O dia seguinte o
amanheceu gelado mas seco com o chão coberto de neve suja e calcada.
A aldeia
assistiu à saída de um grupo de dois Guardas a cavalo acompanhados de alguns
homens do Samões para baterem os montes atrás dos dois assassinos.
Passaram-se
horas sem novidades e foi só ao anoitecer que o pequeno grupo regressou com um
corpo atravessado na sela e formou frente ao solar.
Corria uma brisa
cortante anunciando a aproximação de mais neve.
Quando André Samões
chegou ao pátio já se encontrava um grande grupo de pessoas a assistir ao
desenrolar do drama.
Um dos Guardas
soltou a capa que envolvia o corpo que caiu desamparado no chão empedrado coberto
de branco com um baque surdo.
Um gemido de
espanto percorreu a assistência ao observar o rosto cinzento e sem vida do Zé
Sobreiro.
- Já o
apanhamos, senhor Samões. Estava numa gruta e já finado. – Informou o cabo da
Guarda.
- Um assassino
já está. – Trovejou com a voz trémula de emoção. – Agora só falta a mulher! Quero-a
também. Tem que pagar pelos crimes!
Os dois guardas
olharam-se interrogativamente.
-Não fiquem aí
como parvos! – Tornou, furioso. – Vão! Quero aqui aquela cabra também. Morta ou
viva!
Entre resmungos,
guardas e lacaios tornaram indolentemente às montadas e principiaram a
afastar-se deixando o cadáver estendido no chão.
Quase no mesmo
instante surge, na outra ponta do largo, novo guarda montado num cavalo
castanho num galope desenfreado.
- Parem! –
Ordenou reduzindo a marcha do animal reluzente do esforço.
Num trote mais
calmo aproximou-se dos seus dois companheiros enquanto a população, que
principiara a afastar-se, tornava à cena dominada pela curiosidade que era
maior que o medo da guarda.
- Manda o senhor
comandante que tornem sem demora ao quartel. – Informou o recém-chegado.
- Que se passa?
– Exigiu saber o Samões – Para onde vão agora que deixam um assassino à solta?
- Ordens do
nosso comandante, senhor Samões. Estamos de prevenção, recolher ao quartel e
aguardar ordens.
- Mas que
aconteceu, homem de Deus? Fala, que houve de tão grave?
O jovem guarda
olhou para os companheiros, indeciso se deveria ou não falar. Mas acabou por
decidir-se:
- Mataram El-rei
D.Carlos.
Um coro de
gemidos e gritos de incredulidade ecoaram por entre a pequena multidão que se
benzia.
Em passos
largos, o fidalgo aproximou-se do guarda:
- Como?!? Não é
possível! Mataram-no, ou feriram-no?
- Mataram-no,
senhor! Houve um atentado no Terreiro do Paço. Mataram o rei e não se sabe quem
mais. Dizem que a rainha estava cheia de sangue e os filhos estavam caídos na
caleche como mortos também. Foi uma mortandade.
- Quem é
responsável por tal infâmia?
- Fala-se na
Carbonária. Os guardas do rei mataram um tal Buiça e mais não sei quantos que
estava ligado a eles.
- Bastardos do inferno.
Que o diabo os leve a todos.
- Vamo-nos. – O
jovem guarda insistiu para os companheiros. – Com sua licença, senhor Samões.
Um burburinho
dominava as pessoas que se quedaram na praça vendo os três guardas que se
afastavam indolentemente, algo felizes: Morrera um rei, mas pelo menos não
iriam passar a noite ao relento atrás de quem não queria ser encontrado.
Estas mortes, no
entanto, não anunciavam o fim da tragédia mas sim o seu auge.
Luís morreu no
dia seguinte. Parecia ter aguardado pacientemente a chegada do seu executor
para o acompanhar no caminho para o inferno.
Louco de dor,
André Samões mandou que tocassem fogo na casa de Maria e o processo levou junto
duas das casas vizinhas pois as chamas descontroladas não se deixaram dominar
com facilidade. Havia mais duas famílias sem-abrigo a juntar ao rol de
desgraças que a luta de Luís e José de Sousa causaram.
O Linhaças e o
Quim Coxo com a cabeça e uma vista ligadas por uma ligadura suja, cumpriram o
odioso trabalho com gosto.
Em vão rebuscaram
os escombros ainda fumegantes da habitação na esperança de encontrar o corpo
calcinado da jovem que acreditavam estar algures lá dentro.
