Este texto é uma obra de ficção. Embora possa incluir referências a eventos históricos e figuras reais, a história, os diálogos e as interpretações são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência.
Foi furioso e revoltado que, naquela tarde de inverno, fria e chuvosa, dei entrada no hospital para outra e se calhar novamente inútil, operação aos olhos.
Estava farto de hospitais e médicos, farto das vozes de pena dos familiares e amigos… farto da vida… na escuridão.
Há vinte e seis meses que, gradualmente, a luz foi-se desvanecendo, até mergulhar numa eterna noite sem estrelas nem luar.
Para mim, os setenta e seis anos não desculpavam, nem justificavam coisa nenhuma. Sempre fui "são como um pero" e fui assistindo, enquanto os meus amigos, um a um, se iam abaixo pelas pernas, ou pela cabeça, às vezes por ambos, até se irem de todo. Sempre me mantive mais ágil e lúcido, com caminhadas diárias de vários quilómetros. Porque me haveriam de falhar os olhos, impedindo-me de ler os livros que reuni uma vida inteira?
Sentei-me na cama, respondi com um resmungo à despedida da minha nora e submeti-me, em silêncio, à humilhação de ser despido pelas enfermeiras.
— Boa tarde. Meu nome é André. — A voz grave e jovem chegou-me aos ouvidos, quando achava que me encontrava já sozinho. — Sou o seu companheiro de quarto. Voltei o rosto na direção do som, com os olhos a vaguear, perdidos na noite eterna.
— Oh, desculpe… não sabia. — A voz do meu companheiro tremeu e eu percebi que devia estar com a mão estendida, a aguardar que lha apertasse. — Não se desculpe. — Grasnei sem emoção, enquanto tateava pela mão que veio ao meu encontro. — Não é culpado pelo meu estado. Chamo-me Herculano.
Criamos ali uma bela amizade e, fruto da boa disposição do jovem, o meu rancor e desconforto foram-se esbatendo rapidamente numa sã convivência. Debatíamos as notícias da televisão, que eu só podia ouvir, mas que ele dizia não ter perdido nada, porque as imagens eram repetitivas e maçadoras. Discutimos animadamente qualquer tema e eu estava felicíssimo por finalmente encontrar alguém com um nível intelectual e cultural capaz. Penso agora que nunca lhe perguntei a idade, nem dei grande atenção à razão pela sua estadia naquele local.
Até o meu filho e a minha nora, quando me visitaram, ficaram surpreendidos com a boa disposição que aparentava, totalmente diferente de todas as outras estadias naqueles "hotéis" cheios de pessoas doentes.
Inevitavelmente, com os dias a passar e eu a recuperar da primeira de três cirurgias, a conversa acabou por cair sobre o amor, o romance e os livros. Lamentei-me não poder ler e tinha uma enorme biblioteca com os já lidos e uma pilha, dos que ainda não conseguira ler.
Um dia perguntou-me se eu queria que me lesse um romance pois, por acaso, estava a ler um e estava a gostar muito. Assenti, entre o contrafeito e o expectante, nada habituado a que me contassem histórias como se faz às crianças.
Foi para mim uma enorme surpresa, mas, após o primeiro capítulo, estava já aprisionado da narrativa:
"Gabriel, um dos protagonistas, era o filho de um importante comerciante do Porto setecentista e apaixonara-se por uma amiga de sua irmã, de condição francamente inferior, Arabela."
Até aqui, parece um simples romance de cordel, mas as discussões entre pai e filho, eram tão verosímeis, que dava por mim a comentá-las com o meu narrador, como se de um caso real se tratasse.
"Inevitavelmente, Arabela foi proibida de frequentar a casa e o jovem Gabriel incompatibilizou-se de vez com o pai e abandonou o lar familiar, fugindo com a sua amada. Nenhum dos dois estava preparado para viver sem o apoio das respetivas famílias e tiveram de alugar um quarto, numa das zonas mais pobres da cidade, para procurarem trabalho."
Protestei fracamente, quando o meu benemérito pediu para interromper a história, para poder descansar e, tal e qual como uma criança, passei parte da noite a imaginar qual seria o destino dos dois amantes.
