Os tambores do céu ribombavam, ao longe, iluminando a noite em ofuscantes flashes.
Ele estava sentado no chão, ensopado, ao fundo do parque atrás do Lância Flavia branco, que era um dos últimos veículos que ali se encontrava.
Pingas escorriam pelas espessas lentes dos óculos, pelo nariz e pelo canto da boca, levemente descaído, deixando um travo salgado.
O ferimento na face, sangrava um pouco, deixando um fio que marcava o colarinho.
O seu olhar estava parado, as mãos paradas, as pernas abertas e as pingas da chuva deixavam,entre elas, pequenos círculos ondulantes na água que cobria o chão.
O céu, carregado de nuvens, continuava indiferente aos milhares de pequenos dramas pessoais que infestam a vida destes minúsculos seres mortais que povoam a terra e que sofrem, riem, choram… enlouquecem. A natureza é superior a todas essas insignificâncias que regem as nossas vidas. Essas insignificâncias a que damos tanta importância mas que têm tão pouco valor nesse Grande Projeto que é o Universo.
E o homem continuava ali parado, magicando na sua vida, no seu próprio projeto que estava agora morto e enterrado… Prematuramente.
Ele até era feliz, escondido atrás da sua secretária de chefe de serviço, esperando pacientemente uma promoção que tardava em chegar enquanto os anos se consumiam um por um.
A vida não era má, aturando diariamente as más disposições do patrão e tentando passá-las para os seus subordinados… era preciso saber manter o respeito.
Os dias corriam, cada um igual ao outro, a viver para o trabalho. Olhado com um desprezo respeitoso pela entidade patronal e com um desprezo receoso pelos colegas e subordinados.
Para os primeiros era um bom “testa de ferro” que fazia cumprir o odioso das necessidades de serviço e para os segundos era o “bufo” e o capacho dos patrões que estava sempre pronto a “tramar” os colegas por mais umas “palmadinhas nas costas”.
Mas era a sua vida e gostava dela.
À noite, regressava ao seu T1 mobilado descuidadamente, vazio de qualquer carinho que não os lamentos miados do seu gato, impaciente pela refeição da noite.
Partilhava a refeição com ele, na sala pouco iluminada com a televisão que despeja a sua interminável torrente de publicidade, notícias tristes e programas insípidos. Naquela sala que servia simultaneamente de sala de estar, de jantar e escritório, decorada apenas com a mesa envelhecida e a TV em cima dum móvel de estilo indecifrável.
Nas paredes, apenas três molduras; numa, um pequeno quadro representando uma qualquer paisagem que incluía um rio e uma casa num monte, na outra, a clássica ceia de Cristo com as mãos abertas distribuindo o Seu amor igualmente por adoradores e traidores e na outra ainda um diploma onde lhe era reconhecido o curso de Técnico Oficial de Contas, de que ele se orgulhava particularmente.
Vivia sozinho sim, nunca achara mulher com quem valesse a pena partilhar a vida… Ou nenhuma achara o seu ar enfezado de “rato de biblioteca” digno de mais do que um minuto de atenção logo desviado para outro assunto qualquer.
Os anos iam passando e os seus colegas de trabalho iam-se reformando ou mudando de empregos e ele por ali ia ficando com a competição reduzida… mas cada vez mais velho.
Até que um dia apareceu Rute.
Rute. Cabelo cor de mogno refletindo o brilho das lâmpadas fluorescentes. Rosto fino, olhos verdes vivos e brilhantes, revelando inteligência e firmes propósitos. Tudo isto decorado com uns lábios carnudos e sensuais numa forma alta e bem torneada de seios cheios e firmes… Enfim, um verdadeiro pedaço de tentação.
O seu patrão, Fernandes, apresentou-a como uma ajudante para substituir o colega recentemente reformado e para o apoiar nas suas funções tendo em vista a sua eminente promoção.
Mirou-a a toda a altura através das lentes grossas, emolduradas na armação plástica, enquanto fungava de si para si:
– Demasiado bonita para ser eficiente.
O sorriso, conhecedor e enigmático, que lhe atirou sugeriu ter percebido o comentário e desafiá-lo a esgotar as capacidades dela:
– Muito prazer Sr. Ferreira. - Foi a sua apresentação – Tenho a certeza de que nos vamos entender muito bem.
O passar das semanas foi provando, a pouco e pouco, que ele estava redondamente enganado e que, por trás daquela mulher bonita e cativante, estava uma profissional consciente e altamente eficiente.
A familiaridade decorrente do contacto diário no trabalho foi-se acentuando. Por várias vezes, Ferreira sentiu na pele a diferença dos seus cinquenta e cinco anos nos trinta e quatro de Rute, quando ficavam a trabalhar sozinhos até mais tarde e ele começava a revelar cansaço e falhas de vista enquanto ela continuava incansavelmente.