A fúria consumia
o fidalgo que mandou espancar o tio de Maria em plena rua para que lhe dissesse
onde se escondia a sobrinha:
- Diz-me onde
está essa cabra! – Gritou Samões fora de si para o corpo contorcido de dores e
coberto de sangue e hematomas do homem. – Só podes ser tu e a puta da tua
mulher quem a esconde.
Atemorizadas, as
pessoas não se atreviam a sair à rua. Espreitavam a medo à janela atraídos
pelos gritos de socorro do velho e sendo rapidamente despachados para dentro
por ameaças dos esbirros do senhor da aldeia.
Como a vítima se
limitava a gemer que não sabia de nada, foi agraciado com um forte pontapé nas
costelas antes do fidalgo se afastar com uma ameaça:
- Cura-te
depressa. Se a bruxa da tua sobrinha não aparecer até à próxima semana, virei
cá dar-te outra malha. E assim será todas as semanas até que a tenha nas minhas
mãos para lhe dar o corretivo que merece antes de a entregar à Guarda.
Afastou-se a
passos largos seguido pelos dois meliantes que lhe guardavam as costas.
Os homens de
Samões ainda bateram os montes vizinhos por alguns dias indo até às aldeias
vizinhas em busca de informações da fugitiva, mas tudo foi inútil. Maria
tinha-se esfumado no ar.
A semana
passava-se lenta mas inexoravelmente enquanto a vida na aldeia ameaçava voltar
a um normal mas tenso movimento. André Samões fechou-se em casa e saía poucas
vezes a não ser para insultar este ou aquele empregado que por infelicidade
passava mais próximo das suas fúrias.
Na distante
Lisboa coroaram D. Manuel II, filho do infeliz D. Carlos I, que tentava a todo
o custo unir o reino órfão debaixo da sua coroa.
Faltava um dia
para fazer uma semana sobre a tareia dada a Joaquim e o Linhaças fez questão de
ir lembrar o pobre velho e escarnecer da chorosa mulher que lhe pedia pelos
Santos todos que tivesse piedade do marido que ainda estava de cama muito mal.
Naquela noite
nevou forte. O chão estava coberto com um espesso manto branco e o ar gelado
queimava a pele. Parecia congelar até o vapor de água que se soltava da
respiração.
No solar, André
Samões, entontecido pela embriaguez a que não dava tempo de curar, levantou-se
da cama apenas com a longa camisa de noite vestida e o chapéu de dormir na
cabeça. Patinhou com os pés descalços no soalho gelado encaminhando-se para as
escadas que davam para a cozinha.
Desceu o
primeiro degrau da grande escadaria e parou tentando manter o equilíbrio.
Por entre o
zumbido que vivia há alguns dias na sua cabeça, escutou, nas suas costas, o
patinhar suave do pastor alemão que dormia dentro de casa e que vinha observar
o que se passa.
Voltou-se e,
qual não é seu espanto, vê o vulto humano calmamente ao lado do cão.
- Que diabo... –
A expressão morreu-lhe na boca ao reconhecer a jovem Maria que lhe deitava um
olhar de ódio. Uma mão segurava o animal pela trela e a outra empunhava um
cajado. – Que estás aqui a fazer sua bruxa? Como entraste? – Repensando a
situação, viu que estava em má situação e gritou. - Quim!
O grito
morreu-lhe na boca com a bordoada que a jovem lhe acertou na cabeça. O
estampido da pancada fez perceber que já estava morto quando rolou desamparado pela
escada em cambalhotas grotescas.
O corpo do velho
fidalgo quedou-se no fundo encostado à parede dobrado num ângulo impossível
para um corpo com vida.
A jovem
baixou-se junto do pastor alemão, seu velho amigo, fez-lhe uma festa e beijou-o
sobre a fronte antes de se afastar a passos largos para sair por onde entrara.
Quando a Guarda
investigou o que se passara, concluiu que o homem, embriagado, perdera o
equilíbrio ao descer as escadas e morrera na queda. Não havia sinais de
arrombamento e o cão que dormia dentro de casa daria o alarme na eventualidade
de haver um intruso. Até porque foi encontrado calmamente sentado ao lado do
corpo do dono.
A única suspeita
que pôs alguns a pensar foi o relato da filha de uma das criadas internas, com
5 anos, que afirmou ter visto um fantasma todo negro acompanhado de um lobo a vaguear
pela casa. Mas as autoridades não fizeram caso da criança.
O ar aqueceu.
Maio trouxe as cerejas e os dias de Agosto os calores do inferno que abrasaram
a aldeia. Setembro trouxe as vindimas e as idas e vindas das populações que
corriam as aldeias a trabalhar nesta ou naquela colheita.
