continue a escrever!!! Um abraço!

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