Dava por si a observá-la e a apreciar a sua companhia, a admirar o seu trabalho e o belo rosto compenetrado nas listagens de incontáveis cifras dos balancetes.
Por vezes, ela parava e devolvia-lhe o olhar acompanhado de um sorriso carinhoso e um brilho desafiador, antes de voltar ao seu trabalho.
Um dia, após terminarem o fecho do ano contabilístico, estavam ambos sós no escritório, o que já começava a tornar-se uma rotina. Elogiaram-se mutuamente pelo trabalho desempenhado na conclusão de mais aquela tarefa.
De repente, o sorriso desapareceu da bela face e olhou-o fixamente dizendo:
– João. Não se importa que o trate por João pois não? – Não esperou sequer pela resposta enquanto continuava – Não acha que já é tempo de nós irmos tomar uma bebida juntos ou jantar, a fim de nos conhecermos melhor?
– Eu… - Ferreira ficou sem palavras.
– Ao fim e ao cabo, trabalhamos juntos há quase um ano, apreciamos o trabalho um do outro (eu sei que sim) e não sabemos nada acerca de nós. – Continuou ela.
O rosto pálido estava perplexo. Uma mulher tão bonita e bem feita como aquela, estava disposta a sair e ser vista junto com um “espécime” como ele. Jantar! Ela estava pronta a jantar com ele. A partilhar uma mesa num restaurante cheio de gente onde todos os olhariam.
Ela ficou imóvel a aguardar a resposta e a tentar entender o significado do seu silêncio e do seu ar surpreendido.
– Eu… - Ele continuava a hesitar.
– Estou a pretender de mais, não é? – Uma sombra de tristeza obscureceu-lhe o rosto. – Peço desculpa por me ter excedido, faça de conta que eu não disse nada e vamos cada um tratar da sua vida.
– Não, espere! – A sua expressão agora era uma agonia de calor e a respiração brotava do peito, com dificuldade. – Não é isso!. Estou apenas surpreendido, mas muito lisonjeado com o seu convite. Aceito com muito gosto.
O brilho radioso do contentamento retornou para iluminar as faces dignas de Boticcelli e a sua voz voltou a ser um trinado primaveril:
– Esplêndido! Onde vamos, então? Vamos no meu carro ou no seu?
– Bem… - Gaguejou – O meu carro não está aqui, a minha casa é relativamente perto pelo que venho a pé todos os dias. E também não tenho grandes experiências de saídas… não sei onde havemos de ir.
– Não há problema, vamos no meu. Conheço um restaurantezinho simpático onde poderemos festejar o meu primeiro fecho de ano nesta empresa.
Abandonaram o escritório e saíram para a noite fria e ventosa de inverno, embrulhados nos sobretudos que não protegiam os rostos das pingas geladas que vagueavam perdidas empurradas pelo vento.
Enquanto caminhavam ela falava e ria, contando histórias dos seus vizinhos e dos seus amigos, com a sua voz juvenil e chilreante, deixando-o embriagado e contagiado pela sua alegria e prazer de viver.
Os seus braços tocaram-se e deram por si a caminhar de braço dado como dois velhos amigos.
Por fim chegaram ao veículo. Por sinal, praticamente o último de todo o parque. Um excelente Lância Flavia branco, de estofos de couro da mesma cor e com todo o aspeto de novo.
– Belo carro!. – Observou – São precisos muitos ordenados para uma coisa destas.
– Nem por isso! – Um sorriso maroto decorou aquele rosto centrado pelo nariz afilado. – Basta um ex-marido com posses e um processo de divórcio.
– Divórcio?
– Sim. Eu até nem gostava muito do carro, mas foi a maneira que consegui de o magoar ainda mais por quase 15 anos a aturar manias. Está chocado?
– Não, de maneira nenhuma, apenas não me lembrei que já tinha sido casada… Tão nova e tão bonita!
– João! – O ar risonho de estupefação foi como uma manhã de sol em pleno inverno. - Você atirou-me um piropo?
Ele não pôde deixar de sorrir, enquanto entrava no carro:
– Acho que sim. Escapou...
O jantar correu otimamente; uma refeição normal de lombo assado com batatas, mas bem regada com um excelente Douro, rubi, precioso e doce.
Cada golo daquele vinho fazia-o sentir mais jovem e comunicativo, capaz de fazer coisas que até ali achara impossíveis e inatingíveis. Deu por si a falar pelos cotovelos:
– Ah, como é excelente este néctar dos Deuses! Cada gota que deglutimos transporta-nos às encostas forradas de xisto do Rio de Ouro, onde as uvas são arrancadas às pedras à força de braço e calor do sol. Leva-nos numa rodopiante volta pelas serranias do Nordeste Transmontano onde as pessoas são fortes e rudes, mas sãs e francas…
– Mas que coisa tão poética! – Riu surpreendida ao descobrir uma nova faceta do seu companheiro de trabalho. – Isso é de algum livro ou é a inspiração transbordante do álcool?