A D. Genoveva,
como irmã do falecido, tomou o controlo das propriedades e despediu os dois
facínoras que colaboraram em todo o drama.
O Quim Coxo
morreu pouco depois. Regressava da sua horta, bêbado e caiu do cavalo batendo
com a cabeça numa pedra. Não faltou quem anunciasse a visão de uma mulher de
negro a vaguear nos montes.
O Linhaças
foi-se da aldeia e nunca mais lhe puseram a vista em cima.
Com o tempo,
criava-se a ideia da criatura solitária que vagueava de monte em monte à
procura do marido falecido.
A D. Genoveva
acabou por falecer também, quase dez anos depois. Esteve no funeral um carro de
praça do Porto com alguém da família mas ninguém saiu dele e só a velha criada
da senhora falou com o passageiro.
Passado pouco
tempo ela própria foi para o Porto para a casa de uns familiares e também não
mais se ouviu falar dela.
A propriedade
passou para as mãos dos familiares do Porto mas nunca nenhum cá apareceu, era
tudo tratado por advogados e mandatários
….
De regresso aos
nossos dias, os dois homens conversavam em frente ao imponente solar que
acabara de sofrer remodelações.
O mais baixo e
gordo, de cabelos curtos e ar risonho e bonacheirão, concluía a história da
propriedade de André Samões ao forasteiro aparentando uns trinta anos que sorria
prazenteiro:
- Diz-se que a
pobre Maria, chamam-lhe a Maria Negra, ainda vagueia por esses montes sem
encontrar o marido, morto pelos Guardas e os esbirros do fidalgo. E o solar e
as terras estiveram nas mãos da família até agora que o senhor apareceu.
- As terras
ainda estão nas mãos da família senhor Botelho. – A voz grave do desconhecido
estava decorada com o sorriso que não lhe abandonava o rosto. – O solar foi
arranjado porque vai tornar-se uma das Pousadas de Portugal.
- Sabe o meu
nome? – O homem mais baixo ficou surpreendido. – Trabalha para a família?
- Então não
hei-de saber o nome do presidente da Junta de Freguesia da aldeia onde tenho as
minhas propriedades? É verdade, eu sou da família.
Botelho ficou
felicíssimo com tal revelação:
- Verdade? Então
sempre é verdade que havia um ramo afastado da família Samões no Porto?
Dizia-se que era apenas um escritório de advogados que geria tudo.
- Dizem-se
muitos disparates meu caro senhor. Na realidade, não sou um ramo afastado, sou
bisneto de André Samões. – O estranho arranjou os óculos escuros para apreciar
o trabalhador que, suspenso com cordas do telhado, limpava com afinco o brasão
de pedra que decorava a testa do solar.
- Bisneto? – O
presidente não queria acreditar. – Mas o velho Samões só teve um filho, Luís,
que foi assassinado pelo Zé Sobreiro, marido da Maria.
- Correção, meu
senhor. – O sorriso do jovem desaparecera do rosto quando se voltou para o
interlocutor. – Luís Samões morreu numa luta provocada por ele próprio e que
não conseguiu ganhar. José de Sousa matou-o numa situação infeliz e
involuntária.
- Mas como pode
ser bisneto. Como se chama?
- Meu nome é
Bernardo Sobreiro. Sou neto de Maria, viúva de José de Sousa, conhecido por Zé Sobreiro.
Nome que a minha avó adotou.
Perante o ar do
mais completo pasmo do homem, Bernardo continuou:
- D. Genoveva,
minha tia-bisavó, não deixou apenas dinheiro à minha avó Maria, deixou-lhe
também um papel que ela, como não sabia ler, só algum tempo mais tarde soube do
que se tratava: Era uma cópia do registo de nascimento de uma Maria filha ilegítima
de Emília e de André Samões assinada pelo próprio pai.
- E… A sua avó…
- Balbuciou o homem
- A minha avó
faleceu o ano passado, velhinha mas bem tratada com muito amor pelos seus três
netos. Era uma comerciante abastada e estimada no Porto. – Continuou - Como pode ver, a Maria Negra não reside senão
na mentalidade do povo ignorante. Agora se me dá licença, tenho que ir falar
com o empreiteiro. Tive muito gosto em conhece-lo pessoalmente e espero vê-lo
mais vezes.
Botelho quedou-se
mais uns segundos em frente ao imponente solar cheio de vida e operários,
observando o jovem herdeiro que caminhava a passos largos para uma herança
forjada no sangue dos seus ascendentes.
Fim
1 comments:
Me diverti bastante com esta estória. Recomendo. E voce, Manuel, continue a escrever!!! Um abraço!
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