No dia seguinte, sentia-me nervoso e irritado com toda a demora, enquanto as enfermeiras nos faziam a higiene diária e recebíamos a visita dos médicos. Foi apenas depois de almoço que foi possível retomar a narrativa com calma.
De novo me deixei envolver na voz sonora e cava de André, enquanto ele relatava:
"Gabriel teve muitas dificuldades para arranjar uma forma de sustento, até conseguir ganhar umas míseras moedas para varrer a oficina de um escultor, que era o trabalho normalmente feito por uma criança de oito anos.
Um dia, o mestre surpreendeu o jovem a esculpir um pequeno anjo em madeira, por cópia de outro que estava a ser preparado para decorar uma igreja. O velho artesão ficou espantadíssimo com a versão melhorada do original. Logo ali o convidou a fazer uma das colunas que iria precisar. Era o estilo barroco, a moda da época e cada coluna de madeira era profundamente trabalhada com anjos e motivos florais, não deixando espaços vazios. Não foi preciso mais e, no espaço de poucos meses, Gabriel deixara de ter de varrer a oficina, para trabalhar a tempo inteiro na escultura em madeira. Cada vez chegavam mais encomendas de clientes que gostaram de outros trabalhos. A vida estava a começar a correr bem para o jovem casal, mesmo Arabela, conseguira um emprego de dama de companhia de uns ricos burgueses onde era muito bem tratada."
Os dias iam-se passando e eu cada vez mais dependente daquela história que se desenrolava aos meus olhos sem luz, intercalada com as saídas, minhas, ou de André, para tratamentos e análises.
"Gabriel era agora o braço direito do mestre e saía com vários aprendizes para fazer as montagens das peças esculpidas com maestria, nas igrejas e capelas por toda a cidade. No entanto, a velha raposa não deixava que se soubesse que era o seu aprendiz, o autor das obras agora tão cobiçadas. Até que um dia, um dos andaimes onde se encontrava Gabriel e um dos ajudantes partiu-se e caíram ambos de grande altura. O ajudante teve morte imediata e o jovem escultor ficou gravemente ferido."
Novas sequências de tratamentos levaram André a estar afastado de mim e a interromper a o desenrolar da narrativa que eu tanto ansiava. O meu companheiro de quarto, sabia-o agora, sofria de um problema do trato digestivo e estava a ser preparado para uma cirurgia complexa.
Por fim chegou o meu grande dia e fui submetido à última operação, que deveria devolver-me a vista. Regressei do recobro, cansado e aborrecido, mas a voz grave e feliz de André trouxe-me de volta à vida. Ofereceu-se de imediato para retomar a narrativa, avisando que, no fim do dia de amanhã seria a vez dele, enfrentar o bisturi.
Retomamos a história onde esta parara.
"Gabriel ficara ferido com gravidade na queda do andaime. Para o seu mestre, foi um grande aborrecimento, pois que teria de ser ele a fazer o trabalho em vez do discípulo e mandou-o para casa, sem mais compensações do que o pagamento dos dois dias que faltavam para acabar a semana. A pobreza em que viviam, atacou de novo o jovem casal, reduzido às parcas moedas que Arabela ganhava. A maior parte era gasta a pagar aos físicos, pouco mais que curandeiros, para aliviar as dores ao marido, que se sumia a olhos vistos.
Entretanto, o pai de Gabriel não estava em paz e decidiu procurar o filho. Estava disposto a aceitar as suas escolhas, fossem quais fossem. Percorreu a cidade fazendo perguntas até ser encaminhado, pelas descrições, ao jovem na oficina de escultura. Quando lá chegou, ouviu da voz dos restantes aprendizes, como Gabriel era explorado pelo velho artesão, que escondia o talento do jovem atrás da sua fama. Quando o encontrou pessoalmente, tratou-o com o desprezo que sentia e exigiu que lhe fossem entregues os pertences do filho e lhe indicassem onde residia.