Ele sentiu o rosto arder com embaraço, mas não se deixou desarmar enquanto confessava:
– Sabe, em tempos eu queria ser escritor. Acho que ainda tenho para lá um ou dois dos meus velhos manuscritos.
– Sério? Daí saíram essas frases tão cheias de sentimento que quase me fizeram ver aquilo que descrevia.
Os olhos de Ferreira focaram-se no rosto feminino com um olhar baço, ausente, o sorriso a desvanecer-se lentamente enquanto a sua mente vagueava longe e deixava escapar mais algumas palavras:
– Trás-os-Montes, meu berço amado e odiado, lar do meu amor, casa da minha dor…
Também Rute ficou séria com aquela súbita e inexplicável mudança de humor:
– Que se passa? Sente-se bem? – A mão dela procurou a dele sobre a mesa e apertou-a procurando despertá-lo do torpor. – João?
Ele estremeceu, acordando naquele momento e olhou-a como se por alguns segundos não a conhecesse nem soubesse o que estava ali a fazer. Mas pouco a pouco, o brilho do conhecimento foi regressando aos seus olhos.
– Desculpe. Não sei o que me deu. Sempre que me chegam as memórias da minha terra… Tanto de bom e tanto de mau, mas acho que as não sentia tão nítidas há muito tempo.
– Namorada? Esposa? – Aventurou-se a adivinhar.
– Bom, não interessa. – Estava a recuperar o seu domínio junto com o vinho que lhe provocava um empolamento na sua autoconfiança. – Acho que já chega de restaurante, não lhe parece? Ou deseja mais alguma coisa?
– Não, não! Estou satisfeita. Acho que se comesse mais alguma coisa rebentava.
Ele pediu a conta com um gesto e pagou com um cartão de crédito brilhante. Completamente novo, visto que quase não o usava.
Saíram para o ar frio e logo que o fizeram, ela meteu o seu braço no dele, provocando uma onda de calor e um arrepio que Ferreira teve dificuldade em disfarçar.
Não tardou que o veículo estivesse à porta dele. Ambos tinham conversado todo o caminho sobre milhões de coisas sem que encontrassem falta de temas. Agora, com o carro parado, voltados um para o outro, continuavam as suas dissertações. Rostos cada vez mais perto, o hálito quente a invadir as narinas, enquanto os olhos lutavam pela supremacia numa tentativa vã para fixar ambas as pupilas ao mesmo tempo.
De repente já não havia mais fuga. Os narizes quase se tocando; fez-se um silêncio pesado de expetativa na cabina.
Ela fechou os olhos num pedido mudo e ele, inclinando ligeiramente o rosto, beijou-a castamente sobre os lábios, como se tocasse uma frágil pétala de rosa e recuou ligeiramente.
Os olhos verdes abriram-se, plenos duma vontade indómita e ela atirou-se num abraço apaixonado e devorador, recheado de beijos quentes plenos de lábios, língua e dentes.
O ruído dos óculos dele a cair e o som da música que tocava no rádio não eram suficientes para os distrair da fome terrível que os animava, sob os apertos e torções com que cada um tentava dominar o outro.
A gravata foi removida, junto com alguns botões da camisa. O lenço dela voou para o banco traseiro logo seguido da blusa e depois do soutien.
Durante cerca de uma hora o veículo estremeceu, de vidros embaciados, abandonado à beira do passeio da rua deserta.
Por fim, ele saiu para a noite gelada, transpirando, camisa desapertada e sobretudo no braço. Inclinou-se e deu-lhe um longo beijo de despedida, através da porta, antes de se voltar e tomar o seu caminho.
Voltou-se quando o carro partiu e acenou um adeus distraído e atordoado.
Entrou na casa fria e escura e foi recebido pelo gato que reclamava de fome e se roçava nas suas pernas, implorando comida.
Ignorou-o e caminhou vacilante, de pernas trémulas, até ao pequeno sofá da sala múltipla deixando-se cair sem forças.
– Como foi que aquilo acontecera? – Perguntava-se – Uma mulher como aquela, bela e desejável. Um verdadeiro modelo para Rodin. Uma joia, um anjo. E fizera amor com ele. Com ele! Com o seu ar de bibliotecário reformado, com os seus óculos grossos e ar enfezado… Um anjo.
Assim se embalou completamente esgotado e entrou num sono agitado, acompanhado pelo miar triste do gato que antevia uma longa noite de fome.
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