Ao recolherem as poucas ferramentas que havia comprado e a bata manchada de sangue que envergava. Encontraram, coberta com uma manta, uma estátua em tamanho natural, que só tinha terminada a cabeça e os ombros. Representava inequivocamente Arabela, mas a sua perfeição era tal, que, pai e escultor, choraram de emoção ao apreciá-la.
Ambos feridos pelo arrependimento, foram à humilde casa que habitavam os amantes, para depararem com o jovem moribundo, cujas forças se acabavam rapidamente. Pediram-lhe perdão entre lágrimas, cada um pelos seus pecados e prometeram que cuidariam da sua esposa, para que nada lhe faltasse e vivesse como uma senhora daquele dia em diante. Questionado com o destino a dar à bela estátua, respondeu: "Não façam nada. Não a terminem, deixem-na como está. Comecei-a pelo amor que Deus me deu a conhecer e cada entalhe que lá está feito é um dia de felicidade por a ter a meu lado. Cada entalhe que lá falta, é por cada dia de amor, que Deus me deve ao lado dela."
O jovem morreu passados poucos dias, mas numa cama confortável na residência de seu pai, ao lado da mulher que amava e por quem foi capaz de abdicar de tudo. Arabela, viveu uma vida feliz e desafogada acompanhada da cunhada, de quem era tão amiga. Quanto à estátua, vestiram-lhe roupas de santa e está algures num altar duma igreja da diocese do Porto, recebendo a devoção que merece. Inadvertidamente, cada penitente que a ela se ajoelha, recorda cada dia de amor que Deus é devedor a Gabriel."
De volta à realidade, eram já altas horas da noite. Chorei com André a infelicidade do jovem casal, que tanto prometia e tanto merecia e, extasiado com a beleza da história, pedi que me dissesse quem era o autor. Respondeu-me que o livro era velho e o nome estava apagado.
Despedi-me distraidamente do meu companheiro quando partiu para a sua cirurgia mas pensei esperar que regressasse para lhe pedir para tocar no livro.
Acabei por adormecer, só acordando de manhã para a higiene e a visita do médico, que me veio retirar as ligaduras. Um brilho imenso e doloroso atingiu-me apesar de ele dizer que o quarto estava na penumbra. Era um bom sinal, porém: já não viveria na total escuridão.
Foi então que me apercebi que André ainda não regressara e questionei o médico, que foi evasivo. Acabei por me enervar e exigi que me dissesse onde estava e como se encontrava. Acedeu e contou-me que tinha sido submetido a uma extensa cirurgia para extração de um cancro no intestino. A situação estava muito pior do que todos esperavam e tinha-se ficado na mesa de operações.
Não quis ouvir mais. Atirei-me para a cama, com os olhos a rebentar, com as lágrimas e a mágoa de perder um amigo e companheiro, do qual nunca tinha visto o rosto.
Quando me acalmei, percebi que conseguia divisar os contornos dos objetos, na escuridão total do quarto. Acendi a luz, tendo o cuidado de fechar os olhos com força e abri-los muito devagar.
O mundo que perdera há muitos anos estava de volta: o mobiliário, as cores das cortinas, das paredes e das camas estavam lá novamente. Mas não era isso que me preocupava naquele momento; dirigi-me avidamente à mesa de cabeceira do meu infeliz companheiro e abri a gaveta da mesa de cabeceira, como tantas vezes o ouvi fazer nos últimos dias.
Lá dentro, havia apenas uma capa, comportando um grande número de folhas em desalinho, garatujadas numa escrita alongada e quase ilegível, de quem está habituado a escrever muito. Por todas as páginas havia secções riscadas e apontamentos laterais. Consegui decifrar as últimas frases:
"Quanto à estátua, vestiram-lhe roupas de santa e está algures num altar duma igreja da diocese do Porto, recebendo a devoção que merece. Inadvertidamente, cada penitente que a ela se ajoelha, recorda cada dia de amor que Deus é devedor a Gabriel."
Procurei rapidamente a primeira página onde estavam bem legíveis três linhas:
"Por Cada dia de Amor"
de André Matos
Dedicado ao meu amigo Herculano, sem o qual esta história não seria terminada."